À pergunta “já viste o Saltburn?” surge sempre outra, mais inevitavelmente ligada que uma gémea siamesa: “então e a cena da banheira?”. O profundo desdém que tenho por spoilers impede-me de descrever com detalhe o que faz o protagonista nesta tina sanitária, mas arrisca-se a tornar-se numa das cenas mais marcantes da década cinematográfica — ame-se ou odeie-se. É, aliás, uma das tendências recentes no Tik Tok, a de aproveitar as reuniões familiares típicas do Natal e passagem de ano para colocar a mãe, a avó, o pai ou a cunhada impressionável a ver um filme que começa de mansinho, mas depressa evolui para o desconfortável e para o grotesco.
Não é à toa que esta trend surge: Saltburn é um filme que, pelas suas características, dirá mais a uma geração mais nova (mas já com idade para ver um filme para maiores de 18 que merece de facto essa designação). Publicações como o The Guardian ou a Vulture perguntaram-se “é este o filme mais divisivo do ano?” e a questão não é ingénua. Há quem o considere fresco e disruptivo; há quem o ache imberbe e apenas motivado pelo choque. Mas uma coisa é certa: ao seu segundo filme (o primeiro foi o também polémico Uma Miúda com Potencial, de 2021, pelo qual ganhou o Óscar de Melhor Argumento Original), a realizadora e guionista Emerald Fennell é uma das vozes mais impactantes do cinema britânico, capaz de vir a cimentar uma obra com traços muito reconhecíveis e autorais, quase ao estilo de um Tarantino. Fennell que começou como atriz, tendo interpretado Camilla Parker Bowles nas temporadas 3 e 4 de The Crown.
Saltburn — que por cá não se estreará em sala, mas está já disponível no Prime, serviço de streaming da Amazon — é batizado pela casa de férias onde ocorre a trama. Oliver Quick (interpretado impecavelmente por Barry Keoghan, nomeado anteriormente para um Óscar por Os Espíritos de Inisherin), um humilde bolseiro recém-chegado à universidade de Oxford, com dificuldade e integrar-se. Até que cai nas boas graças do ricaço mais popular da escola, Felix Catton (Jacob Elordi da série Euphoria), que fica com pena da sua vida difícil (que inclui pais toxicodependentes e violentos) e por isso o convida a passar um Verão na sua casa (castelo? palácio?) de família, a tal Saltburn.
[o trailer de “Saltburn”:]
Aí Oliver conhece a mãe (uma Rosamund Pike que é um gosto de ver, sobretudo na cena em que a sua Elspeth está convencida que a música Common People dos Pulp é sobre ela), o pai (Richard E. Grant, um daqueles atores que nunca chega a protagonista, mas é sempre um ótimo secundário) e a irmã Venetia (Alison Oliver, de Conversations With Friends), além de outros amigos e familiares mais distantes que vampirizam a riqueza e ócio constante dos Catton. Oliver é uma espécie de pobrezinho de estimação, mas depressa as suas ações se tornam mais inesperadas e perturbantes. “Tu és uma traça. Calada, inofensiva, atraída por coisas brilhantes, a ir contra o vidro e a implorar por entrar”, diz-lhe a certa altura Venetia. Será mesmo assim?
Um dos fatores para a já citada divisão geracional entre as reações de quem vê o filme é o facto de Saltburn ser uma obra de época. Só que a época é 2006 — ontem para quem tem mais de 45 anos, mas um período chave de coming of age para quem ainda mal chegou aos 30. Segundo explicou a realizadora à revista de cinema Empire, a escolha deu-se porque “2006 era o tempo das patilhas, dos bronzeados falsos todos às manchas, de más extensões de cabelo, de telemóveis BlackBerry e de lenços de pescoço minúsculos e brilhantes — não interessa quão sexy ou rico tu eras, era difícil safar isso”. Além disso, Fennel ficou contente por poder mostrar um mundo em que ainda era permitido fumar em espaços fechados: “Nada faz algo pareceu mais um filme de época do que ver alguém a acender um cigarro num pub”.
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1280:720/c:1280:720:nowe:0:66/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2024/01/03160143/saltburn-2-1.jpeg)
![](https://bordalo.observador.pt/v2/q:84/rs:fill:1600:900/c:1600:900:nowe:0:0/plain/https://s3.observador.pt/wp-content/uploads/2024/01/03160200/saltburn-3.jpg)
▲ Saltburn é um filme que procura a controvérsia e por isso sabe à partida que vai causar reações adversas em quem se enoja ou choca com maior facilidade
Numa altura em que as listas de séries do ano que já lá vai se encheram de louvores a Succession, Saltburn é também uma reflexão sobre os milionários, o privilégio, o capitalismo — mas também a inveja e a mesquinhez de quem diz mal porque queria que lhe caísse o mesmo no prato da sopa. O filme tem sido descrito como sendo do subgénero “eat the rich”, numa menção da citação de Rousseau durante a Revolução Francesa: “quando as pessoas não tiverem mais para comer, comerão os ricos”.
Saltburn é um filme que procura a controvérsia e por isso sabe à partida que vai causar reações adversas em quem se enoja ou choca com maior facilidade. Mas não é por isso que se torna oco. Dentro de uma estética cuidada, bela, há um retrato irónico, revigorante, engraçado e grotesco em doses generosas, sem receio de ter mão pesada. Por vezes, alguns detalhes da narrativa são soterrados pela diversão pura, num filme desbragado e impiedoso. Há quem acuse o resultado final de ser pouco subtil. Mas sabe bem ter um bom panzer de vez em quando, a levar tudo à frente só porque se pode. E nunca mais se vai ouvir Murder On The Dance Floor, êxito mediano de Sophie Ellis-Bextor de 2001 entretanto esquecido, da mesma forma.