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A história da mãe preconceituosa, o pai resignado, o filho sexista e a mulher dele

“Definitivamente as Bahamas”, de Martin Crimp, encenada por Ricardo Neves-Neves, mergulha num mundo de aparências a partir da relação um casal de sexagenários. Estreia-se no Cineteatro Louletano.

Em palco, um casal de sexagenários, Tita (Custódia Gallego) e Gui (Marques D’Arede) relatam os feitos do filho Fred e da sua mulher Irene, a quem a vida corre muito bem
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Em palco, um casal de sexagenários, Tita (Custódia Gallego) e Gui (Marques D’Arede) relatam os feitos do filho Fred e da sua mulher Irene, a quem a vida corre muito bem

Em palco, um casal de sexagenários, Tita (Custódia Gallego) e Gui (Marques D’Arede) relatam os feitos do filho Fred e da sua mulher Irene, a quem a vida corre muito bem

Quantos conhecidos provérbios sobre aparências se podem aplicar às muitas histórias que as famílias contam à mesa ou em momentos de partilha? No seio de cada família há segredos e mentiras, histórias mal contadas ou simplesmente retratadas pela aparência. E tudo para manter um certo aspeto de normalidade. Tudo está bem, até prova em contrário, dir-se-ia. Ao entrarmos em Definitivamente as Bahamas, peça do dramaturgo inglês Martin Crimp, encenada por Ricardo Neves-Neves, com produção do Teatro do Eléctrico, que se estreia esta semana no Cineteatro Louletano (de 19 a 21 de janeiro), o ambiente floral e a alusão à vida em família não parece demonstrar o contrário. Mas as aparências – claro, está – enganam.

Somos aludidos e encarados, olhos nos olhos, pelos intérpretes. Em palco, um casal de sexagenários, Tita (Custódia Gallego) e Gui (Marques D’Arede) relatam os feitos do filho Fred e da sua mulher Irene, a quem a vida corre muito bem. Têm uma boa casa com piscina e viajam um pouco por toda a parte, tanto que nem sabem ao certo quais foram afinal os destinos turísticos por onde já passaram. Tenerife ou Ibiza? Muito possivelmente as Bahamas. Ele lê um jornal para ocupar o tempo, ela oferece bombons, trata das flores e mostra fotografias dos momentos felizes passados em família. O casal aluga um quarto da sua casa a uma jovem estudante originária da Galiza, Sabela (Cristina Gayoso Rey), que de vez em quando cruza a cena para pouco mais do que atender o telefone, mas cuja presença põe em xeque toda a normalidade que se tenta fabricar na descrição do quotidiano.

Tita enumera futilidades. Começa por falar do silêncio da casa, mas não se cala por um momento. No meio de tanto palavreado, revela preconceitos e estereótipos. As migrações, os povos de outros continentes cujos comportamentos reprova, entre muitas outras banalidades que um qualquer político populista coloca hoje no palanque do seu discurso. “Está psicologicamente provado que tudo o que é asiático só quer é dormir com uma europeia”, diz como exemplo, enquanto conta a história de uma tentativa de violação que a mulher do filho sofreu numa viagem a Manila, nas Filipinas. Construída sobre arquétipos, a peça que a princípio evidencia um ambiente idílico, logo põe a descoberto as fragilidades e os choques culturais, dos quais ninguém sai ileso. É a partir das “monstruosidades que diz que se mostra essa dificuldade de aceitar o diferente e o novo”, explica Custódia Gallego. Em paralelo, o espectador assume um trabalho de detetive face ao que é dito. Nada parece exatamente como é, e apesar do tom leve e coloquial, é na superficialidade que se esconde algo mais preocupante e grave. Lá chegaremos.

A depressão escondida de uma família

Originalmente escrita para a rádio, a peça de Martin Crimp contém uma forte carga irónica e de humor negro, servida a um ritmo vertiginoso e fervilhante. É normalmente apresentada com uma outra peça, Play House, em que o dramaturgo se debruça sobre a história de um jovem casal. Lida por Ricardo Neves-Neves durante a pandemia, Definitivamente as Bahamas encantou o encenador – que aqui apresenta um dispositivo muito mais intimista do que o habitual das suas criações – pela forma como traça o estado de graça desta família, sendo também um retrato do que é a solidão deste casal, depois da reforma, e das muitas crenças forjadas sobre a vida simpática e confortável que levaram até então. “Quando li esta peça, senti empatia pelos temas, por estas personagens e pelo tom incorreto com que falam, mas também por ser uma peça que é uma cavalgada constante, um comboio em andamento, sendo que o texto começa e acaba com uma espécie de adoração ao silencio que nunca acontece”, sintetiza.

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O casal aluga um quarto da sua casa a uma jovem estudante originária da Galiza, Sabela (Cristina Gayoso Rey), que de vez em quando cruza a cena para pouco mais do que atender o telefone, mas cuja presença põe em xeque toda a normalidade que se tenta fabricar na descrição do quotidiano

Às vezes realista, outras vezes caricatural, com uma escrita marcada pela tensão crescente, a peça vive num jogo paradoxal, entre a bondade e a maldade humana, entre a empatia e a falta dela. “Fala sobre a importância do outro, mas também sobre a desconfiança e o medo que se gera face ao desconhecido”, realça o encenador. Tal como há mais de três décadas, quando foi apresentada, a peça de Crimp destaca a importância dos valores morais e éticos, usados tantas vezes de forma utilitária, mas facilmente descartados quando o contexto social e político entra em ebulição. Ganha igualmente um significado renovado com a ascensão dos nacionalismos, do populismo e da xenofobia, em especial na Europa. E se nos anos 80 foi interpretada como crítica ao racismo latente e entranhado na classe média britânica, atualmente essa mesma leitura conduz-nos a outros comportamentos, também eles igualmente reprováveis.

À medida que a história avança revela-se o carácter sexista do filho Fred. Tita, a mãe revela também de si uma certa desconfiança pelo comportamento das mulheres “que se põem a jeito”. Torna-se claro que o público é convidado a instigar sobre o que está realmente mal nesta família. Mais claro ainda quando a jovem galega descreve um episódio com o filho do casal, que tem um comportamento reprovável com a mesma. Perante a incredulidade do casal de sexagenários, tudo parece ser camuflado pelo silêncio que ainda assim ganha sobre as possíveis consequências face ao comportamento do filho, como forma defensiva da sua integridade. Numa entrevista concedida em 2012, o próprio dramaturgo analisava o casal através de uma lógica de polos antagónicos – norte e sul – em que, “aconteça o que acontecer, se mantém unido”, mesmo que isso os possa colocar num lugar de desconforto e de choque perante as evidências.

Chegados a este momento, o desenlace revela uma espécie de “depressão escondida da família”, salienta Ricardo Neves-Neves. A vergonha toma conta daquele casal e o final fica em aberto perante o desconforto generalizado de todos, intérpretes e espectadores. Com uma ligação pujante face ao momento atual, marcado por uma ideia de cancelamento e de confronto entre perspetivas ideológicas e culturais, resta a importância da empatia, que supera a estrutura de qualquer família. “Tem a ver com todos nós, independentemente do lugar que ocupamos na sociedade”, diz a atriz Cristina Gayoso Rey. Com o devido distanciamento, cabe-nos a coragem de não nos mantermos em silêncio, sobretudo porque nesta conversa somos todos cúmplices e já não há desculpas, muito menos boas aparências a manter.

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