Num astuto e bem sacado texto publicado na The New Yorker, Zadie Smith conta que, antes de se dedicar a escrever um romance histórico, o agora publicado em Portugal A Fraude (Dom Quixote), cultivava, com a melhor das artes da jardinagem intelectual, todo o tipo de aversões que um escritor – chamemos-lhe assim – moderno mantém em relação ao género romance histórico, visto como estética e politicamente conservadorão. Conta que costumava dizer que havia resolvido deixar de viver em Londres porque não queria dar por si, embalada pela crónica nostalgia inglesa, a escrever uma reinvenção romanesca de um período britânico qualquer. Até que. Até que deu por si numa armadilha — que afinal não o era. O romance histórico, descobriu, pode ir além da mimetização do passado em prosa do presente. Também é um reduto adequado para problematizar questões políticas, históricas, sociais. E problematizar é, sabemos, uma praia antiga de Zadie.

Em 2012, cruzou-se com uma história do século XIX que, como se costuma dizer, tinha a sua cara. Um episódio à volta de uma batalha judicial, cheio de especiarias coloniais, raciais, classistas, identitárias, que transportou durante anos até conseguir transformá-lo em literatura. A Fraude, romance publicado no inglês original no ano passado, traz, no seu eixo narrativo, um acontecimento-âncora, o (real) caso Tichborne, que serve à autora para uma problematização “sociológica”, histórica e literária.

Tratou-se de um julgamento em que Arthur Orton, talhante, se apresentou como sendo Roger Tichborne, herdeiro de generosa fortuna e de um título prestigiante, vítima de um naufrágio na costa brasileira, durante uma viagem em direção à Jamaica. A mãe de Roger, Lady Tichborne, baseada na convicção de que o seu filho havia sido resgatado por uma embarcação que trilhava os mares que a conduziriam à Austrália, mandou anunciar pelos jornais: ofereceria recompensa a quem encontrasse o filho. Tudo aconteceu no calendário da Era Vitoriana e originou paixões, debates e, como se diz hoje, polarizações. Página 397:

Em todo o caso, discutia-se animadamente o caso Tichborne. Tornou-se o único tema de conversa na padaria. O clube dos trabalhadores de Hurstpierpoint anunciava uma conferência com entrada livre – ‘A Traição a Sir Roger! Pode a lei prevalecer contra o poder’? – a realizar no salão do clube.”

Ao convocar as diferentes — e apaixonadas — perspetivas sobre este caso, a autora conseguiu reflectir sobre assuntos como a demagogia, o ressentimento contra as elites, os fanatismos políticos, uma espécie de movimento informal dos “sem-dúvida”, avessos ao simples conceito de interpretação: “Interpretamo-nos erradamente uns aos outros. Todo o nosso enquadramento social é uma série de interpretações erradas e compromissos”. A mentira das narrativas. A verdade dos factos. Ora, isso é uma forma de Smith, ao recriar o passado, questionar o presente histórico e algumas das suas patologias essenciais. Cumprir, de outro modo, o que tem feito desde o seu primeiro romance, Dentes Brancos, uma certa função política da arte.

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Pelo meio, há vários tópicos — talvez demasiados, que, se mitigados, poderiam reduzir o calhamaço — como uma espécie de “ensaio” sobre o carácter efémero da glória literária. Esse pontapé na divinização da literatura tem graça — e pertinência. A certa altura, Touchet comenta para si própria, enquanto observa que três meninas órfãs de mãe, esperavam a visita do pai, dedicado às artes escritas da imaginação: “Deus me guarde de escrever romances (…). Deus me guarde dessa trágica indulgência, dessa inútil vaidade, dessa cegueira!” Zadie também “ajusta contas” com Charles Dickens, omnipresente no crescimento da autora, a comparecer em modo mui humano.


Título: “A Fraude”
Autora: Zadie Smith
Tradução: Francisco Agarez
Editora: Dom Quixote

Páginas: 536

Em todo o caso, o interesse do livro não se esgota na problematização de um outro século — para dizer este. E até pode dizer-se que não é esse o movimento que gera um maior interesse especificamente literário ao gesto. O que traz basta literatura a A Fraude é, para lá de uma reflexão política em modo ficcional, a reconfiguração ficcional de figuras como o ex-escravo jamaicano Andrew Bogle, testemunha do processo, ex-trabalhador nas propriedades dos Tichborne, figura que se vai enredando cada vez mais num magnífico embuste, e, sobretudo, a edificação lenta da personagem Eliza Touchet, escocesa, viúva, prima por afinidade do escritor William Ainsworth, governanta na sua casa, e observadora maior dos acontecimentos.

Uma importante pesquisa sobre a natureza humana mora na forma como Zadie Smith conta a biografia da governanta, nas ligações que estabelece com as outras personagens — o primo, o escritor William Ainsworth, com quem tem uma relação complexa, feita de amor clandestino e sentido crítico —, na forma complexa como olha ao mundo, sempre assente numa ideia de que a verdade precisa de factos e de que a liberdade é o valor maior. Ou por outra: Touchet, que acumula uma miríade de conhecimentos, é, em si, uma espécie de presença-ausente, uma observadora-participante, e um símbolo maior, imperfeito e contingente da ideia de liberdade.

O leitor acompanha-a desde o momento em que recebe, na casa que governa, um rapaz que vai arranjar o teto, até a um desfecho anunciado subtilmente mas não desvendado, ocorrido depois dos últimos dias do julgamento, sobre o qual tem um juízo complexo e estimulante, e a um apontamento final sobre o final das cronologia de cada uma das pessoas-personagens. Durante o julgamento, sobre Bogle, a certa altura, revela um sentimento:  “Talvez ganhasse alguma coisa em comparação com os outros deponentes, que tinham tendência para lançar feitiços sobre si mesmos no banco das testemunhas, contando histórias completamente inventadas que depois se tornavam indistinguíveis da verdade, até para a sua própria mente”. Uma espécie de definição de literatura. “Era possível ‘saber’ que Sir Roger era uma fraude e ao mesmo tempo continuar a ‘acreditar’ em Bogle”. Um escritor, muitas vezes, é isto.

Nota também para o ambiente vitoriano, convincente, eficaz, paisagem de toda a ação, que Zadie consegue recriar. Aposta-se que este livro vai dar uma série numa plataforma qualquer. É aconselhado para quem gosta daquelas séries da Granada TV sobre a Inglaterra vitoriana. Mas chegará a mais gente. Agradará a conservadores de fato às riscas e a militantes progressistas pelas suas incursões — inevitáveis na autora – pelas causas do momento.