Discurso de Paulo Raimundo

no encerramento da conferência nacional do PCP

Aqui não discutimos como apoiar ou aceitar os caminhos da guerra, do reforço armamentista, das sanções, da destruição e da morte, não instigamos uma escalada de resultados imprevisíveis. Aqui, com a autoridade de quem sempre se opôs à guerra e alertou que fogo não se apaga com gasolina, tomamos a iniciativa pela paz.

Se a guerra na Ucrânia é, a par da maioria absoluta do PS, um dos “imprevistos” que o PCP tem invocado para explicar a necessidade de convocar uma conferência nacional — justificando que precisa de se reajustar a estes novos tempos — a reunião dos comunistas acabou por deixar claro que neste ponto não haverá ajustamento nenhum. A linha de raciocínio de Paulo Raimundo sobre a invasão russa da Ucrânia podia ter sido a de Jerónimo de Sousa, até porque no PCP as posições políticas não são individuais, e os dois partilham assento nos principais órgãos diretivos do PCP. Por isso, se Jerónimo abriu a conferência pedindo que sejam abertas negociações com a Rússia e culpando Estados Unidos e NATO pela “escalada” da guerra, Raimundo fechou o evento frisando que o PCP não quer “apagar fogo com gasolina” e insistindo na “solução política” para o fim do conflito. Mais uma vez, sem dedos apontados à Rússia: a instigação desse conflito, garantiu Raimundo, é responsabilidade de “EUA, NATO e UE”; a Federação Russa é referida como um dos “intervenientes”.

Aqui discutimos como apoiar e reforçar quem está na frente da luta contra a política de direita e os interesses do capital. Apoiar e reforçar as organizações e movimentos de massas, com destaque para a organização da classe operária e dos trabalhadores, o movimento sindical unitário, a CGTP-IN e as comissões de trabalhadores. O seu reforço é tarefa dos comunistas agindo em unidade com trabalhadores das mais diversas opções e origens. Não estamos, nem queremos estar sós na construção de uma vida melhor. Contamos, para além disso, com milhares e milhares de pessoas, muitas sem partido, que nos acompanham na luta diária que travamos.  Uma ligação que importa desenvolver e alargar nas mais diversas áreas e sectores.

Será um dos pontos mais relevantes do discurso de Raimundo, uma vez que confirma uma opção de fundo, e de futuro, para o PCP. O partido tem noção da situação complicada em que está e acredita que a única opção que tem é reforçar aquilo que é, na verdade, a sua génese: liga-se às bases e aos trabalhadores. Com uma nuance importante: o próprio Paulo Raimundo tem largos anos de experiência na ligação do PCP aos sindicatos e setores do mundo do trabalho, uma valência que será importante no ciclo que se abre agora, de luta contra a maioria absoluta do PS. E se Raimundo também é elogiado no seio do PCP por ter a capacidade de construir facilmente pontes com pessoas de fora do partido, incluindo no mundo sindical, o novo líder fez precisamente questão de frisar que o PCP não quer estar “só” nestas lutas — até porque esta não é uma área em que possa falar só aos seus fiéis. Precisa de falar para trabalhadores e pessoas em dificuldades que possam ter abertura a ouvir as suas ideias, e tentar reforçar assim a militância e os quadros do PCP.

Aqui não escondemos as nossas próprias insuficiências. Identificamos os problemas, procedemos à crítica e autocrítica, mas o que sobressai de todo este processo é a confiança e a determinação para superar dificuldades e aproveitar todas as potencialidades que se abrem para resistir e avançar (…). O que vai determinar no presente e no futuro é a nossa capacidade de responsabilizar, recrutar e de estar ainda mais enraizado nas massas.

Desta vez, e apesar de continuar a falar em campanhas anticomunistas e numa “brutal ofensiva” contra o PCP, o partido tem consciência de que também tem culpas a assumir pelo estado em que está e garante que sabe fazer “autocrítica”. Consciente, mais uma vez, de que o PCP precisa de estar junto das “massas”, como é da sua natureza e depois de anos de geringonça em que esteve muito reforçada a sua frente parlamentar, Raimundo falou para dentro, refletindo o que foi boa parte desta conferência: o PCP preocupado com a sua organização interna, que quer melhorar. O secretário-geral recém-chegado deu exemplos, como fazer melhorias no jornal do Avante!, reforçar a independência financeira do partido, dar responsabilidades a mil novos quadros até 2024 (“tanta tarefa que há por agarrar e tanta disponibilidade que existe para ser agarrada”), recrutar mais militantes com uma “atitude mais determinada” e contactos mais diretos a quem se “destaca nas empresas e locais de trabalho”. Resumindo: os militantes do PCP têm de arregaçar as mangas e sair à rua (e aos locais de trabalho), procurando potenciais aliados. As necessidades estão identificadas, resumiu o novo líder; resta agir com “audácia e criatividade”.

Não nos faltam razões para lutar, e todos os dias se somam novas. Aí estão mais 3 mil milhões de razões, uma por cada euro de lucro de 13 grandes grupos económicos nos primeiros 9 meses deste ano. Mas que crise é esta que vivemos que permite a um punhado lucrar enquanto a factura sobra sempre para os mesmos? A isto não se chama crise, isto tem outro nome: injustiça. Não, não podemos aceitar a injustiça nem aceitar que o Governo, perante esta situação, debite palavras magicas: défice, contenção salarial, concertação social, acordos com os mesmos de sempre, espiral inflacionista, e a cereja no cimo do bolo: contas certas.

Está desenhado o quadro para os próximos anos: são tempos de crise ou, para o PCP, de injustiça. Certo é que o resultado é o mesmo: dificuldades económicas para os trabalhadores, salários a descer (relativamente à inflação), pensões também. O cenário ideal para o PCP voltar à oposição e regressar com mais força às ruas, que nos tempos da geringonça usava quase como mais uma plataforma de negociações. Agora, a estratégia do partido passa por capitalizar com o descontentamento dos que mais vão sofrer com esta crise e com a estratégia de “contenção” do Governo, tentando recuperar algum do eleitorado que perdeu enquanto faz por evitar que o voto de protesto fuja para o Chega.

Contas certas para quem e com quem? A banca, a EDP, a Galp, a Jerónimo Martins, a Sonae? Esta é a opção política do Governo PS, bem evidente no Orçamento do Estado, e é, com mais ou menos berraria e aparente discordância, a opção de fundo de PSD, CDS, Chega e Iniciativa Liberal. O PS, que tudo fez para forçar eleições antecipadas, queria uma maioria absoluta, que com o apoio do capital e dos seus poderosos meios, conseguiu. Os resultados estão à vista. Mas ao contrário do que pensou, o Governo não ficou totalmente de mãos livres: têm na luta dos trabalhadores e das populações, têm na intervenção do PCP, nas suas diferentes expressões, os elementos que lhe fazem frente.

O segundo passo da estratégia está à vista: depois de atacar a estratégia das “contas certas” e da prioridade ao défice, o PCP coloca o PS no mesmo saco da direita — a mesma que governava durante os tempos da troika — e já nem distingue as opções do PS das de IL e Chega. A geringonça é uma memória distante. Um dos maiores aplausos que Raimundo ouviu enquanto discursava foi, de resto, a frase em que confirmou a posição de absoluta oposição do PCP à maioria absoluta do PS, avisando que afinal o Governo não está “totalmente de mãos livres”, porque os trabalhadores, apoiados pelo PCP, lhe farão frente. O problema é fazê-lo com um palco parlamentar muito reduzido, sem influência legislativa e com dificuldades na frente organizativa para puxar as massas para a rua.

O coletivo partidário é mais que a soma de cada um, mas é também o resultado do empenho de cada um. Porque não esquecemos o papel de cada um no coletivo partidário (…) gostaria de dirigir uma palavra ao camarada Jerónimo de Sousa. Obrigado! Obrigado pelo teu empenho, obrigado pelo contributo, obrigado pelo teu papel. A alteração das tuas responsabilidades não significa um adeus, é um até já, camarada.

Foi praticamente a única (salvo duas menções brevíssimas feitas por delegadas ‘anónimas’) referência direta à saída de Jerónimo de Sousa, que sentiu o carinho do partido quase exclusivamente através dos aplausos que lhe foram dedicados. Aqui, Raimundo fez questão de explicar primeiro a regra do PCP — o coletivo partidário é “mais do que a soma de cada um” e por isso não vive deste ou daquele nome, ou líder — para a quebrar durante segundos: sem esquecer “o papel de cada um”, mesmo no coletivo, quis agradecer a Jerónimo pelo seu empenho e contributo. Jerónimo, que ainda esta semana admitia que gostaria de ficar com a marca dos “afetos”, rara no PCP, no currículo, abraçaria Raimundo pelo menos quatro vezes e acabaria por lhe agarrar na mão para erguerem juntos os punhos, numa fotografia que se quer de união para os tempos difíceis que o PCP vai enfrentar.

Há quem salive e desespere pelo fim do PCP. Pois daqui fica o conselho, esperem sentados, porque um Partido ligado aos trabalhadores, às populações, aos seus problemas e anseios, determinado em lhes dar esperança, um partido assim e como aqui se reafirmou na Conferência, a única coisa a que está condenado é a crescer e a alargar a sua influência.

Nesta situação complicada, Raimundo quis dar uma palavra de esperança e ânimo aos militantes, deixando um “conselho” irónico a quem antecipa o fim do PCP e provocando uma das maiores ovações do dia. Já a previsão de que o PCP está condenado a crescer e alargar a sua influência parece francamente otimista, pelo menos julgando pelo ciclo de derrotas e de perda de eleitorado que se prolonga há anos. Aos militantes que agora lidera, pediu “um esforço” para tentarem preservar “o mais belo projeto que a humanidade conhece”, e que, com os partidos comunistas a definharem na Europa, parece mais longínquo do que nunca. Mesmo assim, fez questão de referir que o PCP registou a entrada de dois mil novos militantes desde o início do ano passado, tentando acabar o seu primeiro discurso no papel de secretário-geral com uma nota positiva.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o perfil de Paulo Raimundo.

Paulo Raimundo “é solução” para o PCP?