Enviado especial do Observador em Paris, França

– Alexandrina?
E Alexandrina olhou.

– Shandy?
E Shandy parou.

– Podemos falar?
– Claro.
– Português? pode ser à vontade?
– Sim, sim, sim…

O caminho entre a La Défense Arena da natação e o Arena Paris Sud 6 (ou South Paris Arena, como até está mais visível nos cartazes rosa que vão dando indicações sobre as direções até ao recinto) não é fácil de fazer em condições normais e muito menos ao sol. Há uma estação de metro até mais próxima da entrada de todo o complexo mas a outra, do lado oposto, dá mais oportunidades de escolher para onde queremos ir. É aqui que começamos a nossa Almeidada do dia qual João Almeida, a manter o ritmo mesmo entre as dificuldades. Há quem ultrapasse mas depois vai perdendo terreno e encosta à sombra, há quem vá devagarinho à espera que alguém empurre, há quem mantenha só o ritmo. Fomos pela terceira via. Um sítio que tem saladas a 7,5 euros, fica para a próxima. Um Five Guys, também escrito na lista. O metro porque o tempo não pára.

Não é difícil perceber que os Países Baixos vão jogar. Em qualquer coisa mas vão jogar. Desta vez também há camisolas brancas especialmente preparadas para Paris-2024 mas a mancha laranja continua a ser a maior. Naquela direção há voleibol, andebol ou ténis de mesa, o tamanho da maioria dos adeptos aponta para uma das duas primeiras e o caminho é mesmo feito para o pavilhão 6 que está a receber o torneio de andebol, neste caso feminino. Uma subida em tapetes rolantes parados mas que deu aquela sensação de andar em cima de um colchão, a entrada no pavilhão, a sensação de dejá vu com o recinto do ténis de mesa. É ali que, em clara minoria, a Espanha tenta uma redenção depois das derrotas iniciais com Brasil e Angola.

Não aconteceu. Apesar da boa entrada em campo, tendo mesmo uma vantagem de três golos no arranque, os Países Baixos foram dando a volta, chegaram ao intervalo a ganhar por 14-12 e dispararam depois para um triunfo por 29-24 com um arranque a todo o gás no segundo tempo. Era o fim do sonho espanhol, era o fim da carreira na seleção de Alexandrina Barbosa (ou Cabral, como tem na camisola) apesar de haver ainda mais dois encontros para realizar na fase de grupos que são quase para cumprir apenas calendário.

[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]

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Alexandrina, mais conhecida como Shandry, nasceu em Lisboa sendo a nona de 11 irmãos e começou a jogar andebol na Pedreira dos Húngaros, ficando para sempre reconhecida também com o apoio que a Câmara de Oeiras foi tentando dar perante a falta de recursos que o andebol feminino enfrentava. A carreira evoluiu, a lateral esquerda passou pelo Madeira SAD e em 2005 teve a primeira oportunidade de experimentar uma Liga estrangeira, neste caso as espanholas do BM Sagunto. Começava aí um percurso que não mais voltaria a passar por terreno nacional, entre outras equipas de Espanha, Roménia, Alemanha, França e Rússia, antes de um regresso ao campeonato gaulês onde representou na última época o Brest. Houve mais que mudou.

Depois de já ter representado Portugal e de ter contribuído de forma decisiva para a qualificação da Seleção para o Campeonato da Europa de 2008, Alexandrina Barbosa recebeu o convite para a dupla nacionalidade espanhola pelos anos que tinha jogado na liga. Em 2010 começou o diferendo com Portugal, em 2012 passou a representar Espanha (até hoje, com 38 anos). Ganhou várias competições coletivas (Taça EHF pelo Rostov-Don em 2017, finalista vencida da Champions pelo SD Itxako em 2011), recebeu distinções individuais como melhor lateral esquerda da Liga francesa em 2015 e 2016 e do Mundial de 2019, além de ter sido a melhor marcadora da Taça EHF em 2015. Foi também sobre isso que a número 86 falou com o Observador após a derrota com os Países Baixos, deixando para trás toda a polémica quando renunciou à Seleção.

“É verdade que está a ser um torneio um bocado difícil para nós, começámos mal os Jogos Olímpicos, depois tentámos dar a volta, na segunda partida não conseguimos mas hoje mostrámos uma outra cara. É verdade que jogar contra os Países Baixos é sempre complicado porque tem uma equipa que vai lutar para ganhar uma medalha e demos a cara. Ainda não foi suficiente mas ainda nos faltam dois jogos e queremos pelo menos mostrar que podemos competir. Já não é a pensar propriamente em passar à próxima fase mas nestes dois jogos que faltam podemos divertir-nos ao máximo e acabar pelo menos com sensação diferente”, começou por dizer a jogadora que, ao serviço de Espanha, faz a terceira edição dos Jogos Olímpicos, além de já ter sido finalista vencida no Campeonato do Mundo de 2019 e no Campeonato da Europa de 2014.

“Sinceramente, nesta edição dos Jogos Olímpicos não vinha para cá a pensar na possibilidade de ganhar uma medalha. Temos consciência que agora não temos uma equipa forte que fosse capaz de ganhar medalha. O nosso objetivo era passar a ronda inicial e não conseguimos esse objetivo. É verdade que vamos acabar com uma má sensação, eu no meu caso sei que ainda não fiz o meu jogo e não me estou a divertir a 100%, ainda faltam mais dois e que pelo menos aí possa ter mais oportunidade de jogar e divertir-me. Também foi isso que viemos aqui a fazer, ter boas sensações”, acrescentou, antes de fazer o filme de todo o percurso.

“Esta carreira toda que construí é uma satisfação. Começar desde o bairro da Pedreira dos Húngaros e estar aqui ainda ao mais alto nível foi através de muito esforço. Estou muito contente com toda a minha trajetória, estou contente por ter jogado três Jogos Olímpicos, de ter um filho, de poder acumular as coisas… É uma satisfação muito grande poder terminar desta forma”, referiu a lateral esquerda da equipa espanhola.

Sobre a saída da Seleção, a mesma explicação da altura: razões desportivas. “Eu só queria jogar ao mais alto nível. Não fiz uma troca de nacionalidade, só foi uma oportunidade de ter uma dupla nacionalidade e foi apenas por razões desportivas. Por Portugal não tinha hipóteses de competir no Campeonato da Europa e do Mundo, ainda menos nos Jogos Olímpicos. Tive essa oportunidade porque a minha casa agora é em Espanha, podia estar a competir com as melhores e porque não? Foi uma decisão muito difícil para mim mas foi também das melhores decisões que tomei. Se ainda lá volto? Sim, sim, sim… Tenho lá a minha família, tenho lá amigos, continuo a ter muitos vínculos com Portugal”, admitiu Alexandrina Barbosa.

Por fim, até por serem os primeiros Jogos de sempre com uma zona para mães de crianças pequenas na Aldeia Olímpica, Shandry abordou também o momento em que parou a carreira para ser mãe e voltou: “É complicado na alta competição parar, ser mãe e voltar mas é verdade que nos podemos sacrificar. No meu caso tenho o meu marido que ajuda muito, quando são estas competições consigo vir. Nestes Jogos colocaram muitas facilidades para podermos estar com os nossos filhos e pouco a pouco a mentalidade vai-se abrindo e podemos demonstrar que existe hipótese de sermos mães e desportistas ao mesmo tempo”.