Uma vez perguntaram ao irrequieto Bertolt Brecht de onde retirava ele inspiração para o seu teatro. E ele respondeu ao jornalista atónito: “Não se espante, é mesmo da Bíblia”. “A Bíblia” foi curiosamente o título e o argumento do primeiro texto dramático de Brecht, publicado no jornal estudantil “Die Ernte”, em 1914, tinha ele apenas quinze anos. O pai católico e, sobretudo, a mãe protestante foram decisivos para a sua imersão no universo bíblico. Em relação à Bíblia há uma infinidade de histórias e de surpresas assim. Ela é verdadeiramente “o grande código”, como escreveu William Blake, reconhecendo quanto o destino desse texto religioso, referencial para a tradição judaica e cristã, representa afinal também uma chave para entender a produção cultural e simbólica do Ocidente.
Desconhecer a Bíblia não é, por isso, apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. A Bíblia, que continua a ser religiosamente o vital repositório onde milhões de mulheres e homens buscam inspiração para a aventura da construção do sentido das suas próprias vidas, constitui uma espécie de chave indispensável à decifração do pensamento, imaginação e quotidiano, mesmo daqueles que nunca a leram, de tal modo ela está disseminada na cultura.
Texto Sagrado para crentes de mais de uma religião, super clássico da literatura, objecto interminável de exploração, mais do que um livro, é uma indispensável biblioteca. Os contributos ao seu estudo e aprofundamento, em perspectivas naturalmente diversas, permitem-nos mergulhar até às raízes que civilizacionalmente nos urdem. A chegada de Frederico Lourenço ao campo bíblico, primeiro com um volume de ensaios (O livro aberto: Leituras da Bíblia, Ed. Cotovia, 2015) e agora com o grande projecto de tradução da Bíblia grega (Bíblia, Ed. Quetzal, 2016), merece aplausos.
A escolha do corpus
Frederico Lourenço que edita agora a sua tradução dos quatro evangelhos, propõe-se em sequência verter para português a chamada “Bíblia dos LXX”, isto é, fazer a tradução de uma tradução do Velho Testamento. Mas não de uma tradução qualquer. Os LXX são a primeira tradução grega do texto bíblico hebraico que só foi possível realizar pela vitalidade do judaísmo helenístico e pelo clima cultural altamente qualificado que se gerou em torno à mítica biblioteca de Alexandria, no século III a.C..
Era uma tradução de judeus bilingues para outros judeus que, vivendo na grande diáspora, já não eram capazes de ler a sua língua de origem. Ela viria a ser a Bíblia utilizada pelos autores do Novo Testamento cristão e pelos teólogos que se lhes seguiram, chegando ao estatuto de Bíblia oficial do cristianismo, só destronada pela tradução latina (a Vulgata) e atualmente pelas traduções a partir do original hebraico.
Que interesse tem a tradução da Bíblia grega dos LXX? Para lá do enorme interesse documental, histórico e filológico, este empreendimento editorial permite-nos conhecer um texto que lança luz sobre a construção do pensamento cristão e que é, por exemplo, lido ainda hoje pelos fiéis das Igrejas orientais, que o mantêm como a sua versão corrente.
A aventura do tradutor
O século XX, que foi um século de ouro para os estudos bíblicos, viu surgir muitas traduções da Bíblia. Quase todas elas foram obra de uma equipa, o que é compreensível. A Bíblia tornou-se um texto tão especializado, exige uma tal minúcia de conhecimento, para não falar já da invulgar extensão textual do seu conjunto, que o mais razoável parece ser a interação de vários peritos associados.
Para traduzir a Bíblia não basta o domínio da língua. Penetrar no seu mundo, na sua simbólica, nos seus conceitos operativos é um trabalho desmedido. Muitos exegetas passam a vida inteira à volta de um único livro bíblico ou, não raro, de um parágrafo desse livro. A própria tradução dos LXX foi um trabalho de muitas mãos. O que não quer dizer que não existam, em todas as épocas, exemplos notáveis de navegadores solitários no magno oceano bíblico. Veja-se, entre nós, o pioneiro trabalho de João Ferreira d’Almeida (século XVII) ou a Bíblia francesa de André Chouraqui, esta de 1987. De uma Bíblia traduzida por uma única pessoa, o que porventura se perde em complementaridade, ganha-se em marca autoral.
Na apresentação deste primeiro volume de Frederico Lourenço, que se realizou no Centro Cultural de Belém, Pedro Mexia avançou uma sugestão curiosa: que se colocasse, à semelhança do que aconteceu com a tradução que Vasco Graça Moura fez da Divina Comédia, o nome do tradutor em grande destaque para que os leitores sentissem, desde logo, que estão perante um exercício autoral. Penso francamente que se justificava. E, de certa maneira, tornava esta edição mais compreensível naquilo que ela traz de novo.
A dimensão pedagógica
No programa de Frederico Lourenço para esta tradução destaca-se um elemento que vem a ser completamente determinante, inclusive na paginação do volume: o desejo de oferecer uma Bíblia “como matéria de estudo universitário entendido sob uma forma não-religiosa”. Muito em linha com o que se verifica hoje em outras geografias (Lourenço cita Harvard, Yale, Princeton, Oxford, etc), onde a Bíblia ganha cada vez maior presença e leitorados no campo do ensino das Humanidades, em cursos de graduação e pós-graduação.
Esta edição da Quetzal caminha nesse sentido. Ao contrário do que é comum nas Bíblias do espaço confessional, onde nem sempre há notas explicativas e, quando há, aparecem claramente submetidas ao texto, nesta Bíblia as notas (sobretudo de natureza linguística) ganham um espantoso protagonismo. A dimensão pedagógica é aqui também um elemento diferenciador que pode ser de utilidade para colocar a Bíblia nas mãos de novos leitores.
Resumindo: Frederico Lourenço oferece-nos mais uma Bíblia em português, e uma tradução com características históricas tão peculiares, centrada na língua grega e nos seus recursos expressivos. É obra!
Há, contudo, uma pequena questão de fundo que emerge, aqui e ali, nas introduções escritas para este primeiro volume e que me parece ganhar em ser enfrentada. É que Frederico Lourenço afirma que as traduções feitas no contexto religioso são doutrinárias, apologéticas e reproduzem uma leitura pré-determinada, enquanto que a sua tem como intuito fazer “perceber, em português, exatamente o efeito que as palavras têm em grego”.
Cada um tem direito à sua naiveté e às ilusões que quiser, mas entendamo-nos: não existe “a tradução” da Bíblia. Existem traduções, assim no plural, e estas têm qualidades e deficiências distintas, e devem ser acolhidas como dialogantes, longe de uma lógica primária de substituição. Que judaísmo e cristianismo tomam a Bíblia absolutamente a sério, Frederico Lourenço sabe-o bem, pois para esta sua tradução depende do trabalho de biblistas e exegetas judeus e cristãos que vê-se obrigado a citar a cada passo. É bom não morder a mão que nos dá o pão. Parabéns ao tradutor e à editora.
José Tolentino Mendonça é padre, vice-reitor da Universidade Católica, professor universitário e escritor