O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o bispo José Ornelas, diz que veria com bons olhos transformações na Igreja Católica como a eventual ordenação sacerdotal de homens casados ou a atribuição às mulheres das responsabilidades que hoje são exclusivas dos membros do clero, mas com um alerta: essas transformações têm de resultar de um estudo profundo e não podem ser interpretadas como “simples paliativos” ou como “um remédio para a falta de padres”.

Numa entrevista ao jornal Público, José Ornelas fez um balanço do que foi o ano de 2023 para a Igreja Católica em Portugal e no mundo — um ano ainda marcado pela crise dos abusos sexuais de menores, pelo aprofundamento de divisões entre progressistas e conservadores, por um sínodo que trouxe novidades metodológicas ao modo como a Igreja toma decisões e até, já na reta final do ano, por uma decisão formal do Vaticano de permitir a bênção de casais de pessoas do mesmo sexo.

No entender de Ornelas, o ano de 2023 mostra que “as mudanças já estão a acontecer” dentro da Igreja. O mais importante, defende o bispo de Leiria-Fátima, é “as pessoas estarem a ganhar consciência de que, com o batismo, são cidadãos de direitos e deveres e também de responsabilidades e corresponsabilidades dentro da Igreja”. Para o bispo, é fundamental que, dentro da Igreja, se rompa com a longa tradição de centralizar o poder em torno dos membros do clero — e o Papa Francisco está a “pôr em ação o modo de pensar do Concílio Vaticano II”, que “inverteu a pirâmide” e pôs o povo de Deus no topo da hierarquia.

José Ornelas, que é desde 2020 o presidente do organismo que congrega todos os bispos católicos portugueses, admite que as transformações pelas quais a Igreja está a passar podem aprofundar algumas divisões. Por exemplo, o Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade, que colocou os leigos no centro do debate, foi mal recebido por muitos. “Há muita gente, muitos padres, que acharam que isto era uma manobra para desautorizar os padres”, assume Ornelas, que acrescenta: um padre que “fala assim quer dizer que entendeu o seu apelo do avesso”.

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Relativamente à recente decisão do Vaticano de formalizar a possibilidade de a Igreja abençoar casais de pessoas do mesmo sexo, José Ornelas diz que o Papa “valoriza” o facto de haver pessoas que procuram uma bênção de Deus — e não o facto de estarem ou não em situações que a Igreja classifica como irregulares. Sublinhando que nunca abençoou um casal homossexual por nunca se ter proporcionado a ocasião. “Mas abençoei casais em situações irregulares, cujo casamento se desfez e que voltaram a casar civilmente.”

“É preciso entender que o Papa não mudou a doutrina. O que ele diz, mais do que da doutrina, parte do Evangelho. E o Evangelho é, antes de mais, anúncio da presença de um Deus que vem ao encontro de pessoas, de pessoas normais, que são também pessoas limitadas e que cometem erros. E Jesus foi especialista em ir ao encontro destas pessoas. Por isso digo que o Papa se centra na realidade do Evangelho quando diz: ‘Vejam que o Evangelho não é um código penal feito para julgar as pessoas. Eu não vim julgar, vim salvar, acolher.’ Quando se põe isto deste jeito, começa-se a perceber as coisas de outra forma”, diz Ornelas.

Sobre eventuais transformações no próprio modelo sacerdotal — por exemplo, a ordenação de homens casados e de mulheres —, Ornelas destaca que “o Papa já tem dado passos” no que toca a um alargamento do poder de tomar decisões dentro da Igreja. Recordando que já há padres casados não só em denominações cristãs fora da Igreja Católica, mas também dentro da própria Igreja Católica (por exemplo, na Igreja greco-católica, de rito oriental), Ornelas assume que em culturas diferentes essa decisão “pode levar um tempo diferente”.

Quando à ordenação de mulheres, trata-se de uma questão diferente do ponto de vista teológico, mas a verdade é que “há outras Igrejas cristãs, mas não católicas, onde existem mulheres que são padres”. Dentro da Igreja Católica, assume Ornelas, é necessária “uma reflexão ulterior” sobre o assunto. O recente sínodo, por exemplo, recomendou “que se retome o estudo deste passo”. Questionado sobre se, no futuro, lhe faria “espécie” ver padres casados e mulheres no altar, Ornelas respondeu: “Isso far-me-ia uma espécie positiva. Gostava que se fizesse assim, mas sem equívocos, porque estas mudanças não são simples paliativos, não são só um remédio para a falta de padres.”

José Ornelas assume também que, em momentos de renovação, haja uma resistência da parte dos mais conservadores. Há grupos atuais ultraconservadores que “nascem de um saudosismo do passado e de uma incapacidade de entender o mundo e as necessidade que este tem hoje de evangelização”, diz Ornelas, dando como exemplo a Fraternidade Sacerdotal de São Pio X, criada por Marcel Lefebvre na sequência do Concílio Vaticano II. “Respeito esses grupos, mas a certa altura é preciso clarificar campos e dizer que aquilo não é a Igreja.”

A “tendência” de “um certo retrocesso”, contudo, não acontece apenas na Igreja. Acontece em vários campos da sociedade, diz Ornelas, apontando grandes áreas como as ciências médicas, a biologia, a tecnologia e a inteligência artificial e falando de um “mundo que se está a refazer” e “onde os valores de ontem deixaram de o ser, mas em que não se criou ainda uma tabela de valores substitutiva”.

No caso concreto da Igreja, Ornelas assume que desde o Iluminismo que a instituição se sentiu “acossada” e se foi “fechando na sua redoma”, resistindo às mudanças na sociedade. Mas diz que é preciso ir às raízes dessa resistência e deixa um apelo aos mais conservadores: “Porquê a insistência de alguns na missa em latim? A missa em latim nem sequer é original. Porque é que não vão ao hebraico, ao grego, ao aramaico? Porque é que pararam num tempo?”

Grupo Vita está a ajudar a “apurar valores” de indemnizações a vítimas de abusos

O bispo de Leiria-Fátima falou também sobre a crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica. Questionado sobre os danos para a Igreja provocados pela revelação dos abusos, Ornelas corrigiu: “Não foi a revelação que provocou os danos: os danos foram causados pela realidade dos abusos. E a sua revelação é, a meu ver, parte do processo de cura.”

Assumindo que se cometeram “erros” durante o processo e que não houve “unanimidade”, Ornelas garantiu que a Igreja está agora comprometida na ação. Como já tinha sido noticiado, há quatro pedidos de indemnização “e outras pessoas declararam que eventualmente poderiam avançar por aí”.

Em causa não estão indemnizações no sentido jurídico do termo, que resultem de “um processo de aferição por parte dos tribunais de culpabilidades e de responsabilidades por danos causados”, mas compensações financeiras que representam uma forma de “ir ao encontro das pessoas, para saber das suas necessidades e do mal que lhes foi causado”.

Neste momento, disse Ornelas, o Grupo Vita está a ajudar a “apurar valores”. O dinheiro a ser entregue às vítimas virá das dioceses, mas, “se houver um responsável vivo, é a ele que as coisas se dirigem”.