Há défices e há défices. Em Hollywood, o défice é de imaginação, levando a indústria cinematográfica a fazer incontáveis continuações, “remakes” de filmes cada vez mais recentes, “blockbusters” de super-heróis uns atrás dos outros, e agora, com “Ghost in the Shell-Agente do Futuro”, de Rupert Sanders, ir minerar o território da “manga” e da “anime”. A criação original de Masamune Shirow, modelo da ficção científica (FC) “cyberpunk” em banda desenhada, já deu origem no Japão a quatro longas-metragens de animação, as duas primeiras assinadas por Mamoru Oshii (a mais recente, “Ghost in the Shell-The New Movie”, passou na Monstra), séries de televisão e jogos de vídeo, e influenciou filmes de FC ocidentais como “Matrix”.

[Veja o “trailer” da animação original de 1995]

https://youtu.be/0j6wsGuzP2Q

As histórias da série “Ghost in the Shell” passam-se num futuro onde a tecnologia evoluiu de tal forma que as pessoas se ligam directamente às redes de informação através de implantes, num sistema de “interface” neurocibernético, e as ciberpróteses são perfeitamente vulgares, desde olhos a corações e fígados, abundando os seres que são parte humano e parte “cyborg”. O cibercrime e o ciberterrorismo aumentaram e tornaram-se sofisticados, pelo que o governo japonês criou um departamento especial, a Secção 9, para os combater. Ela é liderada por uma avançadíssima “cyborg” com cérebro humano (o “fantasma” que habita no invólucro do corpo artificial), a major Motoko Kusanagi, que se tornou em personagem de culto da cultura pop nipónica e asiática.

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[Veja o “trailer” de “Ghost in the Shell-Agente do Futuro”]

Por isso a escolha de Scarlett Johansson e não de uma actriz asiática para a personificar deixou tanta gente furiosa por aquelas paragens, embora o próprio Mamoru Oshii a tenha defendido, argumentando que um “cyborg” é uma entidade sintética e sem raça, e criticando os preconceitos políticos que estão a invadir o mundo das artes e o cinema em especial. Controvérsias e indignações à parte, Johansson interpreta a ciberheroína correctamente, com a parcimónia expressiva e emocional de uma criatura que apesar de ter consciência devido a um cérebro humano, foi manufacturada em laboratório. Este “Ghost in the Shell — Agente do Futuro” foi rodado na Nova Zelândia, Hong Kong e Xangai, junta investimento americano e asiático e tem os olhos postos neste importantíssimo mercado, com a China à cabeça. Um exemplo de cinema mundialista que já quase só por formalidade se pode considerar “americano”.

[Veja a entrevista com Scarlett Johansson]

A fita não é uma transposição literal da “manga” nem um “remake” aplicado do filme animado original. Vai “picar” aqui e ali à “franchise” nipónica, mantendo o cenário urbano futurista, as personagens principais e algumas das suas ideias e conceitos estéticos e tecnológicos. Só que enquanto as histórias dos livros e dos filmes japoneses passados neste universo, apesar da sua forte componente de acção, são complexas e intrincadas, pondo interrogações sobre os dilemas, os efeitos e as consequências da cada vez mais profunda interacção entre pessoas e máquinas, entre a tecnologia e a carne e o espírito humanos, o argumento de “Ghost in the Shell — Agente do Futuro” fica-se por um “dumbing down” simplista, funcionando à base de clichés de FC com barbas, desde a poderosa e maléfica corporação que quer ser um estado dentro do Estado, aos cientistas que criam monstros que depois lhes fogem ao controlo, ou ainda a “humanização” dos robôs – tema que foi muito mais bem tratado no recente “Ex Machina”, com Alicia Vikander.

[Veja a entrevista com o realizador Rupert Sanders]

Está tudo maquilhado e enfeitado com efeitos digitais inegavelmente impressionantes (destaque para a concepção da cidade) e melhorado pelo 3D, mas sem ocultar os remendos e a pobreza básica da narrativa. “Ghost in the Shell — Agente do Futuro” é mais outro gigante cinematográfico com cabeça de anão, expressão de um cinema onde a componente tecnológica não pára de se desenvolver, mas o talento para contar histórias boas e originais se atrofiou.

Um cinema pensado em termos de faixas etárias, feito por comité e à base de “software”, no qual o realizador faz figura de director-geral de fabrico, que diz aos actores onde se devem posicionar e o que devem fazer, supervisiona os milhares de efeitos especiais e assegura que todas as partes da bisarma ficam bem encaixadas umas com as outras, para um feliz retorno financeiro. Um cinema com uma carapaça atractiva mas vácuo de alma, todo “shell” mas sem “ghost”.