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As idades de Natália

Este artigo tem mais de 6 meses

A estrear-se na encenação, Ana Rocha de Sousa leva ao Teatro da Malaposta “O Dever de Deslumbrar”, partindo da biografia de Natália Correia por Filipa Martins. A peça abre oficialmente o LEFFEST.

Teresa Tavares interpreta a Natália mais nova, numa peça que se desenrola em volta das diferentes faces (e de tempos distintos) da mesma mulher
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Teresa Tavares interpreta a Natália mais nova, numa peça que se desenrola em volta das diferentes faces (e de tempos distintos) da mesma mulher

Teresa Tavares interpreta a Natália mais nova, numa peça que se desenrola em volta das diferentes faces (e de tempos distintos) da mesma mulher

Pode dizer-se que haverá sempre uma faceta de Natália Correia por descobrir. Outras tantas sobre as quais ainda hoje se desvendam particularidades. 30 anos depois da sua morte e num ano em que se comemora também o seu centenário, voltar à história daquela que foi uma das mais importantes autoras da segunda metade do século XX português é inevitável. E dessa mesma inevitabilidade surgiu O Dever de Deslumbrar, peça com encenação de Ana Rocha de Sousa, a partir da biografia homónima de Filipa Martins, que estará em cena no Teatro da Malaposta, em Odivelas, a 10 e 11 de novembro, no âmbito da abertura da 17.ª edição do LEFFEST — Lisboa Film Festival. Seguem-se apresentações no espaço Escola de Mulheres, de 30 de novembro a 3 de dezembro, e no Teatro Turim, em Benfica, de 5 a 21 de janeiro de 2024.

No cenário, uma cama com folhas de papel, uma mesa de maquilhagem, uma secretária e diversos objetos colocam-nos num espaço de profunda intimidade. Ouve-se a voz de Natália. Há uma bailarina em palco (Ana Jezabel) e duas mulheres (Teresa Tavares e Paula Mora), que personificam duas Natálias em diferentes momentos da sua vida. Trilham-se memórias, entre imagens de arquivo que recordam a verdadeira Natália Correia e os diálogos, em que se fala da infância, da ausência do pai e da mulher artista e ativista que se foi formando. “Nasci numa família terrivelmente retrógrada, conservadora, a que podemos chamar ‘ultramontana’” recorda a Natália mais velha. Não falta a boquilha em punho e a palavra afiada. Mas há também espaço para um diálogo emocional e de perspetiva sobre o seu posicionamento face à história recente do país.

A peça, que marca a estreia na encenação da realizadora Ana Rocha de Sousa, surge, necessariamente, como “homenagem” à autora de O Vinho e a Lira. Mas é mais do que isso. Num espetáculo multidisciplinar, onde se enceta um falso monólogo percorremos a obra, vida, pensamento, declarações públicas e privadas de Natália Correia, sem que se torne necessariamente num exercício performativo puramente biográfico. Pelo contrário: o facto de assistirmos a uma conversa de Natália Correia consigo mesma abre uma outra perspetiva, que vai para lá daquela que conservamos no imaginário coletivo. Vemos uma mulher que é feita de coragem, destemida e irreverente, mas também uma Natália que falha, que se contradiz e que sofre. É a Natália Correia que fazia troça dos boatos que sobre ela eram lançados, mas a também a Natália Correia que se emociona profundamente quando se recorda do arquipélago dos Açores, onde nasceu em 1923.

Teresa Tavares e Paula Mora são as atrizes que personificam duas Natálias em diferentes momentos da sua vida

Ao Observador, Ana Rocha de Sousa explica que o desafio de trabalhar sobre a vida de Natália Correia lhe interessava não apenas pela sua biografia, mas pelo jogo do tempo, colocando a própria figura de Natália a falar consigo própria. “Havia a ideia base da Filipa Martins, de ter uma Natália mais nova e outra mais velha, com a premissa de ‘o que diriam uma à outra?’; e a verdade é que isso me cativou. Isso e o facto de ser sobre a Natália Correia, figura perante a qual tenho hoje uma perceção diferente da que tinha no passado”, diz. O crescimento e a perceção durante a sua vida de quem era Natália, explica Ana Rocha de Sousa, está ligada à política – “à Natália no parlamento abraçada à Cicciolina” e, curiosamente, a dois livros esquecidos. “Fiquei traumatizada e a minha mãe muito irritada, porque tinha acabado de comprar dois livros dela que me esqueci numa paragem de autocarro. Quando lá voltei já tinham desaparecido”, conta. A verdade é que o universo literário e artístico de Natália Correia nunca mais desapareceu do seu imaginário.

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Na mátria cósmica de Natália

“O poema não é o canto/ Que do grilo para a rosa cresce. / O poema é o grilo/ É a rosa/ E é aquilo que cresce”: declamam-se os versos do poema e volta a olhar-se ao espelho. É Natália Correia em primeira pessoa que nos continua a interpelar. Estamos no passado, por vezes no presente e de certa forma sempre a olhar para o futuro. A mulher do Estado Novo é “mãe da família” e são donas de casa com especialidade em economia das artes domésticas. A poetisa contrapõe: “Não aceitei essa disciplina que me era imposta de fora, não aceito nenhuma que me seja imposta”. Fazem-se críticas à classe intelectual, sobretudo aos escritores que procuram não ser emotivos, e Natália reconhece em si as qualidades precisas para exercer espionagem. Estamos nesse universo muito seu.

Voltamos uma vez mais à biografia. Em especial durante as décadas de 1950 e 1960, era na sua casa que se reunia uma das mais vibrantes tertúlias de Lisboa, onde compareciam as mais destacadas figuras das artes, das letras e da política (oposicionista) portuguesas e também internacionais. A certa altura recorda-se os processos em tribunal e a censura, nomeadamente pela publicação, em 1966, da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, considerada ofensiva dos costumes. Para a autora de Descobri Que Era Europeia: impressões duma viagem à América (1951), era urgente ter sucesso na luta do povo contra um regime que discriminava e censurava a liberdade, assim como era urgente pôr fim à guerra colonial, onde “não se limpam armas” e se perdiam gerações de jovens portugueses.

À sua utopia libertária, Natália Correia chamava de “mátria” cósmica, um conjunto de características femininas que devem ser retomadas elevadas à cena cultural. Era também a sua forma de criticar o poder patriarcal que em Portugal acirrava com a política de repressão. A certa altura de O Dever de Deslumbrar, abrem-se novos caminhos. A 25 de abril de 1974, dá-se a Revolução dos Cravos e Natália começa a escrever aquele que é, ainda hoje, uma das obras mais destacadas do seu percurso: Não Percas a Rosa. Ouve-se a canção de José Mário Branco, com letra sua: “Dão-nos um bolo que é a história da nossa história sem enredo e não nos soa na memória outra palavra que o medo”.

A Natália de "O Dever de Deslumbrar" corrobora a imagem de uma mulher “muito construída pelo tempo”, explica a encenadora Ana Rocha de Sousa

Mas nem tudo foram rosas no processo revolucionário. Também Natália se desiludiu, ainda que não se tenha desligado da política. Contra outras formas de totalitarismo, a peça aborda a sua entrada para o Partido Social-Democrata. “Cometo o crime de ser flexível, compassiva e humana”, diz. Nesses anos antecipa também o futuro. “No ano 2000, sociólogos vaticinaram que o poder transitaria para a liderança feminina”, mas acima de tudo, diz não se importar que os homens fiquem a gerir as coisas menos interessantes desde que a política de desenvolvimento cultural seja um pelouro das mulheres. “Com esta mulher existe, em muitas de nós, existe a possibilidade de se encontrar uma conexão, mesmo que por vezes ela fosse contraditória ou polémica”, salienta a encenadora.

“Há muitas coisas que ela disse, numa época difícil e complexa, que foram de uma grande coragem. Sou uma grande admiradora da força dela”, sintetiza. A Natália de O Dever de Deslumbrar corrobora a imagem de uma mulher “muito construída pelo tempo”, explica Ana Rocha de Sousa, mas é por isso que a consegue compreender. Tudo isto, leva-nos a interpretação e ao lugar que hoje também ocupa. É por isso que a peça não esquece o tempo que vivemos.

São as próprias Natálias em palco que citam nomes de mulheres assassinadas ou violentadas pelos maridos. Criticam-se os juízes, numa clara ligação com alguns casos polémicos que têm sido debatidos na opinião publico ao longo dos últimos anos. Essa viagem para o agora, diz a encenadora, surge porque, “infelizmente continua a ser preciso dizer e falar destes problemas”. Ser mulher continua a ser um arriscar. O machismo na nossa sociedade continua a ser a prova dessa mátria que não se realizou ainda. “É demolidor e emociona-me ter a oportunidade de dar voz a isto, porque quero mesmo que não esqueçamos esta realidade que ainda se vive”, acrescenta Ana Rocha de Sousa.

Estamos para lá do dispositivo cénico o estético. As palavras de Natália Correia, no passado como no presente, emanam urgência. “Talvez a pergunta a fazer seja: o que fazer por estas mulheres, senhores Juízes?” diz. Mais do que tudo, nesta peça celebra-se a vida de uma escritora prolífica que ainda se interroga, tanto jovem como na idade mais avançada, sobre porque é que se começa a escrever. A resposta é ‘não sei’. “Não te posso responder e penso que todo o escritor que te responder dá-te uma resposta abstrata para não dizer falsa”, explica Natália Correia. Talvez este diálogo consigo própria seja precisamente o livro que tentou escrever durante a sua vida. Agora em palco é, sinal da sua memória, mas também uma carta para as gerações vindouras.

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