Logo em 1967, pouco depois de estrear a sua primeira peça, Peter Handke afirmava: “Não tenho temas sobre os quais queira escrever, só tenho um objetivo, compreender-me melhor”. A frase, algo solipsista é, ainda assim uma profecia auto-realizada. De facto, Handke e as suas personagens são uma espécie de Édipos carregando mundo fora o enigma da sua origem como um buraco negro que tudo suga, mas que os impele a continuar.
Da poesia aos filmes, dos romances ao teatro até ao seu polémico apoio a Slobodan Milošević, a sua biografia mistura-se com a ficção onde ele tenta capturar a passagem do tempo com a eternidade daqueles instantes em que as sensações são mais verdadeiras. E talvez em nenhuma outra obra ele tenha avançado tanto pelos territórios e paisagens da sua história pessoal como neste longo monólogo que intitulou Tempestade Ainda, a partir de uma didascália da peça Rei Lear, de Shakespeare.
A obra, escrita para teatro, é uma longa conversa de um homem com os seus mortos, ao mesmo tempo é uma forma de dizer que nem sempre a história é escrita pelos vencedores. Há também a história dos derrotados, dos perdedores, dos que perderam a terra, a língua, o direito a existirem.
Peter Handke fala da minoria eslovena na Caríntia do século XX, terra da sua família materna. João Lourenço traz a peça para o Teatro Aberto, para falar sobre os que arriscam a vida para conquistar a dignidade. O espectáculo, que se estreia esta sexta-feira, 15 de dezembro, não poderia ser mais atual. E nos jovens tios de Handke que morrem como partisans no único núcleo de resistência organizada a operar no interior do III Reich — uma história esquecida —, não podemos deixar de ver a Ucrânia, a Palestina e todos os que nestas e noutras guerras lutaram a partir de um lugar de menoridade, de fragilidade. Em simultâneo, é um olhar sobre a mais inocente e perversa humanidade.
Escrita em 2010 e estreada em Salzburgo em 2011, Tempestade Ainda esteve em cena, nesta cidade, entre 2011 e 2019, numa versão de quatro horas e tornou-se uma peça de culto a juntar a tantas outras obras de Peter Handke que ajudaram a enformar o imaginário artístico ocidental da segunda metade do século XX, do Poema à Duração aos filmes As Asas do Desejo, A Mulher Canhota, A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalti, até novelas tão belas quanto estranhas como A Hora da Sensação Verdadeira, Breve Carta para um Longo Adeus.
Não poucas vezes as suas obras geraram mal-estar e polémicas por arriscarem querelas com o público, na melhor tradição austríaca que vai de Karl Kraus a Thomas Bernhard. Ofender o Público, a peça vanguardista com que se estreia, em 1966, confirma-o logo como potencial agitador, mal-criado, perigoso. Curiosamente é essa a peça que marca a descoberta da sua obra em Portugal, quando é levada a cena, em 1972, pelo Grupo 4 (futuro Teatro Novo) onde estava o jovem ator João Lourenço. Uma encenação que desafiou o público e a censura, um gesto corajoso, que Lourenço não encontra na sociedade e no teatro atual.
Mais de cinco décadas volvidas Peter Handke tornou-se um prémio Nobel melancólico, que já não quer provocar mas resgatar do esquecimento “a sua gente”. Por isso, nesta obra, por muitos já considerada o corolário da sua dramaturgia, ele abdica das disdascálias e transforma-as em longas digressões dentro da sua imaginação. João Lourenço explica que, sem cortes, esta obra daria para uma peça de 10 horas. Em Salzburgo, teve uma versão de 4 horas e, em Lisboa, terá, sensivelmente 2 horas e 15 minutos.
Escrever para salvar os mortos
“Aceito a minha morte, mas não a dos meus antepassados.”, disse Handke sobre esta peça que começa com uma recordação vaga de estar com a sua mãe (que se suicidou , em 1971) sentado num banco no meio da planície da Caríntia, região no sul da Áustria, durante muito tempo ocupada por uma minoria eslovena, à qual pertencia a sua família materna. Uma família de camponeses que falava os dialetos eslavos e na qual a mãe do poeta, uma jovem atriz amadora chamada Maria, era a única que falava o esloveno “puro”.
Na Áustria de língua alemã, falar esloveno era um anátema e dentro da comunidade de eslavos da Caríntia falar alemão também não era bem visto. Filho de um soldado alemão casado, que abandonou a rapariga eslovena grávida, Peter Handke cresceu entre dois mundos e duas línguas às quais nunca sentiu pertencer. Esta peça, onde se fala e se canta em esloveno, alemão e inglês é também uma espécie de reconciliação com a suas origens eslavas, com a sua mãe e com o teatro que ele diz ser” a mais profunda experiência de comunidade”.
Contada como uma viagem no tempo, em que o velho narrador fala com a sua mãe e os seus avós e tios ainda jovens, na peça é usado o mesmo dispositivo que Ingmar Bergman inaugurou no filme Morangos Silvestres. Porém, a narrativa pessoal Peter Handke não visa ser uma viagem em volta do seu umbigo mas um dispositivo narrativo para fazer ressurgir a trágica história dos eslovenos da Caríntia, que lutaram contra Hitler, contra a língua alemã, a língua da morte, e pela sobrevivência da língua eslovena
Entre esses soldados que tombaram nas florestas e montanhas austríacas estão três dos irmãos da sua mãe, mas está também a utopia que os mobilizou: verem a sua existência e a sua cultura reconhecidas, aceites. Nada disso aconteceu, pois à queda da Alemanha seguiram-se os desmandos e a violência dos Aliados, a história dos resistentes da Caríntia foi apagada, a Eslovénia entregue bloco soviético e, depois, nos anos 90, à guerra civil.
Contada em cinco partes, com dez atores e dois músicos, a encenação de João Lourenço, com dramaturgia de Vera Sampayo Lemos, a peça opta por uma economia de meios, um minimalismo propositado para que o texto possa ressoar, um “teatro puro” que Handke quis que fosse o âmago deste espetáculo. Os atores e atrizes trazem-nos a beleza da língua eslovena nos seus ritmos alegres, sombrios ou saudosos e convidam-nos a abrir o coração ao que nos é estranho, estrangeiro como uma possibilidade de ver os outros para lá do guetto do exotismo ao qual a ditadura do turismo a todos condena. No fim, não há redenção, nem alívio, porque, até no seu paraíso perdido, Peter Handke encontra perversidade e injustiça. E porque o fim, está o principio ficamos com uma certeza: a única terra que nos acolhe verdadeiramente é a memória. Nela caminhamos, dela somos herdeiros.
Peter Handke é interpretado por João Pedro Vaz e a família por Carolina Picoito Pinto, Crista Alfaiate, Luís Barros, Manuel Sá Pessoa, Mia Henriques, Sérgio Praia e Susana Arrais. O espetáculo conta ainda com os músicos Carlota Ferreira e Ernesto Rodrigues.
“Tempestade Ainda” estará em cena na Sala Azul do Teatro Aberto, na praça de Espanha, em Lisboa, até março de 2024, com récitas à quarta e quinta-feira, às 19h00, à sexta-feira e sábado, às 21h30, e, ao domingo, às 16H00.