Reconhecido contista, poeta, dramaturgo e ensaísta, José Viale Moutinho lança agora, com selo da Caminho, A estranha vida dos ausentes, um compêndio de mais de cem curtos contos, escritos entre 2020 e2021, num total de 302 páginas. Como contista, já o autor é conhecido pelo público, tendo arrecadado duas vezes o Grande Prémio do Conto Camilo Castanho Branco: Cenas da vida de um minotauro (2000) e Monstruosidades do tempo do infortúnio (2000). O trabalho do autor conta com livros traduzidos para várias línguas, incluindo o russo, o búlgaro e o asturiano.

Ler A estranha vida dos ausentes vai dando uns certos de ares de vertigem. As histórias são curtas, os ambientes são bem montados e há uma originalidade que nunca parece perder-se. Em vez disso, a cada página o texto renova-se: com uma técnica irrepreensível, o leitor nunca fica à margem de um poder de criação que evita a repetição. Ao mesmo tempo, a efabulação que o autor traz às narrativas é de particular destaque, uma vez que nunca passa ao lado a estranheza que parece imprimir-lhes. Entre uma e outra história, o leitor navega sem saber bem para onde vai. Aqui e ali, há um certo tom de Juan José Millás, a ideia de se estar perante um impossível – e de haver a suspensão do possível para que a literatura se faça. Isto fica visível logo no primeiro conto, “Comprar dois chapéus”. Aliás, isto fica visível no primeiro parágrafo do livro, deixando alta a expectativa para os textos seguintes:

Encontrava-me numa chapelaria bem conhecida. (…) perdera a cabeça que habitualmente usava entre os ombros. Aliás, mal se abriram as portas de vidro automáticas, o segurança achou que o cliente era um tanto estranho, diferente de todos os outros. Casa fundada em 1837.” (p. 13)

Dois mundos não chegam a entrar em conflito, porque a prosa os naturaliza. O elemento surrealista contrasta com o pormenor que pretende criar a realidade, o facto, desviar a atenção do leitor do elemento de estranheza, até assumindo a estranheza dentro do próprio texto – e assumindo-a, por isso, como apenas um dos elementos da composição interna. É isso que faz o trecho “Casa fundada em 1937.” Com uma só frase, o autor consegue o equilíbrio entre a prosa que pretende ser chão dentro da narrativa e a que é o resultado de asas abertas para o pleno voo da ficção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR


Título: “A estranha vida dos ausentes”
Autor: José Viale Moutinho
Editora: Caminho
Páginas: 304

Contudo, a expectativa que se cria com o primeiro conto acaba por bater ao lado: espera-se uma surpresa, mas virá outra. No conto “La Traviata”, por exemplo, a experiência é outra, tanto em termos de estética como de temática; ali, em tudo a estrutura narrativa difere, o que nunca dista do primeiro conto é a elegância. São apenas cinco parágrafos, e o último tem apenas uma palavra. Na pequena estrutura, há um texto onde fica clara a relação intertextual com o texto que deu corpo a Marguerite Gautier, a Dama das Camélias, e portanto diálogo directo com Dumas, e onde, em meia dúzia de pinceladas, fica feito o reflexo de “um amor mal embrulhado num papel de cigarro, desesperadamente a escrever um romance lírico” (p. 94). Os contornos incisivos do texto, e, em concomitância, simbólicos, dão a este pedaço de prosa laivos de poesia, ao mesmo tempo que de imagem viva (e daí a ideia das pinceladas): “(…) erguia um cálice de Porto, que verteria sobre o seu corpo fremente à hora do amor” (p. 94).

Um pouco mais adiante, em “A inquietação de um romeiro”, um texto escrito na primeira pessoa, temos um tom de prosa épica. Distancia-se esteticamente de muitos dos anteriores, o que inclui estes dois a que aqui fazemos referência. Por exemplo:

Ouçam bem, naquela rua estreita e obscena nasceu o mais prodigioso feiticeiro do século vinte, mas em que navio zarpou para as américas? Que dores levava consigo, que projectos, que telas enroladas, que pincéis usou durante a viagem do desterro, que desterro? Tantos foram os seus, porque todos eram seus companheiros e a todos fez companheiros do espírito no último dos seus planos, um marquês único pela força do povo, o de Sargadelos. Isso foi ele, na prosa do tempo, libertou-o das leis da morte essa bandeira tecida com os fios da aranha que gere os sonhos.” (p. 103)

Isto, por si só, já mostra três vertentes deste conjunto de textos: o gosto por brincar com a possibilidade como quem descobre o mundo, o diálogo com a ficção, a literatura como mãos metidas na massa que é a vida, que é a história. E em nenhum deles, malgrado as diferenças, se perde o tom permanentemente onírico, permitindo ao leitor, apesar das guinadas do inesperado, a mesma sensação de enlevo até ao fim. Ora, logo no conto seguinte, “Lazarillo, o outro”, temos uma mistura de dois destes elementos. De um lado, há um homem perante a vida, e aparece logo em plena acção: “Estava eu na ponte romana de Salamanca” (p. 105). Um homem mete conversa, mas não um homem qualquer: apresenta-se como “Lazarillo, um desgraçado”, diz ter sido “moço do cego Trajano”, e a acção desenrola-se num tom subtil e dual: o narrador descreve a interacção como a tentativa de um engodo. Ao mesmo tempo, o próprio Lazarillo volta a trazer à prosa um tom épico:

Lazarillo deixou de correr mundo quando se livrou do cego que o espancava e lhe dava fome. Foi soldado nas índias espanholas, entrou em mil batalhas e agora encontrava-se ali, carregado de anos e de raiva.” (p. 107)

Esta vontade de concatenar os elementos parece marcar este A estranha vida dos ausentes. Para quem lê, nunca há um caminho fácil, porque não há um caminho a direito. O que há sempre é um desconcerto.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico.