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A coragem de Leonore, a angústia de Florestan e o regresso à única ópera de Beethoven

Epíteto de celebração do poder popular e do triunfo sobre a injustiça, marcada pelo espírito da Revolução Francesa, "Fidelio", a única ópera de Beethoven, sobe ao palco do CCB para duas apresentações.

“A música de Beethoven é humanista e de ambições universais e estava à frente da sua época”, realça o maestro Graeme Jenkins, que regressa a Portugal para dirigir a Orquestra Sinfónica Portuguesa
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“A música de Beethoven é humanista e de ambições universais e estava à frente da sua época”, realça o maestro Graeme Jenkins, que regressa a Portugal para dirigir a Orquestra Sinfónica Portuguesa

ANTONIO P FERREIRA

“A música de Beethoven é humanista e de ambições universais e estava à frente da sua época”, realça o maestro Graeme Jenkins, que regressa a Portugal para dirigir a Orquestra Sinfónica Portuguesa

ANTONIO P FERREIRA

Estamos perante uma casa que podíamos situar temporalmente algures entre os anos de 1960 e a década seguinte. Papel de parede, algum mobiliário estilo retro, carpetes no chão, um piano acústico, escrivaninha (também ela vintage) e a respetiva máquina de escrever. O ambiente é cinzento e, à partida, ambíguo perante a história que ali se irá desenrolar. Podemos estar na Alemanha de leste, marcada pela repressão da polícia secreta Stasi, ou em Portugal, às portas da Revolução de Abril. O que é que tudo isto tem a ver com o compositor Ludwig van Beethoven (1770-1827)? Nada e tudo – mas lá chegaremos. É neste cenário, dispositivo cénico da Staatsoper Hamburg e do Teatro Communale di Bologna, que se desenrola a ação de Fidelio, a única ópera composta pelo compositor vienense, estreada em 1805, marcada pelos ares de mudança que se manifestavam na Europa desde o implodir da Revolução Francesa, em 1789. Sobe agora ao palco do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, numa produção conjunta com o Teatro Nacional de São Carlos, para duas apresentações, dias 21 e 23 de janeiro, domingo e terça-feira.

Aos primeiros compassos da abertura de Fidelio, a mestria musical de Beethoven é irremediavelmente reconhecida. “A sua música é humanista e de ambições universais e estava à frente da sua época”, realça o maestro Graeme Jenkins, que regressa a Portugal para dirigir a Orquestra Sinfónica Portuguesa. Daí que não importe realmente o tempo onde se situa aquela que é a sua única ópera, acrescenta. Beethoven tinha um processo criativo tortuoso e dilacerado. Assim comprovam os numerosos cadernos de esboços de compositor, onde chegava a anotar dezenas de variantes de uma mesma frase musical e onde se pode constatar o ímpeto contínuo da reescrita.

Pela extrema autocrítica, mas também pela aspiração de tornar as suas composições universais, quase todas as suas obras foram objetivo de sucessivas revisões. No meio das suas muitas e celebradas criações, talvez nenhuma tenha uma génese tão conturbada como aquele que é a sua única ópera – composição que muitos críticos apelidam como sendo o seu “filho mais querido”. Apresentada pela primeira em 1805, Fidelio ou Leonora – conforme o compositor preferia chamar-lhe – conheceu ainda mais duas versões: uma de 1806 e uma final de 1814, esta última a que mais consenso reuniu e, também por isso, a mais correntemente interpretada.

“Fidelio é uma 'Rettungsoper', ou 'ópera de salvamento', um tipo de drama muito comum nos anos da Revolução Francesa, em que toda a trama se intensifica progressivamente, culminando num ponto crítico em que tudo parece estar perdido"

Antonio Pedro Ferreira

A que chega agora ao palco do CCB é precisamente a última versão que deixou, dividida em dois atos. Símbolo da liberdade, do poder popular e da luta contra a tirania e as injustiças, trata-se de uma obra marcada pelos ideais da Revolução Francesa, caros ao compositor. Com libreto de Joseph Sonnleithner e Georg Friedrich Treitschke, baseado na peça Léonore ou L’Amour Conjugal (1798), de Jean-Nicolas Bouilly, Fidelio assumiu desde a sua primeira versão – esta com três atos e muito maior em duração – a estética revolucionária. Pela tomada de consciência das desigualdades sociais agravadas, o texto tinha granjeado sucesso não apenas junto da burguesia, mas também das classes mais baixas.

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Além disso, a ópera de inspiração francesa tinha ganha espaço e destronara, quase por completo, as óperas italianas. Estavam reunidos os motivos para ter sucesso imediato, mas demorou. Quando estreou em 1805, Viena fora invadida pelo exército de Napoleão e o clima de terror não foi um bom ingrediente para a sua primeira apresentação. A segunda versão, de 1806, drasticamente reduzida pelo libreto modificado por Stephan von Breuning, agradou ao público, mas não foi suficiente para uma carreira mais longa. Passados oito anos, esse momento de aclamação chegou.

Como explica a musicóloga Inês Thomaz Almeida, num texto que acompanha o libreto, foi “no rescaldo do fim aparente da ameaça napoleónica (com Napoleão, pelo menos provisoriamente, na ilha de Elba), que Beethoven logrou levar à cena a sua versão final desta ópera (…) granjeando enorme êxito”. As modificações e a história que se narravam encontravam agora um eco mais definido e reconhecido entre classes. Nela canta-se, afinal, a história do amor e heroísmo de Leonore, que se transveste como Fidelio para poder libertar o seu marido Florestan, preso por motivos políticos. É essa a sua ambiência temática: “Fidelio é uma Rettungsoper, ou ‘ópera de salvamento’, um tipo de drama muito comum nos anos da Revolução Francesa, em que toda a trama se intensifica progressivamente, culminando num ponto crítico em que tudo parece estar perdido, até à entrada, no último minuto, de uma personagem que resolve inesperadamente a situação”, sintetiza o mesmo texto.

Uma ópera para falar dos sistemas repressivos

Não é de agora que existe uma certa tendência para distopias, sobretudo com motivos prisionais ou ambientadas em regimes de carácter totalitário. Mas os tempos que se vivem, explica o encenador da ópera, Georges Delnon, reverberam e não podem ser menosprezados. “Continuamos a enfrentar sistemas repressivos. Há guerras, prisões motivadas por razões políticas e um certo ambiente de desconfiança, onde parece que temos de olhar ao nosso redor antes de falar”, sustenta. O suíço que é, desde 2015, diretor da Hamburg State Opera, explica por isso o motivo que o levou a escolher o cenário de uma casa e não de uma prisão, como tantas vezes existe em Fidelio. Ao contrário do comum não há celas ou grades. Em vez disso, o palco entreabre-se, como que em gavetas dispostas na vertical, onde surgem alguns dos prisioneiros deste sistema.

“Precisava de uma situação credível e que tivesse ligação com algo que realmente conhecesse. Pensei nas casas que existiam na República Democrática Alemã e tinham exatamente este aspeto. Além disso, e como sabemos, respirava-se todo um ar de desconfiança e de opressão, que só terminou com a queda do muro de Berlim”, explica ao Observador. Por outro lado, quis trazer para este Fidelio um lado familiar, onde parece “sempre haver um certo conforto, mesmo que este se torne bizarro ou que mude subitamente”. São pessoas normais, as que coloca em palco, diz, mas vão mudar no decorrer da ação. “Algumas vão ficar do lado de Leonora (Fidelio), perceber as injustiças que ali acontecem e lutar por mudanças”. Não foi isso que fez com que afinal o muro caísse, deixa-nos a questão.

210 anos depois da estreia desta versão final, Fidelio serve como diagnóstico para os tempos e lembrança dos valores que se devem entoar

Antonio Pedro Ferreira

A pensar nessas mesmas mudanças, a verdade é que a ópera tem diálogos falados e Beethoven criou mesmo sonoridades diferentes para cada personagem, conforme os sentimentos e postura que tomam. Voltamos à cena: “Leonora não é o estereótipo do feminino, mas o arquétipo da coragem, movida pelo amor e desafiando obstáculos e convenções”, escreve Inês Thomas Almeida. À medida que se infiltra no sistema prisional para encontrar o seu marido, ganha proximidade a Rocco, chefe da prisão, simula um romance com a sua filha Marzelina e desafia Don Pizarro, governador da prisão. No fim, a salvação chega pela mão do ministro Don Fernando, que interrompe a execução de Florestan, seu velho amigo, e Leonore às mãos de Pizarro, mas não sem a união dos prisioneiro que surgem em coro.

Antes mesmo de ser colocada a questão, o maestro Graeme Jenkins faz um relato explicativo: “por estes dias, vários jornalistas foram presos no Irão apenas por fazerem o seu trabalho e manterem uma posição crítica ao poder político no país… isto explica porque é que a ópera de Beethoven ainda é relevante hoje”. Mais do que isso, explica, é obra de alguém que quis e foi “livre” e que “preferiu compor para uma audiência universal do que somente para um patrono ou para o círculo restrito da corte”. E a sua postura tem outros exemplos, diz Graeme Jenkins. “Quando escreveu a Sinfonia Heroica (1803), dois anos antes de Fidelio, tinha planeado chamar-lhe Bonaparte, mas ao saber que Napoleão se tinha feito proclamar imperador retirou a dedicatória”.

Chegados ao fim de Fidelio, o reencontro entre marido e mulher é mais completo e personalizado, adicionando uma dimensão mais intimista e comovente ao alcance universal do heroísmo de Leonora. O coro exalta o feito, celebra a justiça que existe para todos e os valores humanos que prevalecem. 210 anos depois da estreia desta versão final, Fidelio serve como diagnóstico para os tempos e lembrança dos valores que se devem entoar, mas também como forma de nos debruçarmos sobre a obra incomparável de Beethoven que continua a ter influência marcante. Como explica o maestro, “basta entrarmos na sala e escutar a sua abertura para logo dizermos ‘já sei que é Beethoven’”.

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