Três meses após ter tomado posse como bispo de Setúbal, o cardeal Américo Aguiar assume que a atual península sadina “não tem nada a ver com aquela imagem dos anos 80, da pobreza, das dificuldades, da fome, das bandeiras”.

“Há dificuldades, há problemas, mas temos um território com um povo espetacular, com capacidade instalada, com universidade, com indústrias, com empresas, com empreendedorismo, com jovens. Eu até digo a brincar: temos forças armadas, temos exército, temos marinha, temos força aérea, temos NATO, temos três/quatro empresas dos primeiros lugares do PIB nacional, por isso, temos tudo para fazer a diferença”, diz Américo de Aguiar, em entrevista à agência Lusa.

Para o mais novo cardeal português, aquele território precisa de uma “bandeira comum de futuro”, como nos anos 80 do século XX foram as bandeiras negras, mas agora sublinhando os aspetos positivos que “três meses de primeiro voo picado de reconhecimento” lhe mostraram.

“A minha conclusão primeira é que nos falta uma bandeira comum. Falta aqui uma bandeira comum para que este território possa ser aquilo que tem todo o direito de ser e tem todas as potencialidades de ser”, adianta o bispo, apontando, desde logo, para as potencialidades vitivinícolas da península.

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“Eu fiz a rota dos vinhos. Setúbal tem vinhos de referência mundial. Nós temos o Douro, temos o Alentejo e temos o Dão, marcas de vinho sem hesitação, mas gaguejamos em Setúbal. Porque é que nós gaguejamos numa marca tão forte da península de Setúbal quanto a vinhos? Não podemos gaguejar. Eu não sei se existe, mas a região demarcada dos vinhos de Setúbal tem de existir, tem de ser marca e temos de ter orgulho. Não podemos perder esta oportunidade”, afirma, embalando para outros exemplos: “vou à Secil, vou à Navigator, vou à Lisnave, vou ao Porto de Setúbal, eu vou aqui, vou acolá e só tenho razões para ter esperança no tal futuro de que o Senhor nos fala, das saudades do futuro”.

Citando Sebastião da Gama, diz: “É pelo sonho que vamos”, para logo sublinhar: “Se nós não sonharmos, não somos capazes de sair do mesmo sítio”.

Apesar desta nota de otimismo, reconhece que há problemas sociais, alguns muito específicos e prolongados no tempo, que já foram objeto de visita pelos outros bispos desde há 50 anos, exemplificando com o Bairro de Santa Marta, em Corroios.

“Há uma certa resignação, e quem diz isto, diz outros locais e outros bairros, mas são os problemas que nós, infelizmente, encontramos noutras geografias do país. Agora, eu estou convencido que temos aqui o que é necessário para fazer diferente e para retirar estes irmãos e estas irmãs destas dificuldades”, adianta Américo Aguiar, que também está consciente de que no seu território há “alguns núcleos de pequeninas Odemiras”, numa referência às condições em que se encontram trabalhadores imigrantes.

“Nós, neste território, temos pequenos núcleos de Odemiras, que não podemos aceitar, nem [com as quais] podemos compactuar, nem podemos permitir, nós sociedade e nós Igreja”, afirma, na entrevista a propósito dos primeiros três meses como bispo de Setúbal.

Com uma agenda preenchida de contactos nestes primeiros meses, Américo Aguiar admite que, por vezes, fica “emocionado com a generosidade e carinho” com que o interpelam, principalmente nos espaços públicos, “para cumprimentar, falar e manifestar muita esperança”.

“Eu peço é que não tenham esperança em mim e tenham esperança em Cristo vivo”, diz o cardeal, admitindo estar ciente “das expectativas que as pessoas depositam naquilo que foi e que é a visibilidade” que tem e a circunstância de ser cardeal, o que não é novo em Setúbal, e de que “só os mais antigos é que se lembram”, pois Setúbal já pertenceu ao Patriarcado de Lisboa e tinha cardeal.

Américo Aguiar tomou posse como bispo de Setúbal em 26 de outubro de 2013, na Sé local, sendo oriundo da terra natal do primeiro titular daquela diocese, o bispo Manuel Martins, que ali esteve entre 1975 e 1998.

Ambos de Leça do Balio, Matosinhos, têm outros pontos em comum no seu percurso – como terem exercido o cargo de Vigário-Geral na diocese do Porto ou liderado a Irmandade dos Clérigos -, e o presidente da Fundação JMJ Lisboa 2023 não esconde a admiração pelo seu conterrâneo que, em Setúbal, viveu os tempos conturbados do pós-Verão Quente de 1975.

Questionado sobre se a figura de Manuel Martins — o “bispo vermelho”, como era conhecido — ainda é uma referência em Setúbal, Américo Aguiar afirma que “sim, muitíssimo, principalmente nas gerações que conviveram com ele”.

“Isso também me enche de orgulho, de alegria e de gratidão, porque o senhor D. Manuel marcou efetivamente as pessoas que viveram neste território e, lá está, que viveram e partilharam um momento muito difícil das suas vidas, como famílias, individualmente e como comunidade”, acrescenta.

Bispo de Setúbal aposta na reorganização da diocese face a mapa “medieval”

Os primeiros tempos do cardeal Américo Aguiar em Setúbal já lhe indicaram que urge fazer uma reflexão sobre o mapa da diocese, ao nível das paróquias e vigararias, desejando que uma proposta de novo modelo esteja pronta em 2025.

O bispo decidiu criar uma comissão “que vai refletir sobre o mapa”, tendo como pressuposto um problema comum a muitas dioceses: “o mapa das paróquias é romano, medieval, milenar. E a realidade do terreno é outra“.

Américo Aguiar aponta, desde logo, para “pelo menos três autoestradas que rompem a diocese” – A2, A12 e A33 -, “e, portanto, o território está esquartejado. Depois, o território tem centros urbanos que não tinha. A população tem hábitos e circulações de mobilidade que são novas, há novos centros de interesse, há novos centros urbanos”, reconhece o prelado, para sublinhar a necessidade de adaptação à nova realidade.

“Não podemos continuar a insistir no mapa medieval, secular, para servir uma comunidade que já não corresponde a esse mapa”, afirma o cardeal, assegurando que a comissão “vai estudar o novo mapa paroquial, o novo mapa de vigararias”, de maneira a encontrar “uma estrutura diocesana, vicarial e de paróquias que possa corresponder melhor ao pouco clero e a cada vez mais pessoas”.

A apresentação da proposta é apontada para 2025, Ano Santo e que coincide com os 50 anos da diocese, para que depois o documento “baixe à realidade, ao terreno, aos paroquianos (…), para se pronunciarem de modo sinodal” e, posteriormente, seja feita a experiência de funcionamento.

Se a reorganização da diocese é uma preocupação, outra não menos importante é a presença no meio do seu povo.

Nestes três meses, percorreu o território, encontrou-se com autarcas, empresários, responsáveis políticos e associativos, tentando responder também aos muitos convites que lhe chegam de todo o lado.

Ao fim de 15 dias em Setúbal, foi possível vê-lo numa vigília em defesa do Serviço Nacional de Saúde, uma forma, como admite, de mostrar, como escreveu na sua primeira saudação à diocese, que “agora é de Setúbal”.

“Eu tenho dito que o Papa Francisco nos tem exortado, aos bispos e à comunidade cristã católica, que os pastores têm de andar à frente, têm de estar atrás e têm de estar no meio, com a comunidade. Há momentos diversos e há situações diversas, em que o nosso posicionamento tem de ser diverso também e sempre que este meu povo, católicos, cristãos, todos, todos, todos, precisar que o bispo amplie aquilo que são os seus gritos, as suas dificuldades, as suas festas, as suas alegrias, eu estou disponível”, diz Américo Aguiar.

O bispo acrescenta que isso inclui “ir aos jogos do Vitória, para gritar golo, ir à manifestação do Serviço Nacional de Saúde, de qualquer coisa da educação, de qualquer coisa disto ou daquilo, desde que tenha consciência de estar a ampliar o grito mais do que justificado de homens e mulheres que, neste território, sonham e querem construir as suas vidas”, pois “isso faz parte da identidade do pastor, que serve uma comunidade”.

Para já, já estabeleceu que a sua passagem pela diocese tem de significar, para as pessoas com quem se vai encontrando, que foi “alguém que se preocupou e que partilhou a sua vida com elas para ajudá-las a serem felizes e terem vidas um bocadinho melhores”.