Do preço dos ovos ao rumo da guerra. Numa longa sessão que durou quatro horas, num modelo misto entre uma conferência de imprensa e um town hall ao estilo norte-americano, o Presidente russo, Vladimir Putin, respondeu a cerca de 70 perguntas — algumas de jornalistas e outras do público — sobre os mais variados temas. O evento — habitual até 2019, mas que foi suspenso depois desse ano, primeiro por força da pandemia e, depois, pela guerra na Ucrânia — pretendia servir de balanço do ano 2023 na Rússia, e a “operação militar especial” foi um tema em claro destaque. Contudo, apesar de já ter passado quase dois anos desde o início do conflito no país vizinho, um cessar-fogo está muito longe de acontecer — e o Chefe de Estado russo mantém a retórica que esteve na origem da invasão a 24 de fevereiro.
“Quando termina a guerra?” Esta talvez seja uma das perguntas para que mais russos querem resposta — e foi logo a terceira a ser colocada durante a conferência de imprensa. Vladimir Putin deu uma resposta simples: “Quando os objetivos da operação militar especial forem atingidos.” Numa explicação que encontra paralelismos com o discurso do início da guerra, o Presidente russo continua a defender que a Rússia tem o dever de “desnazificar” e “desmilitarizar” a Ucrânia.
Vladimir Putin lembrou, na conferência de imprensa, que a Ucrânia tem como “ídolo” o nacionalista Stepan Bandera, que colaborou com os nazis, estando o neonazismo enraizado na sociedade ucraniana. Sobre a desmilitarização, o Presidente russo lamentou que o Ocidente ainda forneça armas a Kiev, ainda que se tenha mostrado confiante de que isso vá “acabar num dia” que, prevê o Chefe de Estado, estará a chegar.
Ao longo dos últimos meses, Vladimir Putin tem igualmente justificado a invasão com o facto de a segurança nacional da Rússia estar em risco, principalmente por conta da expansão da NATO para regiões mais próximas das fronteiras russas. Nesta conferência de imprensa, a primeira pergunta foi sobre quais são as suas “principais tarefas” enquanto Chefe de Estado — e o líder indicou que passa por fortalecer a “soberania russa”. “Sem o fortalecimento da soberania é impossível existir. Todo o país entende perfeitamente que sem soberania a Rússia não será capaz de existir.”
A negação da Ucrânia enquanto Estado independente e Odessa ser uma “cidade russa”
Interrogado sobre o estado das relações entre a Rússia e a União Europeia (UE), Vladimir Putin descartou qualquer responsabilidade da Rússia relativamente ao deteriorar das relações com Bruxelas, culpando exclusivamente os Estados-membros da UE, que “negligenciaram” os interesses russos. Referiu, no entanto, duas exceções de dois líderes europeus que acredita que “não se comportam daquela maneira”: o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, e o novo chefe do executivo da Eslováquia, Robert Fico.
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Para explicar as atuais relações conturbadas entre Bruxelas e Moscovo, o líder da Rússia remontou, tal como já tinha feito outras vezes no passado, a 2014. Foi neste ano que ocorreu o Euromaidan, uma série de protestos nas ruas ucranianas que culminou com o fim o regime do antigo Presidente pró-russo ucraniano, Viktor Yanukovych, e que motivou uma aproximação de Kiev ao Ocidente.
O Presidente russo argumentou que a União Europeia — juntamente com os “amigos norte-americanos” — apoiou o Euromaidan. “Eles forçaram [os ucranianos] a tomar algumas decisões. Os Estados Unidos organizaram tudo e a Europa acompanhou-os. Como se consegue construir boas relações com eles?”, questionou Vladimir Putin, lamentando logo a seguir que os europeus “façam escolhas tendo em conta apenas os seus interesses”.
Designado como “golpe de Estado” por Vladimir Putin, o Euromaidan foi um momento de viragem também nas relações entre Kiev e Moscovo. Até aí, a Rússia tentou a “todo o custo”, durante décadas, “construir relações normais com a Ucrânia”. Isto porque, alegou, o “povo russo e ucraniano são apenas um povo”: “O que está a acontecer é uma tragédia.”
Esta não é a primeira vez que Vladimir Putin equipara o povo ucraniano ao russo. Nesta conferência de imprensa, ainda foi mais longe e comparou a “operação militar especial” a uma “guerra civil”, partindo da tese de que a Ucrânia ainda devia ser parte da Rússia. “A Crimeia é da Rússia e todos sabem isso. Eles [o Ocidente] é que começaram a inventar uma série de disparates históricos”, afirmou.
Nesta ordem de ideias, o líder da Rússia decidiu focar o exemplo de Odessa, uma cidade ucraniana que, neste momento do conflito, ainda está controlada pelas autoridades ucranianas. “Todos sabem que Odessa é uma cidade russa”, atirou o Chefe de Estado, reforçando que existe um revisionismo histórico alimentado pelo Ocidente que dissocia aquela localidade da Rússia.
O conflito na Ucrânia. As “melhorias” russas e o “extermínio” ucraniano
O desempenho da Rússia durante a “operação militar especial” foi um tópico comentado durante a conferência de imprensa, mas o Presidente russo manteve-se na defensiva. “Com modéstia”, o Chefe de Estado da Rússia notou “algumas melhorias” no desenrolar da invasão que já dura há 22 meses, em contraposição ao que diz estar a acontecer com as tropas ucranianas, encaminhadas por Kiev para o que Putin define como um “extermínio”, ao envolvê-las no conflito.
Neste sentido, Vladimir Putin aproveitou a ocasião para comentar as viagens oficiais de Volodymyr Zelensky ao estrangeiro, numa semana em que Zelensky passou pelos Estados Unidos, pela Noruega e pela Alemanha. Para o chefe de Estado russo, o Presidente ucraniano — cujo nome nunca mencionou, optando pela referência ao “regime de Kiev” — tem “viajado e implorado por dinheiro”, ao tentar mostrar resultados da contraofensiva. “É estúpido e irresponsável, mas é da sua conta”, atirou Vladimir Putin.
Adicionalmente, desde fevereiro de 2022, são poucos os dados revelados sobre os militares russos que combateram na Ucrânia. Porém, esta quinta-feira Vladimir Putin desfez o tabu e revelou que estão 617 mil efetivos destacados na Ucrânia, fornecendo assim uma estimativa precisa das forças atualmente envolvidas na guerra contra o país vizinho.
Estes não foram os únicos dados trazidos por Vladimir Putin. Segundo as suas estimativas, as tropas russas destruíram, desde o início da contraofensiva — que começou no início de junho deste ano —, 747 tanques e 2.300 carros de combate ucranianos. E garantiu que todos os dias 1.500 voluntários mostram-se disponível “para defender a pátria” e lutar na Ucrânia.
Tendo em conta o número de voluntários e de combatentes no terreno, o Presidente russo descartou uma segunda mobilização total para a guerra na Ucrânia. “Aqueles que estão dispostos a defender os interesses da pátria com armas não está a diminuir”, justificou Vladimir Putin, que assegurou aos russos esta quinta-feira que o país vencerá a “operação militar especial”.
O conflito em Gaza — e a situação que não é comparável com a Ucrânia
Num tópico virado para a política externa, durante a conferência de imprensa Vladimir Putin comentou a situação no Médio Oriente. E, relativamente à ofensiva israelita em curso na Faixa de Gaza, o Presidente russo considera que a ação de Jerusalém tem sido um “desastre”. “Infelizmente, as Nações Unidas e as potências mundiais não conseguem parar esses ataques”, lamentou o Presidente russo, que destacou, ainda assim, o papel “de charneira” do homólogo turco, Recep Tayyip Erdoğan, neste assunto.
Sobre a Palestina, e voltando a focar Recep Tayyip Erdoğan, o Presidente russo disse que, tal como a Turquia, Moscovo quer construir um Estado palestiniano e criar as bases para relações estáveis entre Israel e a Palestina. “Precisamos de manter as pessoas em Gaza e garantir que têm ajuda humanitária.”
Adicionalmente, na opinião do Presidente russo, há uma “grande diferença” entre o que acontece em Gaza e na Ucrânia. “Olhe-se para a operação militar especial e para a operação em Gaza e sinta-se a diferença: não acontece nada assim na Ucrânia.”
Ao final de quatro horas de conferência de imprensa, Vladimir Putin acabou por tocar vários tópicos, incluindo a indústria automóvel na Rússia — em que não resistiu a mandar um recado para o Ocidente, que esperava que tudo “colapsasse” em solo russo e que acabou por não ver isso acontecer —, até à inteligência artificial, em que o Chefe de Estado da Rússia falou com um deepfake.
A última pergunta foi mais pessoal — e foi dedicada à sua candidatura para as eleições presidenciais de 2024. Um jornalista perguntou a Vladimir Putin que conselho daria a si mesmo se pudesse voltar a 2001, ano em que assumiu pela primeira vez a presidência da Rússia. “Estás no caminho certo”, respondeu o líder russo, acrescentando que o seu eu mais jovem devia confiar em todos os momentos “no grande povo russo”.