Os corpos passam a ser metade animal-ator e metade humano-virtude. Antes eram alunos de teatro vindos de várias áreas artísticas, a envergarem fatos de treino e T-shirts com parangonas. A cada um foi dado o nome de uma virtude: Justiça, Sensibilidade, Honestidade, Verdade, Excelência, Fé e Respeito. Depois da cena de confronto da professora, a mestra, com a Justiça, os restantes alunos entram em palco como um centauro invertido, em que as cabeças é que são o instinto. Deixam de pensar e passam apenas a fazer. A professora é interpretada por Beatriz Batarda, que encena e escreve, pela primeira vez, para teatro.
Resultado de dois anos de processo criativo traduzido em cinco laboratórios para Batarda poder escrever C. Celeste e a Primeira Virtude, do qual resultou também uma vídeo-instalação – Corpos Celestes – que pode ser vista na sala Bernardo Sassetti (tudo no Teatro São Luiz, em Lisboa, a partir desta terça-feira, dia 11 de abril), este espectáculo coloca em tensão o velho mundo, que até há bem pouco tempo era considerado o novo mundo, com algo diferente. Estamos a viver uma mudança de paradigma e esta professora – Batarda é também docente, há 17 anos – confronta-se a si e aos alunos com problemáticas que vão desde a comunicação (a linguagem e o significado dos conceitos), à individualidade e à tribo, à Arte e ao Amor.
Quando a mestre não está com os alunos, a aluna Justiça é o alter-ego da mestre naquele grupo?
Sim, absolutamente. Por isso é que elas são irmãs.
Qual a relação entre a Beatriz atriz, encenadora e professora e a Beatriz que escreve este texto? Há muita capacidade de auto-crítica.
O que motiva cada pessoa a escrever o que escreve ou a criar o que cria só diz respeito a cada um. Mas o exercício é maior. Não é um registo metateatral, é um registo alegórico. Porque, apesar de ir buscar referências muito concretas, como Einstein, Schopenhauer, Tolentino Mendonça, Luís Miguel Cintra, elas são, no fundo, representantes de um mundo que esta mestra terá herdado e que já não serve este mundo que se anuncia. Para mim, a peça não se localiza numa data, nem 2020 nem 2023. Situa-se num sítio, que eu não sei bem qual é.
Não há um “generation gap”?
Acho que é mais do que um problema de “generation gap”, é mais do que um choque geracional. Acresce aqui uma sére de fatores que aceleram e potenciam a urgência desta transformação e desta mudança, nomeadamente as preocupações com as alterações climáticas e o abuso na utilização da energia fóssil. Todas estas preocupações são muito vibrantes nestas gerações várias que se anunciam e a geração que a mestra representa – que não será necessariamente a Beatriz, mas que, de uma forma mais alargada, a representa – não parece estar nem sensibilizada nem interessada nelas, porque terá de sacrificar o mundo tal qual como o conheceram. Há aqui uma cisura que é extra-choque de gerações.
Porquê a necessidade de dar aos alunos nomes de valores?
Precisamente para poder colocar a problemática e a discussão num sítio que não seja terreno, que não seja do quotidiano, que não seja coloquial. Para permitir ao espectador fazer essa reflexão através de alegorias sem se sentir diretamente atacado. Porque não é esse o intuito. O teatro, pelo menos o teatro que me interessa fazer, não é um teatro que dá respostas, mas que lança uma mancha expressiva de perguntas. E, como diz a certa altura a personagem da Justiça, “eu não procuro respostas, eu procuro a salvação”. Nem que seja através dessas perguntas. E, nesse sentido, a Beatriz escritora estará mais perto da voz da Justiça do que propriamente da voz da mestra. Com esta escrita, não faço eu própria uma higienização do meu passado ou um mea culpa, no sentido católico. Não passa por aí. Passa por um desejo de exercício de confrontação e de questionamento genuíno, honesto e pessoal. A ideia é premiar o debate junto dos professores e dos alunos que virão ver este espectáculo. É um espectáculo que também é feito a pensar nos estudantes e haverá espectáculos feitos à tarde só para eles. A cisura está tão acirrada que há um bocadinho o risco de se perder essa abertura para se poder dialogar, numa zona de desejo de entendimento, ou desejo de encontrar qualquer coisa. Se calhar, os adultos posicionam-se na defesa de valores que foram os que fizeram com que eles sobrevivessem até aqui e não estão dispostos a abdicar deles. E os mais novos já não estão para aquilo. Já estão muito magoados.
É a geração do trauma, como referiu na peça.
Esta mestra é bastante injusta quando os coloca nessa gaveta. Penso que terá que ver com práticas que foram surgindo desde os anos 60, direi, em que houve uma maior sensibilidade para essa problemática da saúde mental, que são as feridas que nos tornam incapazes. Um trauma que é sempre feito de uma forma muito caseira, sempre nesta tradição freudiana de culpar os pais, etc. Mas o trauma é muito maior. Já para não falar do trauma mais recente da pandemia, que foi um trauma verdadeiramente clivado, tanto para a classe dos professores como para os alunos e o seu desenvolvimento afetivo, cognitivo.
De relação com o corpo.
De relação com o corpo, com a sexualidade. Mas também no exercício da sua empatia. Há aqui uma série de coisas que ficaram em suspenso com a pandemia. Mas, quando a escritora menciona o trauma, é o trauma do mercado. É a enorme contradição entre aquilo que é esperado dos artistas e aquilo a que o mercado obriga os artistas. Penso que será desse trauma que eu, Beatriz, estou a falar na peça. O trauma de que a mestra fala é uma espécie de álibi, do ponto de vista dela: estes jovens terão criado uma espécie de álibi, de vitimização, para não evoluírem, para não se esfolarem verdadeiramente, para não se exporem, para poderem então fazer essa evolução. Mas eles não podem, na verdade, fazer isso. Eles estão tão coxos, tão distantes da realidade que nós lhes queremos impor – que para nós faz sentido e que para eles já não faz –, que eles não conseguem avançar. Eles não conseguem fazer nada com aquilo que nós temos, com aquilo que lhes estamos a deixar.
Vê-se ao longo da peça que os alunos têm capacidade de questionar. Qual o papel da capacidade de dizer não, da ideia de violência? Como é que um professor trabalha a fricção e a relaciona com o corpo, sem que eles se magoem?
É complexo o lugar do professor na nossa contemporaneidade. Há falta de amor, há muito desamor a acontecer na vida destes mais novos. Há muita ausência. É quase como se a sociedade se tivesse demitido de uma série de regras e de limites sob pena de ser uma imposição. Às vezes, não há bem a perceção do que é um limite. Ou um filtro. E, portanto, vale tudo. São jovens que revelam a sua fragilidade – que não é vulnerabilidade – de outra maneira, porque se deixam sugar por outras máquinas, nomeadamente a máquina tecnológica. Nestas novas formas de comunicação, através das redes, expõem-se muitas vezes de forma frágil e são, no fundo, usados para que essa máquina continue a funcionar. Ser professor é duríssimo porque, de facto, ensina-se muito pelo exemplo. Não perguntar para manipular, ou perguntar para conduzir, mas perguntar com curiosidade verdadeira. No exercício de algumas virtudes, sem abdicar da sua própria humanidade, a do professor, e deixar que o aluno possa também explorar a sua própria humanidade. E quando falo aqui de humanidade estou obviamente a falar da tridimensionalidade destas virtudes.
Porque não são sempre iguais?
Porque a coragem tem várias faces, assim como o respeito, a honestidade. O sacrifício terá várias faces. Dentro dessa ideia bidimensional de “ter” ou “ausência de”, ainda há a tridimensionalidade: eu posso ter e não aplicar; posso não ter, mas querer mostrar que tenho. Isto tem muito que se lhe diga – como nos relacionamos com as virtudes. E com os pecados, até porque os pecados contemporâneos já foram muito transformados e mastigados. Aquilo que dantes era lido como vaidade, agora é lido como autoestima; aquilo que era lido como orgulho, agora é lido como empowerment. Estamos em transformação nessa relação com os valores. E portanto, ao estarmos em transformação na relação com os valores, estamos a redefinir o significado de uma série de palavras, nomeadamente a palavra liberdade. Foi uma descoberta para mim perceber que, para eles, liberdade tinha muitos significados e nunca se prendia com o binómio liberdade/ responsabilidade. Era uma ideia só, como “liberdade é fazer o que me apetece” ou “liberdade é dormir até tarde”. Esta ideia de que liberdade é não ter limites foi uma surpresa para mim, não tinha essa perceção de que era assim que eles se relacionavam com a palavra.
Os alunos não conseguiram fazer, assim, uma ligação direta entre liberdade e sacrifício? De que a liberdade que existe hoje foi conseguida através de muito sacrifício e não está garantida?
Não. Acho que esta geração tem clara noção de que nasceu em liberdade. É um dado adquirido. Mesmo para a minha geração, há uma ligação às histórias contadas pelos pais, de haver uma perseguição aos livros. Não a vivi no corpo. Foi uma coisa que ouvi e recebi. Eles são da geração que se calhar acha normal que nas reedições dos livros da Agatha Christie ou do James Bond estejam a alterar, a higienizar, a escolha de palavras. Para mim, se calhar é chocante porque ainda está presente, não no meu corpo, mas naquilo que ouvi ser o significado deste tipo de mecanismos – mesmo que as ideologias sejam outras. O mecanismo é exatamente igual. Portanto, o conceito de liberdade para eles prende-se mais depressa com mobilidade, com esta ideia de que pertencem ao mundo, porque podem estar aqui como podem estar ali – isso é liberdade, poderem pagar 30€ e voar para não sei onde –, do que propriamente a construção de uma voz que doa a todos e não poupe ninguém. Mesmo a arte… não sei se a arte não será muitas vezes aquele lugar – e isto é altamente polémico e o suficiente para me cancelarem – que existe para não ter uma função, que tem o direito de existir só porque sim, sem responsabilidade.
Sem responsabilidade, onde fica a ideia de coletivo? Como é que se pode fazer teatro?
Não sei. Tenho a teoria de que nos distanciamos dos restantes animais em poucas coisas. E uma que me berra mais é esta necessidade de construir narrativas, que depois formalizamos de muitas maneiras, seja por ideologia, religião, fantasia, biografias, pelos livros de História – que nem sempre são olhares muito acertados sobre os acontecimentos. Ou que são variáveis e vão sendo atualizados consoante a sua contemporaneidade. Acontece-nos uma coisa que não compreendemos e rapidamente temos que atribui-la ao destino ou ao acaso ou a Deus, para lhe dar uma espécie de lógica. Fazemos imensas lógicas freudianas. E todas as pessoas se permitem fazer narrativas sobre uns e sobre outros, seja no círculo mais próximo e pessoal, seja no círculo mais alargado, através das redes sociais. Estamos um bocadinho obsessivos, de tal maneira que estas narrativas já vão para as fake news. Começa a ser aqui uma pescadinha de rabo na boca. E quando falamos de narrativas não estamos a falar só de teatro, nem de imprensa, nem de redes sociais, nem de escrita. A linguagem não é só através da palavra. Também construimos narrativas através do movimento, através do corpo, da dança, da pintura, da música. A música também tem a sua narrativa, mesmo que não tenha uma lógica e seja abstrata. Por isso, pergunto-me o que é que nos fará querer continuar a construir essas narrativas. Quero acreditar que, se calhar, vamos passar por uma fase não tão interessante, porque são narrativas que irão perpetuar o prazer da confirmação. Mas espero que se consiga depois tirar essa pedra da engrenagem acabar com a avaria, e avançar então para outra coisa.
Na peça, diz que a arte afasta o medo e fala na arte enquanto desejo. E refere também o “corpo sem órgãos”. Deleuze e Guattari falavam da ideia de corpo insuflado, em que desejo e prazer não se apresentam como sintoma de uma falta, como defendia Lacan, mas de um preenchimento.
Fui buscá-lo antes, ao Artaud. É a aluna a mostrar que sabe.
Referiu-o apenas por isso?
Não. O momento da invenção, quando acontece em total liberdade, sem as medidas da responsabilidade ou do respeito ou de todas essas virtudes que condicionam a interpretação da palavra, resulta no fenómeno em que o nosso corpo deixa de ser um corpo ligado à terra e às necessidades da terra para ocupar um sítio suspenso entre a crosta terreste e o firmamento.
Na nuvem.
Sim, é a nuvem de poeira que o Fé no final refere: que a Justiça desapareceu, materializou-se na nuvem de pó. No momento da criação, há uma espécie de anulação do corpo e de anulação do ego para haver uma enaltação dessa ligação maior, cósmica.
Daí o nome Celeste.
Sim.
Porquê matar a Justiça? Porque quando se torna plena deixa de ser necessária?
Não, penso que é um acidente. A Justiça é o herói da nossa história. E, no teatro, temos que fazer cair o herói para nos podermos confrontar com aquilo de que temos mais medo. Penso que quis fazer cair o Conhecimento [a representante do conhecimento aqui está no corpo da mestra] e a representante da democracia [aqui no corpo da Justiça] para afugentar o medo que eu tenho: que nesta mudança se caia na armadilha de matar a memória e o conhecimento e a justiça.
Estes alunos têm noção da extrema-direita e do perigo que representa a sua ascensão?
Penso que têm noção. Não sei se estão muito convocados para esse combate, porque neste momento penso que estão mais convocados para combater o poder, o poder que está. Aí é que pode haver uma zona mais arriscada, como já aconteceu noutros momentos da História. Quando estão a apontar para um alvo, pode ser que estejam a alimentar outra coisa. Têm urgência. As grandes transformações não se fazem depressa. Quando a mestra diz que eles assinalam uma inexpressiva transformação, não é desacertado. As grandes transformações são de facto graduais. Mas há uma série de fatores que estão a aquecer e a exacerbar este desejo de transformação. Não queria ser moralista. Estou a usar as alegorias das virtudes e, de repente, isto parece que é assim uma espécie de uma lição muito moral.
Não é?
Não. É só uma constatação e uma tentativa de reflexão. Perceber também qual é que será o meu lugar daqui para a frente. Sou professora há 17 anos. Acho que defendi uma série de posições dentro do mercado e fiz um grande trabalho de aceitação, sem preconceito, perante os meus alunos, que são movidos por variadíssimas razões. As pessoas que procuram as minhas aulas, muitas delas querem ser artistas ou querem ser atores. Muitas não estão interessados em ser artistas, querem ser atores. São movidas por coisas muito diferentes entre elas e diferentes de mim. Ao longo destes anos, fiz um exercício muito grande de aceitação dessa diferença. Mas às vezes pergunto-me se não precisam de uma posição a “bold”.
No São Luiz, Lisboa. Público geral: 11 a 15 abril, terça a sábado, às 19h30; e 21 e 22 abril, sexta e sábado, às 19h30. Escolas: 18 a 20 abril, terça a quinta, às 14h30 (público-alvo: ensino secundário)