A constituição de arguido de Ricardo Salgado na Operação Marquês é o culminar de um conjunto de indícios que começaram a ser consolidados desde o início de 2006 — e que indicam que o Grupo Espírito Santo (GES) estará na origem de 17,4 milhões de um total superior a 20 milhões de euros reunidos por Carlos Santos Silva, o alegado testa-de-ferro de José Sócrates, em contas bancárias na Suíça. De acordo com o Ministério Público (MP), esses montantes destinavam-se e foram utilizados pelo ex-primeiro-ministro depois de terem sido transferidos para Portugal entre dezembro de 2010 e abril de 2011.

Os 17,4 milhões de euros, cujos circuitos financeiros foram identificados com a ajuda das autoridades judiciais suíças, terão sido transferidos entre abril de 2006 e maio de 2009 como contrapartida por alegados benefícios concedidos por José Sócrates em diversos negócios em que o GES esteve envolvido, nomeadamente nas operações que envolveram o Grupo Portugal Telecom (PT).

A equipa liderada pelo procurador Rosário Teixeira acredita ter provas de que Ricardo Salgado estará por detrás dessas transferências, sendo essa a razão pela qual constituiu o ex-banqueiro como arguido pelo crime de corrupção ativa para ato ilícito e por isso notificou-o para constitui-lo como arguido esta quarta-feira nas instalações do Departamento Central de Investigação e Ação Penal — onde o ex-banqueiro esteve a prestar declarações entre as 10h e as 17h. Salgado é ainda suspeito dos crimes de abuso de confiança, tráfico de influência, branqueamento e fraude fiscal qualificada, segundo o comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) emitido ao início da tarde.

Ouvido pelo juiz Carlos Alexandre, Salgado ficou proibido de contactar com os restantes 14 arguidos da Operação Marquês, entre os quais José Sócrates, e de se ausentar para o estrangeiro. No final da diligência, o ex-líder do BES afirmou aos jornalistas que ficou “surpreendido” com a notificação para ser constituído arguido mas acrescentou que “a justiça tem o direito de investigar tudo”. Salgado reiterou a sua vontade de “continuar a colaborar com a justiça, como desde o primeiro dia”.

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A convicção da equipa do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) de que Salgado está por detrás das transferências para Carlos Santos Silva foi reforçada pelas declarações prestadas por Hélder Bataglia no dia 5 de janeiro. Depois de ter sido constituído arguido a 21 de abril de 2016 por carta rogatória pelos crimes de corrupção ativa para ato ilícito, fraude fiscal e branqueamento de capitais e de ter respondido às imputações do procurador Rosário Teixeira na Direção Nacional de Investigação e Ação Penal, em Luanda, Bataglia apresentou-se voluntariamente em Lisboa para prestar mais declarações nas instalações do DCIAP.

MANUEL DE ALMEIDA/LUSA

Hélder Bataglia, ex-presidente da Escom (Manuel de Almeida/LUSA)

O primeiro grupo de transferências

As declarações de Hélder Bataglia no DCIAP revestiam-se de uma grande importância para o interrogatório de Ricardo Salgado pela simples razão de que o ex-líder da Escom é o homem chave em todos os circuitos financeiros que começam no GES e terminam em Carlos Santos Silva — o que, na ótica do DCIAP, equivale a dizer José Sócrates.

Tudo terá começado em abril e maio de 2006, quando Bataglia recebeu nas contas da Union des Banques Suisses (UBS) da Markwell (uma sociedade offshore por si dominada) um total de 7 milhões de euros transferidos pelo Banco Espírito Santo Angola, então uma filial do BES que era liderada por Álvaro Sobrinho. Em julho de 2007, Bataglia, gestor próximo de Salgado e que era a cara da área não financeira do Grupo Espírito Santo em África, recebeu mais 7 milhões de euros na conta suíça da Markwell. Desta vez, o dinheiro partiu da Espírito Santo (ES) Enterprises, a famosa empresa que é considerada o ‘saco azul’ do GES.

Hélder Bataglia fez diversas aplicações com estes 14 milhões de euros através de outra offshore (a Mombaka) e transferiu 9 milhões de euros entre maio de 2006 e julho de 2007 para outra conta na UBS, em nome da Gunter Finance — sociedade offshore que pertencia a José Paulo Pinto de Sousa.

Terá sido o primo de José Sócrates a transferir um total de 5.468.000 euros em duas tranches, entre julho de 2007 e fevereiro de 2008, para a Giffard Finance de Carlos Santos Silva.

Este foi o primeiro grupo de transferências que, de acordo com o MP, terão entrado na esfera de José Sócrates através de Carlos Santos Silva.

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Infografia por Maria Gralheiro

Durante os seus interrogatórios, o primeiro dos quais em novembro 2014, quando foi detido preventivamente, Carlos Santos Silva explicou estas transferências com a realização de negócios imobiliários em Angola, nomeadamente a venda de um terreno em Benguela (as salinas do Chamume) a uma entidade do Grupo Escom para dar origem a um empreendimento imobiliário designado de “Condomínio Residencial Bela Vista”.

Já Bataglia afirmou em Luanda em abril de 2016, no âmbito do cumprimento da carta rogatória emitida pelo DCIAP, que essas transferências correspondiam a um empréstimo que teria feito a José Paulo Pinto de Sousa, que entre 2005 e 2007 passou por dificuldades financeiras. Mais tarde, em 2012, parte da dívida terá sido saldada com uma posição no negócio das salinas do Chamume.

O procurador Rosário Teixeira nunca deu credibilidade a estas versões por existir um grande intervalo entre as datas das transferências (entre 2006 e 2008) e a do negócio das salinas (2012).

As contas de Joaquim Barroca

O segundo grupo de transferências tem uma nova personagem: Joaquim Barroca, ex-administrador do Grupo Lena e igualmente arguido na Operação Marquês pelos crimes de corrupção ativa, branqueamento de capitais e de fraude fiscal qualificada.

Logo no primeiro dos três interrogatórios a que foi sujeito entre 23 de abril e 22 de julho de 2015, Barroca admitiu ao procurador Rosário Teixeira que tinha assinado ordens de transferência em branco das suas contas pessoais suíças da UBS e que tinha cedido essa documentação a Carlos Santos Silva para que o amigo de José Sócrates pudesse movimentar o dinheiro depositado nas contas de Barroca à vontade. Mais: o então administrador do Grupo Lena terá afirmado que sempre que movimentou fundos das contas da UBS viajou para a Suíça acompanhado por Santos Silva.

Entretanto, Hélder Bataglia tinha recebido nas contas da Markwell e da Monkway (outra sociedade offshore do ex-líder da Escom) um total de 15 milhões de euros transferidos pela ES Enterprises entre abril de 2008 e maio de 2009.

Depois de Carlos Santos Silva alegadamente lhe ter transmitido os dados da conta de Barroca na UBS, Hélder Bataglia transferiu um total de cerca de 12,5 milhões de euros exatamente no mesmo período em que recebeu o dinheiro do ‘saco azul’ do GES.

Mais tarde, entre junho de 2008 e junho de 2009, Carlos Santos Silva terá utilizado as ordens de transferência em branco para transferir o mesmo montante para as suas contas abertas em nome da Pinehill Finance.

No total: o GES terá transferido, através de Hélder Bataglia, para Carlos Santos Silva um total de 17.468.000 euros.

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Infografia por Maria Gralheiro

A entrega de tais fundos ao alegado testa-de-ferro de Sócrates constitui, na ótica do procurador Rosário Teixeira, a entrega de alegadas contrapartidas por diversos favorecimentos do ex-primeiro-ministro nos negócios do Grupo Portugal Telecom em que o GES participou, nomeadamente os seguintes:

  • A oposição à OPA da Sonae sobre a PT em 2006/2007 com promessa de dividendos milionários;
  • A cisão da PT Multimédia, que permitiu ganhos de 165 milhões de euros ao GES;
  • A venda da Vivo à Telefónica em 2010 por 7,5 mil milhões de euros;
  • E a compra de 22,28% do capital da Oi por parte da PT por 3,5 mil milhões de euros.

Hélder Bataglia terá ainda participado em transferências de mais 4 milhões de euros para as contas de Carlos Santos Silva (que, segundo o MP, tinham como destinatário José Sócrates) mas a origem desses fundos nada terá a ver com o GES.