As Árvores surpreende logo de início. O leitor que lá cai não sabe bem o que esperar, mas sabe que o texto não obedece a convenções ou a bons comportamentos. As personagens falam como falam as pessoas, mesmo que isso implique a queda da ortografia como manda o dicionário. Também por isso, mas também por muito mais, enquanto se lê, tudo sabe a realidade, mesmo que o cenário pareça tão fora de tudo. É que, logo de início, temos um cenário que parece pertencer apenas à ficção, o que não faz com que pareça pertencer menos à vida.

Na cidade de Money, no Mississípi, começam a surgir homicídios macabros, entre o inexplicável e o gore. O ambiente é o de uma comunidade branca orgulhosa da sua pouca melanina, daí que a comunidade reaja com desconfiança quando dois detectives negros chegam para ajudar na investigação. O caso vai deixando a população perplexa, e os profissionais também, grupo a que se juntam os leitores: há pessoas brancas que aparecem mortas, desfeitas, e, ao lado, há um corpo desfeito, desta vez negro, de um homem que, vamos percebendo, que se parece muito com Emmett Till, um rapaz negro que ali fora linchado 65 anos antes. Isto acontece uma e outra vez. Diferentes pessoas brancas, mas sempre o mesmo rapaz preto parecido com Emmet Till.

A história de Till é impactante, e não serve os simples propósitos de um thriller ou de um policial, ainda que o livro tenha também esses contornos, instigando a leitura. É que, à medida que se lê, vai-se tendo acesso a um mundo que ainda não deixou para trás os linchamentos e o processo de transformação de um grupo em “outro”. A dada altura, pode ler-se: “O meu avô contou-me que no início de mil e novecentos se podia encontrar um negro enforcado ao virar de cada esquina.” (p. 90). Isto vai sendo atirado para a narrativa com um tom de banalidade que, talvez por isso mesmo, sublinha o seu impacto – para além do conteúdo, é o tom indiferente que vai deixando a marca.


Título: “As Árvores”
Autor: Percival Everett
Tradução: José Lima

Editora: Livros do Brasil
Páginas: 324

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Ao longo da narrativa, a figura de Till vai aparecendo, e o leitor vai tendo acesso ao caso em que um homem negro foi assassinado por dois homens brancos por alegadas ofensas a uma mulher branca. O tribunal ilibou os assassinos. Mais tarde, a mulher confessou que não houve ofensa alguma, mas o homem já estava morto. A justiça, claro, funciona com peso a cair para um lado, mostrando uma sociedade partida ao meio:

Uma mulher branca do Mississípi afirmou que um rapaz negro de catorze anos lhe tinha dito qualquer coisa indecente, e então o marido e o irmão dela  espancaram o rapaz, puseram-lhe arame farpado à volta do pescoço, deram-lhe um tiro na cabeça e atiraram-no da ponte para o Little Tallahatchie. A imagem do rapazinho no caixão aberto despertou a nação para o horror dos linchamentos. Pelo menos a nação branca. O horror dos linchamentos era o que a América Negra chamava de vida. Os assassinos (…) foram absorvidos por um júri formado só por brancos.” (p. 89/90)

Para lá disso, o caso em Money vai sendo acompanhado por casos semelhantes que vão ocorrendo por todo o país. Adensa-se então a narrativa.

Everett vai desfiando um policial hilariante, com diálogos desconcertantes, que expõem a vida através de uma piada. E, ao mostrar a realidade de um país, talvez seja injusto metê-lo só sob a capa de um policial. Há contornos de policial, claro, mas a narrativa está longe de se esgotar no concatenamento de pistas e na busca de respostas. O romance é muito mais do que o todo orgânico de um mistério. Em vez disso, pelas personagens contundentes que traz, abre a janela para um país, e através dela vê-se tudo: a ignorância aparece escancarada, o racismo também, e não há nenhuma tentativa de maquilhar essa realidade, antes de a expor com o que tem de bruto e real. As personagens soam a gente a falar, sem pó de arroz, e é também isso que vai sendo surpreendente, o que diz tanto sobre a maleabilidade da mão de Everett quanto sobre uma certa tendência, na literatura coetânea, para a esterilização da prosa.

Com alcance no passado e, em simultâneo, no presente, o livro dá acesso a um país em que a supremacia branca elegeu Trump sem nunca sair da caricatura racista. No caso do linchamento impune, e da não-reparação de um erro legal/histórico, embora intencional, respira a ideia de que o passado já lá vai e não há necessidade de reparação nenhuma, dando-se continuidade à permissão de actos sem consequências, crimes sem punições – isto, claro, para quem tenha a quantidade de melanina aprovada por um sistema racial hierárquico. É que, se o pecado de Till fora uma ofensa verbal, e se tal lhe valera a morte, os dois que o mataram puderam pôr fim a uma vida impunemente. Não é que, em termos gerais, se fosse julgar um assassinato menos grave do que uma alegada ofensa, claro. Os culpados brancos é que seriam sempre menos culpados do que os culpados negros. E não passa ao lado que, reposta a verdade, o caso nem tenha servido para um processo de consciencialização ou remorsos. A sentença passou a ser a do pragmatismo: um morto estava morto e nada havia a fazer. Para mais, na realidade retratada, os negros eram vistos como um só – uma entidade única em que todas as discriminações batem, transformados numa coisa pequena face à óbvia humanidade dos brancos, num sistema de menorização racial.

Esta ideia da identidade única vê-se até em detalhes, que, de tão escabrosos, têm graça. Veja-se este exemplo do momento em que os dois detectives negros chegam a Money:

Nunca tive ninguém de cor dentro da minha casa, tirando o homem da parabólica da televisão, e só nestes dois dias há três de vós a entrar aqui.” (p. 67)

O romance de Percival Everett é demolidor. Pegando em assuntos sérios, dá-lhes um tom permanente de leveza, e o leitor vai levemente pegando na seriedade, vendo o mundo. O tom permanente de humor é um gancho que garante que abra o livro fique agarrado até ao fim da leitura, contando sempre com uma elegância fina e com uma prosa escorreita que abdica de palha e de gordura. Assim, As Árvores é um romance contundente, completo, inteiro, abrangente.

A autora escreve segundo o antigo acordo ortográfico