Desde pelo menos 1999 que sabemos da existência de “Vemo-nos em Agosto”, um conjunto de cinco histórias que, de alguma forma, se tocam, criando aquele que há anos é conhecido como “o livro póstumo de Gabriel García Márquez”. O escritor morreu em abril de 2014. Algumas semanas depois, a viúva, Mercedes Barcha, anunciava que o livro nunca seria publicado. Após a morte desta, em 2020, os filhos de Gabo — Gonzalo e Rodrigo — invertiam tal decisão. Foi já no ano passado que ficámos a saber que 2024 seria o ano de um novo livro de García Marquez. O dia é este: quarta-feira, 6 de março, numa edição internacional que em Portugal é assegurada pela Dom Quixote. E também o dia em que o autor de “Cem Anos de Solidão” e “O Amor em Tempos de Cólera” faria 97 anos.

Regressamos ao tal ano de 1999, quando o jornal espanhol “El País” revelava detalhes do livro que o colombiano então escrevia e haveria de continuar a escrever até a deterioração da saúde (e o crescente estado de demência) tornar a tarefa impossível. Das diferentes histórias que compõem “Vemo-nos em Agosto”, temos Ana Magdalena Bach a servir de ligação entre todas. Uma personagem que sempre que chega agosto viaja até à ilha onde está enterrada a mãe. Diz-se feliz com o casamento, com a maternidade, a mesma felicidade que a cada agosto conhece um novo amante, na distância que a mesma ilha lhe garante. Mas há acontecimentos que ameaçam interromper esta costumeira exceção. 

No dia em que chega às livrarias, o Observador publica um excerto do inédito de García Márquez. Assim começa “Vemo-nos em Agosto”, o livro póstumo de Gabo:

A capa da edição portuguesa de "Vemo-nos em Agosto", de Gabriel García Márquez, publicada pela Dom Quixote, com tradução de José Teixeira de Aguilar

Voltou à ilha na sexta-feira 16 de agosto no ferry das três da tarde. Trazia jeans, camisa aos quadrados escoceses, sapatos simples de salto raso e sem meias, uma sombrinha de cetim, a mala e, como única bagagem, um saco de praia. Na fila dos táxis do molhe foi direita a um modelo velho carcomido pelo salitre. O taxista recebeu-a com um cumprimento de amigo e levou-a aos solavancos através da aldeia indigente, com casas de pau a pique, telhados de palmeira amarga e ruas de areia ardente frente a um mar em chamas. Teve de fazer cabriolas para evitar os porcos impávidos e as crianças nuas que se esquivavam dele com passes de toureiro. No fim da aldeia enfiou por uma avenida de palmeiras reais onde ficavam as praias e os hotéis de turismo, entre o mar aberto e uma lagoa interior povoada de garças azuis. Parou por fim no hotel mais velho e desmerecido.

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O rececionista esperava-a com a folha de registo pronta para assinar e as chaves do único quarto do segundo piso que dava para a lagoa. Subiu as escadas com quatro passadas e entrou no quarto pobre com um cheiro a inseticida recente e ocupado quase por completo pela enorme cama de casal. Tirou do saco um nécessaire de pelica e um livro intonso que poisou na mesa de cabeceira com uma página marcada pelo corta-papéis de marfim. Tirou uma camisa de dormir cor-de-rosa e pô-la debaixo da almofada. Tirou também um lenço de seda com estampados de pássaros equatoriais, uma camisa branca de manga curta e uns sapatos de ténis muito usados, e levou-os para a casa de banho.

Antes de se arranjar tirou a aliança e o relógio de homem que usava no braço direito, pô-los na prateleira do toucador e fez abluções rápidas na cara para se lavar do pó da viagem e afugentar o sono da sesta. Quando acabou de se limpar sopesou ao espelho os seios redondos e altivos apesar dos seus dois partos. Repuxou as bochechas para trás com os cantos das mãos para se recordar de como tinha sido em nova. Passou por alto as rugas do pescoço, que já não tinham remédio, e inspecionou os dentes perfeitos e recém-escovados depois do almoço no ferry. Esfregou com o frasquinho de desodorizante as axilas bem rapadas e vestiu a camisa de algodão fresco com as iniciais AMB bordadas no bolso. Escovou o cabelo índio, que lhe dava pelos ombros, e amarrou o rabo de cavalo com o lenço de pássaros. Para terminar, suavizou os lábios com batom de vaselina simples, humedeceu os indicadores na língua para alisar as sobrancelhas desencontradas, pôs um toque de Maderas de Oriente atrás de cada orelha e enfrentou por fim o espelho com o seu rosto de mãe outonal. A pele sem um rasto de cosméticos tinha a cor e a textura do melaço, e os olhos de topázio eram bonitos, com as suas escuras pálpebras portuguesas. Triturou-se a fundo, julgou-se sem piedade, e achou-se quase tão bem como se sentia. Só quando pôs a aliança e o relógio se apercebeu do seu atraso: faltavam seis para as quatro, mas permitiu-se um minuto de nostalgia para contemplar as garças que planavam imóveis no sopor ardente da lagoa.

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O táxi esperava-a debaixo dos bananais da entrada. Arrancou sem esperar ordens pela avenida de palmeiras até a uma clareira dos hotéis onde ficava o mercado popular ao ar livre, e parou numa banca de flores. Uma negra grande que dormitava numa cadeira de praia acordou sobressaltada pela buzina, reconheceu a mulher no assento posterior do automóvel e deu-lhe, entre risadas e palavreado, o ramo de gladíolos que tinha encomendado para ela. Uns quarteirões mais adiante o táxi meteu por um caminho quase intransitável que subia por um despenhadeiro de pedras afiadas. Através do ar cristalizado pelo calor via-se o Caribe aberto, os iates de recreio alinhados na doca do turismo, o ferry das quatro que regressava à cidade. No cimo da colina ficava o cemitério mais pobre. Empurrou sem esforço o portão oxidado e entrou com o ramo de flores no caminho entre túmulos sufocados pelas ervas daninhas. No centro havia uma ceiba de grandes ramos que a orientou para identificar a sepultura da mãe. As pedras afiadas magoavam-na mesmo através das solas de borracha sobreaquecida, e o sol áspero filtrava-se pelo cetim da sombrinha. Uma iguana surgiu do mato, parou de chofre em frente dela, olhou-a um instante e fugiu em debandada.

Calçou uma luva de jardinagem que trazia na mala, e já tivera de limpar três lápides quando reconheceu a de mármore amarelado com o nome da mãe e a data da sua morte, oito anos atrás.

Tinha repetido aquela viagem todos os dias 16 de agosto à mesma hora, com o mesmo táxi e a mesma florista, debaixo do sol de fogo do mesmo cemitério indigente, para pôr um ramo de gladíolos frescos na sepultura da mãe. A partir desse momento nada mais tinha de fazer até às nove da manhã do dia seguinte, hora a que saía o primeiro ferry de regresso.