O ressurgimento de Tom Ripley nos ecrãs convida a questionar se ainda há espaço para histórias assim, aquelas em que o espectador aceita ser enganado e manipulado. Até quando sabe que o está a ser e, mais importante, sabe para onde vai, neste caso se já tiver visto algum dos filmes ou se tiver ido à fonte, aos livros de Patricia Highsmith. Estamos dispostos a alinhar na mentira, a acompanhar a manipulação, a sentirmo-nos sujo com isso e a aceitar que, por vezes, a lógica tem de estar ausente? Para entrar ma mentira de Ripley é necessário aceitar tudo o que a série de Steven Zaillian nos dá, como nos dá e como tudo é resolvido.
Esta ideia surge porque os oito episódios de Ripley, que adaptam o primeiro livro de Highsmith em volta da personagem, O Talentoso Mr. Ripley, compõem um manual do psicopata. O romance foi publicado originalmente em 1955, cinco anos mais tarde foi adaptado para cinema por René Clément (À Luz do Sol) com Alain Delon no papel principal, e em 1999 foi Matt Damon quem vestiu a personagem no filme de Anthony Minghella (que manteve o título do livro). A personagem andou por aí, talvez não o suficiente para estar no imaginário da cultura popular, mas a influência está em todo o lado. Muitos modelos de psicopatas da ficção audiovisual — e não só — são baseados em Tom Ripley. Highsmith criou um arquétipo, sim, mas tornou-o muito real, relacionável. Hoje não é um estranho, Tom Ripley é um padrão, seja na ficção ou nos documentários de true crime. A escritora estava à frente do seu tempo.
O leitor, o espectador, quem quer que seja que está do outro lado, vai simpatizar com Tom Ripley. É obrigatório, não há hipótese. Voltando à ideia que começou este texto: estará o espectador ainda disposto a isto, a empatizar com o “inimigo”? Esse tipo de sentimento já passou por outras personagens recentes da televisão, seja Dexter ou Hannibal, mas são ambos assassinos em série e Dexter, que, de certa forma, começou esta moda na televisão, tinha um argumento indestrutível: o que ele fazia era no sentido do bem. Isso desculpava — com muitas aspas — o ato de decepar corpos.
[o trailer de “Ripley”:]
Ripley não é um assassino em série, mas um vigarista. Pelo menos é assim que o conhecemos no primeiro episódio da minissérie. O que se segue depois é a forma que um vigarista adota para sobreviver quando fica exposto, quando percebe que não pode continuar a exercer o poder que tem sobre as pessoas da mesma forma? E o que fazer depois de encontrar uma solução? Perpetua a mentira?
Ripley é uma série atípica para os tempos de hoje. Os oito episódios, com cerca de uma hora cada, acontecem a um ritmo próprio, não lento, mas com uma vontade enorme de deixar as coisas respirar, a acontecer. Acontecer, Steven Zaillian, que escreve e realiza todos os episódios, deixa realmente as coisas acontecerem, não se precipita a contar a história de Tom Ripley e deixa as coisas fluírem com naturalidade. No fundo, aceita que é necessário tempo para uma personagem se aperceber de algo, que o tempo é essencial para uma nova personagem surgir na história e fazer-se sentir. Fá-lo sem existir a armadilha de “filme longo”, mas com o sentido — hoje quase inexistente — de uma minissérie. Os oito episódios de Ripley importam, o Tom Ripley que se conhece em Nova Iorque no primeiro episódio é outro daquele que, a dado momento, embarca numa vida confiante em Roma, com certezas de que não precisará de fazer mais manipulações no passado.
Zaillian, argumentista de A Lista de Schindler, Missão Impossível, Gangues de Nova Iorque, Gangster Americano, Moneyball, O Irlandês, também foi argumentista e realizador de The Night Of, minissérie (também de oito episódios) da HBO, onde Riz Ahmed tem um dos papéis da sua carreira, sabe o que está a fazer. O estilo e ritmo de Ripley servem um propósito e esse propósito está a marimbar-se se o espectador fica aborrecido, se as coisas demoram a acontecer, se não é explícito o conceito de maturação. O espectador pode ficar aborrecido, mas isso é um problema dele. Ripley não é uma série aborrecida, longe disso. É exultante.
E é uma série estranhamente relacionável. Por exemplo, no terceiro episódio, a dificuldade que Tom Ripley tem em livrar-se de um barco é um dos grandes momentos da construção da relação entre o protagonista e o espectador (e, já agora, um dos grandes momentos de televisão deste ano): naquela encrenca, todos pensaríamos assim, em cima do joelho, a tentar todas e quaisquer possibilidades até uma resultar, ou parecer que resulta. Steven Zaillian faz-nos ver esse desenrascanço e, enquanto o fazemos, estamos no sofá a gritar por Ripley (podem ser apenas gritos mentais), a apoiá-lo, a chutar umas quantas barbaridades de “faz isto” e “não aquilo”. É relacionável. É quase interativo, pelo menos na mente de quem está no sofá.
Ajuda Tom Ripley ser interpretado por Andrew Scott, escolha ideal na forma como veste o caminho da personagem e torna todas as decisões credíveis, atirando a moralidade para o lado a favor da sobrevivência. Deste lado, queremos sobreviver com ele, ver até onde vai com este seu projeto, que começa quando o pai de um amigo lhe pede para ir a Itália tentar convencer o seu filho, Dickie (Johnny Flynn), que é tempo de mandar as aspirações artísticas às urtigas e voltar para casa. Até aí, só sabemos isto de Ripley: é um vigarista que falsifica documentos para tentar burlar pessoas. Parece um tipo pacato, com calo de sobrevivência.
Em Itália tudo muda. Ou Ripley já era assim? Não sabemos. O que se sabe é aquilo que se irá vendo, cena a cena, com Ripley a adaptar-se a cada momento, seja num diálogo circunstancial com Dickie ou numa conversa íntima com a namorada de Dickie, Marge (Dakota Fanning), que joga com a ideia de que as intenções do protagonista podem ser outras. Quais são? Na realidade, em termos estruturais, nunca se sabe. Tom Ripley adapta-se a cada momento para sobreviver, seja por dinheiro ou para se escapar de acusações. O que se sabe é que algo assim ainda funciona em televisão, por mais martelada que a nossa cabeça esteja por consumo rápido. A degustação de Ripley é mais do que recomendável. E, suspeitamos, Highsmith teria gostado de Andrew Scott e da imaginação de Steven Zaillian.