Pandemia: o drama, o caos, o horror. Ainda é demasiado cedo para fazermos piadas com isto? Para Decameron, a série que se estreia na Netflix esta quinta-feira, 25 de julho, não é e ainda bem. Estamos noutra pandemia, mais precisamente na peste negra (Itália, 1348) e, embora os paralelismos sejam inevitáveis, o ritmo e o nonsense que tomam conta desta narrativa rapidamente nos fazem atirar para 15.º plano as memórias da nossa experiência.
Decameron baseia-se no livro de Giovanni Boccaccio do século XIV e apresenta-nos um grupo de nobres e respetivos criados que foge de Florença, infestada de mortos por todo o lado, para se refugiar na mansão de um conde, Leonardo, e esperar que a doença fatal lhes passe ao lado. É, por vezes, uma espécie de The White Lotus em esteroides, com uma data de gente privilegiada a comportar-se de forma egoísta e sem noção das consequências. Juntemos-lhe aqui o fator humor negro e os oito episódios consomem-se mais depressa que todos os cocktails a dobrar permitidos numa happy hour.
[o trailer de “Decameron”:]
Sob pena de revelar spoilers, não nos podemos alongar muito na evolução da história, mas podemos apresentar as personagens que lhe dão vida (muitas caras são reconhecíveis, embora nunca em papéis de protagonistas mediáticos). Pampinea (Zosia Mamet, de Girls) é a noiva prometida ao conde Leonardo e não tem tempo a perder. “Tenho 28 anos”, diz em surdina duas ou três vezes, sempre perante o olhar horrorizado da pessoa a quem confia esta informação. Neurótica, desesperada, tem 50 personalidades que se revezam numa troca frenética que se manifesta muitas vezes só numa mudança de olhar. É acompanhada por Misia (Saoirse-Monica Jackson, que, para quem viu Derry Girls, não será surpresa sair-se tão bem num papel cómico), a criada que está sempre à beira do colapso. Desdobra-se para agradar à padrona, que a controla como uma marioneta, dá ordens aos outros, corre, canta — só não faz o pino. Não lhe sobra grande tempo para lidar com a perda da namorada, morta pela peste, e isso irá apanhá-la pelo caminho, claro.
Filomena (Jessica Plummer) é prima de Leonardo e a única sobrevivente entre os pais e as duas irmãs. Pega na criada, Licisca (Tanya Reynolds) e faz-se à estrada. Uma zanga entre as duas acaba por atirar a primeira ao rio e dá à segunda a oportunidade de se fazer passar por nobre. Os vestidos, a comida e a repentina atenção dos homens são aspetos até ali desconhecidos para ela, mas que passa a dominar com mestria. Algures terá de escolher entre a atração pelo médico Dioneo (Amar Chadha-Patel) e uma união conveniente ao rico Tindaro (Douggie McMeekin), um homem que sofre de tantas maleitas que depende mais do médico do que do próprio ar que respira e que não se cala um minuto, fazendo dele uma personagem insuportável na mesma medida em que é hilariante. São dele muitas pérolas, como “acredito que podemos aguentar cinco anos. Com canibalismo limitado, seis”.
Enfeitiçada pelo exótico doutor está também Neifile (Lou Gala), uma beata presa num casamento sem sexo com Panfilo (Karan Gill), um homem gay. Este casal que parece não ter ponta de sal no início vai revelar ser uma explosão de condimentos necessários para que o grupo nunca se torne enfadonho. Restam Sirisco (Tony Hale, de Veep), o mordomo da Villa Santa e Stratilia (Leila Farzad), a cozinheira. Na ausência do homem da casa, que não está quando os convidados desembarcam na propriedade, são eles que comandam a parada — ou, pelo menos, assim tentarão.
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▲ A escalada de tensão e de loucura não abranda, o que faz a história saltar por vezes a barreira do cómico e cair no campo do "nonsense" exagerado
Apresentados os peões deste jogo, o que é que se segue? O drama, o caos, o horror, claro. Gente que não tem nada para fazer, com muitos esqueletos no armário, interesses que não podem conviver e mentes transtornadas são a junção perfeita para a desgraça. Quem se alia a quem, quem quer o quê, quem guarda quais segredos e em troca de quê? Se tudo isto não bastasse para manter o grupo ocupado e dar-lhes inúmeras oportunidades de fazer asneiras, ainda há ameaças exteriores — uma data de nobres a viverem como reis num palacete na Toscânia enquanto à volta se morre e se passa fome não passa despercebido durante muito tempo. A escalada de tensão e de loucura não abranda — e à medida que o final se aproxima é difícil imaginar um cenário em que não se matem todos uns aos outros como se estivessemos numa épica tragédia grega —, o que faz a história saltar por vezes a barreira do cómico e cair no campo do nonsense exagerado. Porém, a rapidez com que se recompõe desculpa os passos em falso.
Kathleen Jordan, a criadora da série, explicou que escrever este guião surgiu durante a pandemia — a nossa —, ao ouvir várias celebridades a queixarem-se do tédio e da infelicidade de estarem fechadas nas respetivas mansões. Conhecendo a obra de Giovanni Boccaccio, pareceu-lhe perfeito pegar no cenário de um idílica pedaço de terra perdido numa Itália do século XIV mergulhada no horror de uma doença sem precedentes.
Decameron pode cair no erro de um principiante de stand-up que, ansiando por aplausos, atira piada atrás de piada, independentemente da sua qualidade, sem dar espaço ao público para respirar ou digerir o que acaba de ouvir. Porém, merece um lugar naquele grupo de séries de nicho — humor negro não é para todos — que aparecem de vez em quando como uma lufada de ar fresco. É para ser consumida sem distância de segurança, que esta peste não se pega.