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40 anos de cerco: a direita e a democracia

Em 1974, as correntes políticas tinham de se democratizar. Como agentes de socialização democrática, os partidos da direita foram mais eficazes do que os da esquerda, isto é, o PS. Ensaio de Rui Ramos

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Há 40 anos, a 25 e 26 de Janeiro de 1975, o primeiro congresso do Partido do Centro Democrático e Social acabou cercado por uma turba nocturna de militantes das esquerdas, decididos a eliminar a “direita” em Portugal. As autoridades militares que então tutelavam o país nada fizeram durante horas e horas, o que foi uma maneira de autorizar o assalto.

O cerco do congresso do CDS no Palácio de Cristal, 25 de Janeiro de 1975

O cerco do congresso do CDS no Palácio de Cristal, 25 de Janeiro de 1975

O CDS tinha sido aceite na União Europeia das Democracias Cristãs e entre os cercados estavam delegados dos grandes partidos de governo das democracias europeias. Foi o que valeu aos sitiados. Os embaixadores mexeram-se, e de madrugada apareceram finalmente tropas, não para levantar o cerco, mas apenas para evacuar os cercados sob as chufas e as ameaças dos sitiantes. Desde então, nunca faltou à esquerda quem quisesse repetir o cerco.

Os “liberais” e o Estado Novo

Os partidos que há quarenta anos tradicionalmente se sentam à direita nas assembleias do actual regime democrático nasceram, ao contrário do PS e do PCP, com o 25 de Abril (o PSD, então PPD, a 6 de Maio de 1974 e o CDS a 19 de Julho). Mais: foram “encomendados” pelo Movimento das Forças Armadas, em reuniões logo a seguir à revolução. A ideia dos oficiais do MFA era, nesses primeiros tempos, dotar a futura democracia portuguesa de um espectro partidário parecido com o da Europa ocidental.

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Para alguns dos protagonistas da revolução, não era óbvio que a nova democracia devesse ter uma “direita”.

Muita coisa mudaria uns meses depois, mas em Maio de 1974 parecia ainda haver lugar em Portugal para partidos equivalentes aos “conservadores” em Inglaterra, “democrata-cristãos” na Alemanha e na Itália, ou “gaullistas” em França — partidos que, em geral, combinavam o respeito por tradições religiosas ou patrióticas com a defesa da democracia pluralista, do Estado de direito e da economia de mercado. Acontece que para alguns dos protagonistas da revolução, não era óbvio que a nova democracia devesse ter uma “direita”.

Não era fatal que estes agrupamentos, fluídos e informais, tivessem de gerar partidos distintos, mas é possível delimitá-los. Primeiro, pelas principais preocupações públicas: a Ala Liberal insistiu na questão dos direitos e das liberdades, enquanto Freitas do Amaral e os seus se ocuparam sobretudo com a liberalização da economia. 

As personalidades que o MFA convidou para formarem partidos à direita do Partido Socialista vinham dos grupos que, dentro do Estado Novo, haviam proposto a evolução do regime no sentido de aproximação aos modelos políticos, económicos e sociais da Europa ocidental. Tinham sido, por isso, geralmente tratados como “liberais”. Eram advogados, professores e altos funcionários, geralmente jovens. As suas referências eram as democracias ocidentais e ainda o catolicismo revisto do Concílio Vaticano II. Embora originários de famílias tradicionalistas, haviam repudiado ingredientes fundamentais do salazarismo: o “nacionalismo revolucionário” (à anos 30), a visão da política como “guerra civil”, o “corporativismo”, ou o “ultramarinismo” em jeito de desafio ao mundo. Mas recusavam com a mesma veemência o anti-ocidentalismo e o colectivismo das oposições de esquerda, então completamente formatadas por várias versões do marxismo.

O Movimento das Forças Armadas, em reuniões logo a seguir à revolução, encomendou a várias personalidades que formassem partidos à direita do PS

Getty Images

Em 1968, os “liberais” ainda haviam confiado em Marcello Caetano. O antigo número dois de Salazar, recolhido a uma espécie de oposição interna da ditadura havia dez anos, parecera então capaz de garantir uma transição controlada para uma democracia pluralista e uma economia aberta. Esperou-se ainda que Caetano encontrasse uma qualquer “solução” internacionalmente aceitável para o “ultramar”. A crescente integração de Portugal na Europa ocidental na década de 1960, por via da NATO, da EFTA e da emigração, a industrialização da economia, ou a expansão do que Caetano designaria “Estado social” e também a enorme prosperidade das colónias africanas tornaram plausíveis essas expectativas. Os “liberais” haviam-se assim conformado com a ditadura, mas apenas na medida em que pudesse ser a via para um regime de tipo ocidental e uma nova relação com África.

Eram na sua maioria funcionários dos ministérios e dos organismos corporativos, muito empenhados nas reformas do regime. Em público, expressavam-se na página de economia do Diário de Notícias.

Falou-se, a propósito deles, de uma “terceira força” entre a ditadura salazarista e a oposição de esquerda. Mas os “liberais” nunca formaram uma única “força”. Uns reviam-se em Francisco Sá Carneiro e nos demais deputados identificados com a “Ala Liberal” da Assembleia Nacional. Desde 1973, o semanário Expresso, dirigido por Francisco Pinto Balsemão, era visto como o seu órgão na imprensa, e a associação SEDES como base de um eventual partido político. Outros tinham-se agregado à volta de Diogo Freitas do Amaral, procurador à Câmara Corporativa e professor na Faculdade de Direito de Lisboa. Eram na sua maioria funcionários dos ministérios e dos organismos corporativos, muito empenhados nas reformas do regime (como a da “democratização” do ensino, protagonizada por Veiga Simão, de quem Adelino Amaro da Costa era um dos principais colaboradores). Em público, expressavam-se na página de economia do Diário de Notícias. Mas havia ainda outros protagonistas de “mudança” no governo: João Salgueiro, Rogério Martins, Joaquim Silva Pinto, ou José Veiga Simão (os dois últimos, ministros de Marcelo Caetano, viriam, depois de 1974, a aderir ao Partido Socialista).

Não era fatal que estes agrupamentos, fluídos e informais, tivessem de gerar partidos distintos, mas é possível delimitá-los. Primeiro, pelas principais preocupações públicas: a Ala Liberal insistiu na questão dos direitos e das liberdades, enquanto Freitas do Amaral e os seus se ocuparam sobretudo com a liberalização da economia. Depois, pelas suas relações com a ditadura: em 1973, Sá Carneiro renunciou ao mandato de deputado e, do ponto de vista do regime, juntou-se à oposição; Freitas do Amaral distanciou-se também de Marcello Caetano, mas mais discretamente, ao recusar um convite para ministro.

Uma direita democrática

Em Maio de 1974, Sá Carneiro e Freitas do Amaral divergiram outra vez. Depois das conversas com o MFA, Sá Carneiro avançou imediatamente para a constituição de um partido, o Partido Popular Democrático (PPD). Freitas hesitou, e o Centro Democrático Social (CDS) demorou mais dois meses a aparecer. Sá Carneiro, ministro sem pasta do primeiro Governo Provisório e geralmente considerado o “braço direito” do primeiro-ministro Palma Carlos, foi logo reconhecido como um dos principais líderes civis da nova situação política, ao lado de Soares e de Cunhal. Freitas, embora nomeado membro do Conselho de Estado, ainda desfrutou de mais uns meses de relativa obscuridade.

Em 1974, o PPD e o CDS distinguiram-se dos demais partidos por três vias: primeiro, identificaram-se com o MFA e condenaram firmemente a ditadura salazarista; segundo, propuseram para Portugal um regime de tipo europeu ocidental (incluindo já a integração na Comunidade Económica Europeia, no caso do CDS); terceiro, admitiram a independência do ultramar, embora desejassem que o processo democrático fosse o mesmo em todos os territórios sob administração portuguesa.

A direita dispunha das lideranças mais jovens da democracia: em 1974, Sá Carneiro tinha 40 anos e Freitas, 33; à esquerda, Soares tinha 50 anos e Cunhal, 61.

Definiram assim o lugar da futura direita democrática. Por um lado, separavam-se das esquerdas, que defendiam para Portugal várias espécies de revolução socialista e pretendiam pôr fim à guerra em África através da simples entrega dos territórios à ditadura dos partidos financiados e armados pela União Soviética e pela China comunista. Por outro lado, afastavam-se de outras direitas, ainda mais ou menos ligadas ao Estado Novo, ou estranhas ao MFA ou então empenhadas numa “solução federal” para o ultramar, como era o caso do Partido Liberal, do Partido do Progresso ou do Partido Nacionalista Português.

Apesar de contactos com o clero e a hierarquia eclesiástica, o PPD e o CDS não reivindicavam nem de facto dispunham da cobertura da Igreja Católica, o que lhes deu um carácter acentuadamente secular. 

Eram partidos novos e independentes. Apesar de contactos com o clero e a hierarquia eclesiástica, o PPD e o CDS não reivindicavam nem de facto dispunham da cobertura da Igreja Católica, o que lhes deu um carácter acentuadamente secular. Também não estavam organicamente comprometidos com interesses organizados, sindicais ou empresariais. Dispunham ainda das lideranças mais jovens da democracia: em 1974, Sá Carneiro tinha 40 anos e Freitas, 33; à esquerda, Soares tinha 50 anos e Cunhal, 61. Ao contrário do que acontecia à esquerda, não se sentia aqui o peso de velhas hierarquias, que à direita tinham sido liquidadas pelo colapso do Estado Novo.

Uma direita involuntária

As esquerdas começaram logo a discutir se o novo regime deveria ter uma “direita”. O golpe militar de 25 de Abril não fora obra das esquerdas civis, que se tinham limitado a sair à rua ou a entrar nos palácios durante os dias seguintes. O general Spínola, presidente da república, parecia contar com a direita: nomeou até o ex-ministro Veiga Simão embaixador na ONU. O monopólio da democracia pela esquerda começou, assim, por ser inicialmente apenas uma questão teórica.

Para justificar o seu predomínio, as esquerdas invocavam o seu papel na “resistência” à ditadura (omitindo que Salazar também tivera inimigos veementes à direita, como o republicano Cunha Leal ou o monárquico Paiva Couceiro), e insistiram na identificação da “direita”, que tratavam como um bloco homogénea, com o “fascismo”. Era uma posição perigosa, como explicou António José Saraiva num artigo do jornal República: se o regime tivesse de excluir os que não se reviam nas esquerdas, nunca seria uma democracia, da mesma maneira que o salazarismo, ao insistir na exclusão das esquerdas, nunca pudera deixar de ser uma ditadura.

No entanto, devido a essa pressão, ou para se distinguirem das outras direitas em formação, nunca o PPD e o CDS se disseram de “direita”. O PPD reivindicou a “social democracia”, o que fazia sentido, pelo modo como a esquerda, incluindo o PS, recusava e castigava o que então via como um compromisso ignóbil com o capitalismo. Ao situar-se desta maneira, o PPD deu espaço e razão de ser ao CDS, que se logo de anunciou como único partido democrático não socialista. No entanto, também o CDS evitou a “direita”, preferindo um “centrismo” mais inspirado então por Giscard d’Estaing do que pela democracia cristã, até pela relutância da Igreja portuguesa em identificar-se com qualquer força política. Esta recusa da marca da “direita” pareceu mais ou menos plausível antes do golpe de 28 de Setembro de 1974, enquanto existiram outros partidos à direita do PPD e do CDS, como o Partido Liberal ou o Partido do Progresso.

Esta direita que não queria ser a direita nunca teve uma relação clara com Spínola.

Inicialmente, a direita democrática parecia destinada a entender-se com o general Spínola e os outros generais conservadores da Junta de Salvação Nacional (como Galvão de Melo), enquanto o PCP e a extremas-esquerdas aliciavam os majores e os capitães com que, depois, reinventaram o MFA. No entanto, esta direita que não queria ser a direita nunca teve uma relação clara com Spínola. Sá Carneiro foi o que se dispôs a ir mais longe para ajudar o general: em Julho, porém, a presidencialização precoce do regime falhou. Sá Carneiro saiu do governo e perdeu influência entre a elite dirigente do PPD.

Depois do 28 de Setembro de 1974, Spínola é obrigado a passar o poder a Costa Gomes

Depois do 28 de Setembro de 1974, Spínola é obrigado a passar o poder a Costa Gomes

Em Setembro, o PPD e o CDS não se dispuseram a alinhar publicamente com Spínola na manifestação da “maioria silenciosa”. Nem por isso deixaram de ser afectados pela derrota do general. Com a demissão de Spínola da presidência e dos generais conservadores da Junta de Salvação Nacional, deixaram de contar com simpatias entre as autoridades militares. Pior: a proibição dos outros partidos de direita, como o Partido Liberal e o Partido do Progresso, fez do PPD e do CDS, na prática, a “direita” do regime, e como tal passaram a ser atacados pelas esquerdas. Em contrapartida, transformaram-se também, sobretudo depois da suspensão do Partido da Democracia Cristã em Março de 1975, na única alternativa de voto, ao lado do pequeno Partido Popular Monárquico, para quem não se reconhecia na esquerda.

Problemas com a democracia

Para a esquerda, a direita não era nem podia ser democrática. E de facto, as direitas tinham tido um problema com a democracia. Os chamados “nacionalistas”, em geral, não acreditavam no pluralismo partidário, em eleições ou em debates parlamentares: tudo isso lhes parecia apenas meios de dividir e enfraquecer uma nação que devia permanecer una do Minho a Timor. Os conservadores e liberais que perfilhavam a democracia de tipo ocidental acreditavam nela como fim, nas duvidavam dela como meio: temiam que, num primeiro momento, propiciasse um regresso à “ditadura da rua” da I República (1910-1926) ou mesmo um salto para uma ditadura comunista, como as que desde 1945 existiam na Europa de Leste sob influência soviética. Por isso, com Marcello Caetano antes de 1974, tinham admitido que uma ditadura reformista talvez fosse a etapa de transição necessária para uma futura democracia concebida à maneira ocidental.

Durante a ditadura salazarista, as esquerdas não se tinham cansado de reivindicar eleições livres e pluralismo partidário. Mas para uma grande parte delas, essa reivindicação era apenas uma maneira de congregar apoio para sair de uma ditadura que não conseguiam derrubar pela força.

Mas a esquerda, que assim julgava a direita, também tinha um problema com a democracia, embora o inverso da direita: enquanto à direita a democracia podia ser um fim, mas não era um meio, à esquerda, a democracia era um meio, mas não um fim. Durante a ditadura salazarista, as esquerdas não se tinham cansado de reivindicar eleições livres e pluralismo partidário. Mas para uma grande parte delas, essa reivindicação era apenas uma maneira de congregar apoio para sair de uma ditadura que não conseguiam derrubar pela força.

A democracia era assim, para comunistas e “marxistas-leninistas”, apenas uma etapa de transição para uma nova ditadura, a deles.

O Partido Comunista (de orientação soviética) e as esquerdas ditas “marxistas-leninistas” (geralmente pró-chinesas) propunham transpor para Portugal os sistemas de partido único e economia estatizada da União Soviética, de Cuba, ou da China maoísta. Eram projectos fundamentalmente incompatíveis com eleições livres, pluralismo partidário e livre iniciativa dos cidadãos. A democracia era assim, para comunistas e “marxistas-leninistas”, apenas uma etapa de transição para uma nova ditadura, a deles. Foi o que todos puderam constatar em 1975, quando as facções do MFA próximas do PCP e da extrema-esquerda tomaram o poder.

Sobreviver

No fim de 1974, o PPD continuava no Governo Provisório, e Freitas do Amaral no Conselho de Estado. Mas já não dispunham da protecção do presidente da república e estavam de facto acossados. O CDS não conseguiu realizar o seu primeiro congresso no Porto em Janeiro de 1975. Depois do golpe de 11 de Março, com a extinção do Conselho de Estado, o CDS ficou sem posições no Estado, e temeu nem ser autorizado a concorrer às eleições para a Assembleia Constituinte. O Estado parecia reduzido a um aglomerado de quartéis onde mandavam os militantes das esquerdas. O ambiente era, aliás, universalmente mau. A primeira crise do petróleo, o Watergate e a retirada americana do Vietname haviam coberto o Ocidente com um nevoeiro crepuscular de decadência. As ideias conservadoras e liberais pareciam fora de moda.

Os partidos da direita democrática tiveram de se adaptar rapidamente. A prioridade era sobreviver até às eleições. Começaram logo por se conformar com a redução da descolonização a uma mera retirada militar negociada com os partidos independentistas ligados à União Soviética e à China comunista, o que deixou o “ultramar” entregue a ditaduras e guerras civis. A seguir, tiveram de aceitar a ideia do objectivo socialista da revolução, pelo expediente de reinterpretarem o conceito de “socialismo” e fingirem acreditar na possibilidade de uma “via original” para lá chegar. Foi assim que PPD e CDS estiveram entre os seis partidos subscritores da Plataforma de Acordo Constitucional com o Movimento das Forças Armadas (Pacto MFA-Partidos), a 11 de Abril de 1975.

O PPD chegou a conhecer uma deriva esquerdista após Sá Carneiro ter abandonado a liderança. Em Julho de 1975, pareceu tentado a situar-se entre o PS e o PCP, e saiu do IV Governo Provisório de Vasco Gonçalves depois do PS (durante uma semana, houve uma espécie de governo PPD-PCP). A prioridade era sobreviver à revolução. Tudo isto viria, nos anos seguintes, a alimentar muitos equívocos sobre a natureza do PPD e do CDS. Mas não foram apenas estes exercícios de camaleão que os salvaram.

Portugal já estava, em 1975, demasiado integrado na Europa ocidental, militar e economicamente. Uma revolução em Portugal só seria possível se fosse tolerada pelos seus aliados e parceiros ocidentais. O PPD e o CDS tinham esta utilidade: serviam para provar às embaixadas que o MFA ia conciliar o socialismo com o pluralismo partidário. Haveria ainda outros cálculos: o PCP e as facções do MFA que lhe eram próximas receavam provavelmente que a eliminação do PPD e do CDS reforçasse eleitoralmente o PS.

Finalmente, depois das eleições de 25 de Abril de 1975, PPD e CDS demonstraram representar mais do que uns quantos professores universitários e profissionais liberais tolerados pelo MFA: recolheram, em conjunto, 1,9 milhões de votos, quase tantos como o PS (2,1 milhões) e o dobro do PCP adicionado ao MDP (948 mil). A direita era, acima de tudo, um efeito da pluralidade e diversidade do país, que historicamente teve a sua primeira manifestação política com as eleições de 1975.

Resistir

O PPD e o CDS eram partidos do norte e das ilhas (num tempo em que só o PS era um partido propriamente nacional). O seu país era o Portugal católico, da pequena propriedade, da emigração, mas também de uma grande parte da indústria de bens de consumo (havia, aliás, mais operários industriais no norte do país do que no sul). As autoridades militares de Lisboa haviam experimentado algumas operações de propaganda no norte, mas depois pouparam-no às ocupações e nacionalizações revolucionárias do sul. Foi esse país que, no verão de 1975, se levantou em massa contra o poder militar revolucionário de Lisboa.

As elites dirigentes da direita democrática haviam desenvolvido uma cultura de contemporização e de compromisso. Preferiam encarar a política de um ponto de vista “técnico”.

A norte, a partir de Julho de 1975, o povo da direita encheu praças e ruas, cortou estradas, cercou quartéis, e atacou as sedes do PCP e da extrema-esquerda. Foi uma espécie de reedição da “Maria da Fonte”, como disse um dos seus activistas. A imprensa nacionalizada de Lisboa esforçou-se por reduzir tudo a um simples caso de polícia, e a historiografia oficial tentou desde então apagar a sua memória (porque só à esquerda é que pode haver “povo”). A verdade é que metade do país ficou mais ou menos “libertado” do poder revolucionário.

Em Outubro de 1975 o CDS já consegue realizar um grande comício no Porto

Em Outubro de 1975 o CDS já consegue realizar um grande comício no Porto

Os partidos da direita democrática não foram, porém, os personagens principais do levantamento e da resistência. No terreno, a mobilização popular foi frequentemente protagonizada pelo clero, e as acções violentas por activistas do Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), vagamente liderado por Spínola – do qual, aliás, o PPD e o CDS se demarcaram, condenando-lhe os métodos. Como interlocutores, os EUA e as potências da Europa ocidental privilegiaram Mário Soares e a esquerda militar moderada (o “Grupo dos Nove” do Conselho da Revolução). Fez algum sentido: evitou uma divisão esquerda-direita, do tipo da guerra civil de Espanha, e isolou os comunistas e a extrema-esquerda.

No Outono de 1975, Sá Carneiro, regressado a Portugal, e o general Galvão de Melo, então deputado pelo CDS, pareceram tentados a navegar a revolta popular anti-comunista para fazer reverter a revolução. Mas a elite do PSD resistiu a Sá Carneiro, ao ponto de provocar uma primeira cisão no partido em Dezembro de 1975, e a do CDS nunca esteve à vontade com o populismo contra-revolucionário de Galvão de Melo. As elites dirigentes da direita democrática haviam desenvolvido uma cultura de contemporização e de compromisso. Preferiam encarar a política de um ponto de vista “técnico”. Adaptaram-se assim ao pacto de 25 de Novembro de 1975, com que o PREC fechou a loja.

A grande preocupação as elites do PPD e do CDS não foi dirigirem uma vaga social de fundo contra um Estado onde o revolucionarismo socialista se misturara com o corporativismo salazarista para limitar a liberdade de iniciativa dos cidadãos. Acima de tudo, preocupava-os não serem excluídos dos arranjos entre o PS, as Forças Armadas e as embaixadas ocidentais. 

Uma história esquizofrénica

O PREC, no entanto, fez o país virar à direita de um modo decisivo. O sucesso do CDS em 1976 demonstrou isso: era o único dos grandes partidos que não tinha feito parte dos governos provisórios (1974-1976), o único que se declarou “não-socialista”, e o único que votou contra a Constituição da República em 2 de Abril de 1976. Recolheu assim, nas eleições legislativas de 25 de Abril de 1976, uma grande parte da indignação contra-revolucionária. Duplicou a sua votação, enquanto todos os outros partidos perdiam eleitores, e passou de quarto a terceiro partido mais votado. Tinha por si uma população irritada, não apenas com a falta de garantias que caracterizara a revolução, mas também com a “austeridade” inaugurada por Vasco Gonçalves. Todas as semanas, a imprensa de esquerda contabilizava com enorme angústia as associações de estudantes que a partir de 1976, nos liceus e faculdades, passavam para as mãos da Juventude Centrista ou da Juventude Social Democrata.

Mas a grande preocupação as elites do PPD e do CDS não foi dirigirem uma vaga social de fundo contra um Estado onde o revolucionarismo socialista se misturara com o corporativismo salazarista para limitar a liberdade de iniciativa dos cidadãos. Acima de tudo, preocupava-os não serem excluídos dos arranjos entre o PS, as Forças Armadas e as embaixadas ocidentais. Em 1976, o risco já não era o de uma ditadura comunista, mas o do domínio permanente do Estado pelo PS, protegido pelo general Eanes e situado como “charneira” entre dois extremos equiparados: o PCP de um lado, e a “direita” do outro.

O PSD e o CDS fizeram tudo para não ficarem acantonados num extremo e serem aceites como parte do arco da governação. Entraram na maioria que elegeu o presidente Eanes, maquilharam-se para parecerem mais aceitáveis à esquerda (o PPD tornou-se PSD, o CDS inventou um “sindicalismo democrata-cristão”), propuseram repetidas alianças ao PS, e apelaram ainda mais vezes ao general Eanes.

Politicamente o regime só parecia disposto a dar à direita um papel secundário. O general Eanes era profundamente conservador, como provou na reorganização das forças armadas, mas estava comprometido com os sobreviventes do MFA no Conselho da Revolução.

A direita viveu em esquizofrenia entre 1976 e 1979. Por um lado, estava em maré alta, devido à rejeição generalizada da revolução e ao descontentamento com a inflação e a austeridade. Portugal mudara, com o fim da sociedade rural e a terciarização da economia. A nova população urbana e suburbana dispensava a miséria cubana e a repressão soviética. Aspirava à vida de um país da Europa ocidental, com a liberdade dos ingleses, a vida intelectual francesa, a economia alemã, e a protecção social dos suecos. O PSD e o CDS correspondiam a essas expectativas.

Politicamente, porém, o regime só parecia disposto a dar à direita um papel secundário. O general Eanes era profundamente conservador, como provou na reorganização das forças armadas, mas estava comprometido com os sobreviventes do MFA no Conselho da Revolução. O PS insistia na ideia de que o governo lhe deveria caber em exclusividade para bem da democracia. A estratégia socialista era então proceder a um ajustamento económico-financeiro, mas sem pôr em causa os princípios constitucionais. O seu principal instrumento foi a inflação, que permitiu diminuir os encargos com salários e pensões pela calada, através da desvalorização monetária.

Os limites da direita democrática

A pressão, porém, era enorme. Em 1978, o PS teve de recorrer à assistência financeira do FMI e, para viabilizar o programa de ajustamento, à assistência política do CDS, que aproveitou a boleia governamental para se “legitimar”. A direita partidária, porém, não parecia destinada a governar. Quando o PS finalmente caiu, o presidente da república acabou por confiar o governo a um independente, Carlos Mota Pinto, um dissidente do PSD. Em 1978, o governo de Mota Pinto definiu o que seriam as bases dos futuros programas de modernização liberalizante da democracia portuguesa — mas sem os partidos da direita. Era um regime que, como o PCP dizia, seguia “políticas de direita”, mas com a direita partidária na oposição. Foi nesta época que o PSD se dividiu novamente, ao ponto de, durante uns meses, parecer condenado.

ELEICOES LEGISLATIVAS, Europhoto,

A Aliança Democrática junta o PPD/PSD de Sá Carneiro, o CDS de Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa e o PPM de Ribeiro Telles

Em 1979, Sá Carneiro impôs-se no PSD e levou-o a uma coligação pré-eleitoral com o CDS e o Partido Popular Monárquico, a Aliança Democrática. A AD não ganhou apenas as eleições legislativas, mas também as autárquicas, incluindo em Lisboa: em 1979, a capital do PREC, a cidade onde o CDS teve a sua sede regularmente assaltada e destruída, passou a ter uma vereação municipal de direita, sob a liderança de Nuno Krus Abecassis.

O refluxo do PREC era evidente. Mas o acesso da direita democrática ao governo ecoou também um movimento de opinião na Europa ocidental e nos EUA, coincidente com a segunda crise do petróleo. Os pontos de vista liberais e conservadores voltavam a estar na moda. Em 1979, Margaret Thatcher ganhou as eleições na Grã-Bretanha e em 1980, Ronald Reagan venceu nos EUA. Os intelectuais ocidentais trocavam a leitura de Marx e de Lenine pela de Popper e Hayek. Muitos ex-socialistas e ex-esquerdistas juntaram-se à AD nesta época, a começar por antigos ministros do PS, como José Medeiros Ferreira e António Barreto.

O problema da direita portuguesa era curiosamente igual ao da esquerda em Espanha. Em Espanha, a esquerda aceitou sair da ditadura franquista através de um pacto – e embora governasse, sentiu sempre limites e constrangimentos. Em Portugal, também houve um pacto de transição, não para sair da ditadura salazarista, mas do autoritarismo revolucionário de 1975, e a direita também se sentiu sempre limitada e constrangida.

A política de escudo forte e combate à inflação de Cavaco Silva, o ministro das finanças da AD, irritou os exportadores, mas restabeleceu o poder de compra, em queda desde 1975. A direita era popular e aumentou a sua maioria absoluta em Outubro de 1980. As esquerdas refugiaram-se atrás de Eanes, do Conselho da Revolução e da Constituição. A reeleição de Eanes e a morte de Sá Carneiro começaram a esvaziar a AD no fim de 1980.

A lógica do compromisso foi sempre mais forte do que qualquer ímpeto de ruptura.

Ficou então definido o problema da direita portuguesa. Era curiosamente igual ao da esquerda em Espanha. Em Espanha, a esquerda aceitou sair da ditadura franquista através de um pacto – e embora governasse (o PSOE esteve no poder entre 1982 e 1996), sentiu sempre limites e constrangimentos. Em Portugal, também houve um pacto de transição, não para sair da ditadura salazarista, mas do autoritarismo revolucionário de 1975, e a direita, embora integrada no arco da governação, ao contrário do PCP e da extrema-esquerda, também se sentiu sempre limitada e constrangida.

Em 38 anos de democracia, desde 1976, os partidos da direita governaram 21 anos — sozinhos, coligados entre si, ou coligados com o PS. É verdade, porém, que o que fizeram para libertar a democracia da mão-morta do PREC, tiveram de o fazer com o PS, como a desmilitarização do regime em 1982, a integração europeia em 1986 ou os ajustamentos económico-financeiros de 1978 e de 1983. A lógica do compromisso foi sempre mais forte do que qualquer ímpeto de ruptura. No entanto, tal como existe em 2015, a democracia portuguesa corresponde muito mais ao que a direita democrática defendia em 1974 do que ao que então propunham as esquerdas. Talvez devessem sentir-se mais à vontade do que por vezes parecem sentir-se.

1st May 1974: Jubilant Portuguese marching down the centre of Lisbon chanting 'long Live Freedom' - 'Long Live the Army' after the military takeover and the promise of democracy by General Spinola's junta. (Photo by Keystone/Getty Images)

Todos tiveram de se adaptar à ideia de que a democracia era um meio e também um fim

O sucesso da direita como factor de socialização democrática

Em 1974, todas as correntes políticas tinham de se democratizar: tantos aquelas que vinham do Estado Novo, como aquelas que vinham das oposições de esquerda. Todos precisavam de se adaptar a um regime com eleições genuínas e pluralismo partidário, de que não havia o hábito, num país que, em 1975, se revelou irredutivelmente diverso e plural. A democracia foi um problema para todos. À direita, tinha sido concebida como um fim, mas não um meio; à esquerda, como um meio, mas não um fim. Todos tiveram de se adaptar à ideia de que a democracia era um meio e também um fim.

Portugal é ainda hoje um dos poucos países europeus sem partidos da família da Frente Nacional ou do UKIP. O populismo que existe, como o de Marinho Pinto, prefere dar-se ares de esquerda.

Mas como agentes de socialização democrática, os partidos democráticos da direita foram muito mais eficazes do que os partidos democráticos da esquerda (isto é, o PS). Entre 1976 e 1979, o PSD e o CDS não deram espaço à reconstituição de direita nacionalista, limitando nomeadamente o MIRN com que o general Kaúlza de Arriaga tentou então voltar à política. Portugal é ainda hoje um dos poucos países europeus sem partidos da família da Frente Nacional ou do UKIP. O populismo que existe, como o de Marinho Pinto, prefere dar-se ares de esquerda. À direita, em Portugal, a democracia liberal prevaleceu. O mesmo não aconteceu à esquerda, onde o PS continua a suportar a concorrência de partidos cuja ideia de democracia é alguma variante da ditadura soviética. A esquerda continua a ter problemas com a democracia: e um dos sinais desses problemas é precisamente a sua dificuldade em aceitar a direita.

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