Lisboa teve tantos excêntricos, patuscos e loucos, que se podia fazer um livro sobre eles. Do “Burnay de pataco”, ou “Procurador-geral da coroa”, que corria os cafés e restaurantes do Chiado no início do século passado a pedir moedas de cinco tostões, ao Zé da Lata, que nos anos 80 dava voltas aos Restauradores a fazer relatos de futebol completos, com as equipas em liça todas certas, falando para uma lata de atum vazia, passando pelo Almeida da Facada, que tinha quartel-general no Parque Mayer nas décadas de 50 e 60, e fazia as coisas mais disparatadas que lhe pedissem (um dia, urinou nos sapatos de um polícia), foram muitos os que passearam as suas excentricidades, manias e tontices pelas ruas da capital.

Um dos mais coloridos, extravagantes e megalómanos foi Romão Gonçalves, que nas décadas de 20 e 30 do século XX deixou o seu nome ligado ao cinema, ao canto lírico, ao fabrico de bebidas espirituosas, à vida noturna e ao pugilismo. Natural, ao que parece, da Madeira, pertencente a uma família abastada e muito alto e gordo, Romão Gonçalves era mais conhecido por Tenor Romão devido ao seu amor pela ópera. Tinha uma voz potente, embora lá não muito afinada, gabava-se de dar impressionantes “dós de peito” e onde quer que cantasse era apupado e alvejado com os mais variados objetos. Quando lhe apontavam que o público não gostava dele, respondia que o seu talento era grande de mais para ser apreciado por ignorantes.

Comprou um clube noturno na Baixa, A Fila, onde se jogavam jogos de azar e Tenor Romão, como proprietário, podia cantar à vontade e à hora que lhe apetecesse. Fanático de boxe, envolvia-se regularmente em rixas para testar os seus pretensos dotes de pugilista, mesmo correndo o risco de perder os dentes de ouro e os diamantes que tinha cravejados na boca. Criou um licor, o Romanini, com base numa receita secreta sua, e que dizia ser “o melhor do mundo” e “fazer milagres”, como “dar vida aos mortos”. A sua imponente figura aparecia, desenhada ou em fotografia, nos rótulos das garrafas e nos anúncios ao Romanini e foi também imortalizada por caricaturistas e em bandas desenhadas cómicas desse tempo.

Em 1927, adquiriu o Cine-Tortoise (mais tarde Campolide-Cinema) e mudou-lhe o nome para Cinema Tenor Romão. Grande apreciador da Sétima Arte, Romão usou-a como veículo para o seu exibicionismo espalhafatoso e a sua megalomania contumaz. Entre 1920 e 1927, protagonizou cinco filmezinhos mudos, que também escreveu e produziu (um deles foi realizado por Rino Lupo), com títulos como Romão Gonçalves, Boxeur e Atleta, ou Romão, Chauffeur e Mártir. Num deles, A Visita do Rei dos Belgas a Lisboa (1920), Tenor Romão atira-se ao Tejo e nada na direção do navio que traz o monarca, enquanto canta o hino belga como homenagem.

Rodado em 1924, Aventuras de Agapito é um plágio das comédias americanas de Mack Sennett, em que Romão aparece na praia em Caxias, rodeado de beldades de fato de banho, que procura seduzir, acompanhado pelo Agapito do título. No seu último filme, As Aventuras de Tenor Romão — O Dó de Peito (1927), o nosso homem surge a dar o famoso “dó de peito” (que não se ouve, porque a fita é muda…), a beber e promover o Licor Romanini e a passear seminu nas ruas de Lisboa, usando apenas um pesado casaco de peles, como fazia sempre no Inverno, e com o seu fiel cão pela trela. Estes filmezinhos, infelizmente, perderam-se todos, mas a figura desmesurada e mirabolante de Româo Gonçalves nunca foi esquecida.

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