“Isto é uma festa. Se quiserem bater palmas, dançar um pouquinho, nós encorajamo-vos”, disse Alexander Sowinski — baterista e mestre de cerimónias dos BADBADNOTGOOD — logo no início da sua atuação perante uma Aula Magna esgotada para ver a banda canadiana. Seria um apelo banal em qualquer outro espaço; aqui, foi tentar fazer de um concerto para ver sentado num espetáculo para ver de pé, algo que demonstra a postura do trio de Toronto desde o momento que se apresentou ao mundo.

Os BADBADNOTGOOD (que, doravante, serão mencionados pela sua sigla BBNG, por motivos de espaço e paciência) ocupam uma curiosa posição liminar no panorama musical alternativo. São tidos pelo público como uma banda jazz de grande sucesso, apesar de muitos gatekeepers do género rejeitarem-nos e dos próprios não se reconhecerem enquanto tal (isto é, como uma banda de jazz; quanto ao sucesso, eles lá saberão).

© Gonçalo Silva/Last Tour

Costuma atribuir-se a Duke Ellington, gigante do jazz, a paternidade da frase “só há dois tipos de música, a boa e a má”, servindo para pôr de parte discussões estéreis sobre pureza de géneros musicais. Se assim é, então os BBNG são exemplo cristalino dessa máxima. Apesar do jazz ser, de facto, a sua formação — os fundadores conheceram-se num curso universitário em Toronto —, cedo chocaram com a ortodoxia da cena, sacrificando rigor estilístico e virtuosismo em prol de uma infusão de hip-hop e eletrónica na sua sonoridade. Aliás, para uma boa parte do público, o buzz dos canadianos terá chegado através das suas versões instrumentais nos primeiros álbuns de canções de Kanye West, Feist, James Blake e Tyler, the Creator, entre outros.

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Esse misto de inventividade, essa vontade de beber a vários géneros — do rock à soul, do rap à bossa-nova — e namorar com cenas musicais muito distintas, tornou-os altamente populares para uma banda instrumental — têm mais de 3,5 milhões de ouvintes por mês numa plataforma como o Spotify. Mais, fez deles “indie darlings” camaleónicos, passíveis de integrar cartazes tanto de festivais de jazz como de certames mundialmente famosos, como Coachella, Glastonbury ou o Primavera Sound de Barcelona, onde regressam esta sexta-feira, 31 de maio. Desde a sua formação, em 2010, mostraram-se capazes de tocar num desfile da Louis Vuitton em Paris, participar com Norah Jones num álbum de covers em homenagem aos Talking Heads ou colaborar com artistas tão variados como Ghostface Killah, Turnstile, Kendrick Lamar e Kali Uchis.

© Gonçalo Silva/Last Tour

Serve este preâmbulo para explicar aos leitores que, a par de nomes como Thundercat, Kamasi Washington, Tom Misch e figuras da cena londrina (Nubya Garcia, Sons of Kemet, entre outros), os BBNG são capazes de ser dos projetos mais bem sucedidos (e recebidos) a trazer essa linguagem da música instrumental e do jazz a uma audiência mais vasta. E isso notou-se em dia de feriado, com um público maioritariamente jovem e mais casual a encher a sala lisboeta na quarta visita dos canadianos a Portugal, a primeira em nome próprio.

Além de Al Sowinski, subiram ao palco da magna sala o baixista Chester Hansen — o outro elemento fundador — e Leland Whitty, que se reveza entre o saxofone e a guitarra e depois de várias colaborações tornou-se entretanto um membro oficial. Em 2019 perderam Matthew Tavares — teclista e um dos cérebros por trás dos BBNG — numa saída não tão amigável quanto isso, mas que não afetou a banda tanto quanto se acharia. Aliás, quando se temia que isso pudesse significar uma guinada ainda mais súbita para a acessibilidade depois do êxito de o seu quarto álbum “IV”, a banda virou-se para dentro e lançou em 2021 “Talk Memory”, lançamento mais denso e improvisacional, inspirado nos clássicos do género.

© Gonçalo Silva/Last Tour

Essa era a promessa para esta noite, ouvir “Talk Memory” entre outros temas mais antigos dos BBNG. A banda, todavia, trocou as voltas aos promotores com o facto de ter lançado um trio de EPs — “Chaos”, “Order” e “Growth” — ao longo de maio, e que dará corpo a “Mid Spiral”, o seu sexto álbum. As músicas desse novo lançamento ocuparam a maioria da setlist, sendo que, apesar de menos familiares, não significaram menor adesão ou entusiasmo.

Com uma produção minimalista — sem jogo de luzes, apenas iluminados pelas projeções em fita de 6 milímetros que iam sendo colocadas em tempo real — e acompanhados por três dos intérpretes com que fizeram as sessões de “Mid Spiral” (percussionista, teclista e trompetista, entre outros sopros), os BBNG arrancaram com “Eyes on Me” e “Take Me With You”, dois temas de “Chaos”. Com vontade de energizar o público, que levantou-se de imediato das cadeiras, a toada inicial foi mais de rock casado com jazz de fusão, com Leland a preterir o saxofone tenor em prol da guitarra. Talvez seja controverso dizê-lo, mas é esta é versão menos conseguida dos canadianos, chegando a lembrar uns Khruangbin menos desérticos, com o psicadelismo a provir principalmente do bizarro sintetizador vocal de Kaelin Murphy.

Não é que este tenha sido um mau arranque, longe disso; este foi um concerto praticamente sem pontos baixos (o pior foi a equalização da bateria algo difusa, que fez perder algumas das subtilezas da prestação de Al Sowinski), mas com vários pontos altos. E o primeiro foi justamente quando o saxofone tomou a dianteira em “Confessions”, num dos regressos ao passado. A instrumentação mais comedida e cinemática permitiu o desabrochar do tom hipnótico de Leland, qual flautista de Hamelin a conduzir os ratos para fora da cidade ou sereia a atrair os homens para a perdição.

© Gonçalo Silva/Last Tour

O outro momento onde o bocal foi rei deu-se em “Unfolding (Momentum 73)”, com um solo de saxofone a fazer chegar os seus tons a todas as reentrâncias e concavidades da Aula Magna, ondulando como as águas que surgiam projetadas atrás da banda e as mãos do público, apontadas aos céus. De resto, foi um episódio de comunhão talvez até mais potente do que quando surgiram palmas sincopadas ao ritmo das músicas, como nas bem divertidas “Juan’s World” e “Sétima Regra”, que trouxeram de volta fragores latinos entre o lânguido e o eufórico, transformando brevemente a sala num salão de um hotel de Copacabana em meados dos anos 70. Baixo quente como cera a derreter, percussão frenética, teclas pinceladas, sopro cintilante — os BBNG em estado de transe.

A festividade, porém, teve de ser brevemente interrompida. Não porque algo inesperado tenha ocorrido, mas porque “Lavender” — outro tema mais antigo e recuperando a identidade soturna que os BBNG tinham nos primeiros álbuns — fez-se soar de forma cacofónica, quase apocalíptica. Se o baixo antes era cera, virou lava saída das profundezas da terra. Foi aqui que o saxofone foi arrumado de vez, mas sem deixar saudade, que já foi bem substituído por rasgos de sintetizador como se de um alarme se tratasse. Claro está que o conjunto canadiano, tendo a escola que tem, enveredou por várias secções improvisadas ao longo da noite, a melhor de todas nesta música, aumentando o ritmo para um final jubilante, torcendo o ditado para “do inferno para o céu”. “Move it and groove it”, pediu o baterista, e o público voltou a anuir com gosto.

Seria difícil dar sequência a algo assim e “Mid Spiral” não foi capaz de igualar “Lavender”, demonstração de todo o poderio criativo e performativo dos BBNG no seu melhor. Ao invés, foi mais um tema competente, assente na vontade de explorar outros sons mais próximos da guitar music, mas que face a tudo o que já tinha sido ouvido até então, roçou a banalidade. O mesmo não se pode dizer de “Last Laugh”, que fechou o período regulamentar com outro brilho, talvez devido à frase de guitarra altamente orelhuda e saudosa que vai ecoando por cima de um baixo particularmente propulsivo. Enfim, feitas as contas, toda a gente teria ido feliz para casa, mesmo se brindada com um concerto inesperadamente composto de novo material.

No entanto, voltando ao palco como estrelas rock (uma postura alimentada por Al Sowinski que, a espaços, torna-se um pouco cansativa), fizeram uma homenagem tanto a Johnny “Hammond” Smith como a MF DOOM, rapper de culto que nos deixou em 2020. Com a sua não menos lendária máscara a surgir na projeção, os BBNG tocaram “The Chocolate Conquistadores”, cover de Hammond que tinham gravado com o icónico MC e que tornaram sua, menos exuberante que a original mas mais frenética, terminando com ondas de feedback caótico. Os canadianos, contudo, deixaram uma última cartada: derradeiro regresso ao passado com “Cs60”, trocando os beats de trap e as texturas eletrónicas de estúdio pela pujança ao vivo.

As projeções à sua retaguarda, que até então tinham sido meros planos a acompanhar a atmosfera e as disposições da música, tomaram a dianteira quando fizeram surgir a frase “obrigado por compartilhar essa música connosco”, repetida uma e outra vez até a fita queimar. De nada, BBNG. Foram mestres na Aula Magna, podem voltar para o doutoramento.