“Cada um ficará com o souvenir da minha governação que quiser”, atirou António Costa, já a conferência de imprensa desta quarta-feira ia a meio. O evento tinha sido marcado para assinalar o final dos seus oito anos de governação, em jeito de balanço e, embora tenha sido ofuscado pela novela parlamentar em curso, permitiu que António Costa deixasse claro qual é o “souvenir” que quer deixar a Luís Montenegro em São Bento: a ideia de uma governação que deixa as contas em ordem, para que o próximo Governo tenha “liberdade” para governar. Ou que não tenha desculpas para não o fazer bem, como vai argumentando o PS em surdina.
Ao longo da hora e meia que passou a falar com os jornalistas, Costa fez um balanço de todos os aspetos mais positivos dos seus oito anos como primeiro-ministro (reconhecendo poucas falhas, já na reta final), com a marca das contas certas à cabeça. “É melhor decidir como gastamos o que temos do que andar preocupados em saber como pagamos o que temos de pagar”, disparou, colocando a pressão de gastar bem esse dinheiro — nomeadamente o do excedente que o PS deixa — no próximo Governo: “Felizmente deixei o Estado em condições de quer governos quer oposições terem mais liberdade de escolha”.
Recuperando o que disse serem méritos do PS, da recuperação do país após a crise financeira à forma como teve de lidar com a particularmente exigente crise inflacionista mais recente, Costa foi então questionado sobre a dimensão do excedente — e com questões sobre se este não deveria ter sido usado para resolver outros problemas do país, como tanto PS como PSD prometem (Costa recusou “perpetuar” o seu programa ou opinar sobre o que devem os partidos fazer com o dinheiro).
E fez a seguinte defesa do valor: houve um “crescimento significativo” da despesa pública em 2023, tendo-se verificado um défice na administração local e central, pelo que, argumentou, o facto de haver um excedente “não resulta de não termos feito nada”. Assim, olhou para o copo meio cheio e explicou o crescimento do valor com o “enorme” crescimento das receitas da Segurança Social e do emprego.
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De novo, a defesa do que esse valor significará para quem vier a seguir: “Eu com a experiência de ter começado a governar em défice, com ameaça de multa, em situação de défice excessivo, devo dizer que preferia não começar a governar assim”. E defendeu os benefícios que o excedente trouxe: “Já viu o que era o país não saber se tinha dinheiro para as vacinas ou os lay-offs?”, atirou. “Pudemos responder a isso porque tínhamos capacidade orçamental. O equilíbrio orçamental não é uma religião, é algo que devemos ter para podermos não o ter quando é necessário”.
TAP e aeroporto, duas pastas para o PSD
Os resultados positivos da TAP também lhe serviram para se congratular pelos números que o PS deixa, na hora da despedida — e aproveitou-os para lançar uma farpa para dentro do próprio partido. Depois de Carlos César ter admitido que o excedente poderá ter sido um “excesso”, e que poderia ter sido usado para resolver outras “pendências”, Costa não respondeu a perguntas sobre as declarações do presidente do PS — que espelham o sentimento de parte do partido — mas disparou: “Fico muito contente que a TAP tenha lucros e espero que ninguém ache que seja um excesso que a TAP tenha lucros”. O recado ficava dado.
Tanto na TAP, onde o novo governo poderá assim fazer o que quiser relativamente à privatização da companhia, como noutras pastas, Costa quis argumentar que deixa boas condições para o sucessor, mas também obra para inaugurar. Daí que tenha, esta semana, divulgado uma “pasta de transição pública”, além da normal, privada, entregue ao sucessor, para mostrar a obra que estava a lançar ou a executar e que já só será inaugurada por Montenegro. Uma tentativa de não deixar créditos por mãos alheias? “Quem sai tem também o dever de prestar contas”, atirou. “Os portugueses têm o direito de saber o que está em curso e o que o Estado fez com os investimentos que lançou”.
O mesmo para o eternamente adiado aeroporto: desta é que é, ou será, assegurou Costa, que culpou o PSD de Rui Rio por não ter alinhado em mudar a lei para desbloquear o impasse criado pela recusa de dois municípios em aceitar a nova localização. Agora, o PS deixa a pasta quase pronta, sublinhou: “Só terei pena se não houver decisão. Acho que fiz o que era correto e não me arrependo. (…) Com grande probabilidade irá tomar a decisão que eu iria tomar”.
Os erros, o almoço com Marcelo e o Costa-comentador
De resto, a exposição de Costa pareceu em tudo positiva: a apresentação de 23 páginas falou de um país “líder” no combate às alterações climáticas, que fez a regionalização “que era possível” (culpando por isso Marcelo Rebelo de Sousa, que é contra); o crescimento em convergência com a UE (“Todos gostávamos seguramente de que fosse mais, mas país cresceu 10 vezes mais do que nos 15 anos anteriores”); a maior qualificação do emprego e o menor abandono escolar; as percentagens de aumento dos salários (28%) e do salário mínimo (62%); a redução sustentada das pessoas em risco de pobreza, ainda que admitindo que o número ainda é elevado; e a forma como lidou com os incêndios, reduzindo a área ardida a partir de 2017, e a pandemia, com Portugal a ser o primeiro país a atingir 85% de cobertura vacinal.
Como se explica esse país que pareceu cor de rosa, apesar dos problemas que vão sendo assinaladas nos serviços públicos ou na Habitação, num momento em que o PS caiu dos 42% de votos que lhe deram a maioria absoluta para 28%? Costa agarrou-se aos “factos” e aos números que comprovam as maiores conquistas no Governo, e só no final, questionado pelos jornalistas, reconheceu algumas falhas. “Houve matérias nas quais gostaria de ter avançado mais depressa, medidas que não funcionaram como desejávamos”, admitiu, dando o exemplo do setor da Habitação e do “atraso” nos resultados que queria apresentar e dizendo acreditar que “ninguém antecipou” a dimensão da subia de preços que se verificou nos últimos anos.
Noutras áreas onde costuma haver muitas críticas, como o SNS, defendeu-se argumentando que olhando para os resultados é difícil aceitá-las, ou pelo menos não “entender que devem ser enquadradas”: por exemplo, a falta de médicos de família, que justificou com o facto de haver menos médicos mas mais residentes em Portugal, lembrando logo de seguida que hoje o SNS produz mais consultas e cirurgias — mesmo que não sejam as suficientes.
Olhando pelo retrovisor, deixou as críticas a Marcelo Rebelo de Sousa de lado e elogiou a relação que com ele manteve: a parte “mais relevante”, defendeu, não foram os momentos de desacordo ou tensão entre os dois — até porque os portugueses apreciaram “bastante” a boa relação dos dois protagonistas, sentenciou. Quanto ao seu futuro, chutou para canto: se ainda há dois dias Marcelo Rebelo de Sousa vaticinava que ainda se encontrarão noutras “encruzilhadas políticas”, meses depois de o ter lançado para o Conselho Europeu, Costa manteve a sua fama de “otimista” e concluiu que não terá sido mais do que “uma forma simpática de [o] convidar para almoçar ou jantar um dia destes”.
Costa voltaria a falar do seu futuro quando foi questionado sobre se estava arrependido de não ter alinhado na reforma para a Justiça que Rui Rio chegou a defender, agora que está a braços com um processo, cujo estado desconhece, na Justiça. “Admitindo que eu pudesse ter razões de queixa, nunca deixaria de achar que é uma mais valia termos um sistema de Justiça acima de qualquer suspeita de influência política e com MP que não é um braço armado do Executivo”, garantiu, dizendo “não saber mais nada a não ser o que volta e meia a comunicação social tem a amabilidade de informar”.
Sem novidades sobre o caso judicial, o futuro imediato passa apenas por entregar a sua própria pasta de transição, como primeiro-ministro, a Luís Montenegro no encontro que ambos tinham agendado para esta quarta-feira, marcando assim a sua “saída de cena” para que as atenções passem a estar focadas no novo governo. E, quem sabe, pode vir aí um futuro como comentador, gracejou, enquanto recusava comentar assuntos de atualidade — e lembrava que já fez esse papel no passado. A vida política fica, por agora, em suspenso.