Mário Centeno foi o nome que o primeiro-ministro António Costa levou ao Presidente para o substituir, sem a necessidade de haver eleições. Marcelo Rebelo de Sousa não seguiu a proposta e convocou-as. António Costa fica até que um novo Governo, saído do ato eleitoral, tome posse. Mário Centeno fica no Banco de Portugal. O que originou já várias críticas, à semelhança do que tinha acontecido quando, em 2020, transitou diretamente do Ministério das Finanças para o banco central.
Contactado pelo Observador, através do Banco de Portugal, Mário Centeno recusou fazer comentários, optando por ficar em silêncio quando questionado sobre se a sua independência teria ficado, com esta situação, comprometida. O BCE não se pronunciou mas lembrou que todos os membros do conselho estão sujeitos a um código de conduta. E no Banco de Portugal, a comissão de ética, presidida por Rui Vilar, vai reunir-se na segunda-feira para analisar o caso, conforme avançou o Eco.
A comissão de ética do Banco de Portugal é nomeada pelo próprio conselho de administração. Segundo as regras aplicáveis, a comissão de ética deve ouvir os visados e emitir parecer sobre a sua conduta. E é isso que fará.
António Costa assumiu, na passada quinta-feira, que tinha sugerido ao Presidente o nome de Mário Centeno para o cargo de primeiro-ministro, sob a maioria absoluta parlamentar socialista: “Ao PS, como referencial de estabilidade no nosso país, competia-lhe apresentar uma solução alternativa, que permitisse poupar ao país meses de paralisação até às eleições. Constava da solução apresentar uma personalidade de forte experiência governativa, respeitado e admirado pela generalidade dos portugueses, com forte prestígio internacional, que é algo muito importante nesta fase tendo em conta o impacto naturalmente negativo que estas notícias tiveram no exterior”. E o indicado “foi precisamente o professor Mário Centeno”.
Contudo, acrescentou o primeiro-ministro, “o Presidente entendeu que melhor do que ter uma solução estável, com um governo forte, de qualidade, renovado, sob a liderança do professor Mário Centeno, era optar pela realização de eleições. Tenho entendimento que o país não merecia ser chamado de novo a eleições”.
Não sendo oficial a posição do próprio Mário Centeno em relação a esta proposta de nomeação, a mera indicação belisca a independência do governador?
Susana Coroado, investigadora associada do ICS, que tem trabalhado nesta questão das portas giratórias (termo utilizado quando se passa diretamente do governo para empresas ou entidades reguladoras e vice versa), não tem dúvidas: “Não sei se [a independência de Mário Centeno] ficou mais ferida ou se se trata de confirmar que já não era independente desde o início”.
A investigadora remete para a decisão de 2020 do atual governador passar diretamente do Ministério das Finanças para o Banco de Portugal. “Na altura levantou-se a questão do conflito de interesses e de falta de independência num patamar político — em relação ao Governo para o qual trabalhou — e a nível pessoal — o governador Mário Centeno teria de decidir e avaliar decisões que o ex-ministro das Finanças Mário Centeno tinha tomado”, contextualiza Susana Coroado, recordando que foi realçado, então, a sua independência política. Agora, no seu entender, essa defesa cai por terra. Nem a independência política fica salvaguardada. E, por isso, ao Observador conclui: “[Esta situação agora] não veio minar a independência, porque à partida já não existia”.
Também Ana Lourenço, professora na Católica Porto Business School e investigadora no Centro de Estudos de Gestão e Economia (CEGE), autora de um estudo para a Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) sobre reguladores, considera ser preocupante a circulação entre função executiva e legislativa e funções de regulação e política. O potencial de interferência no regulador do qual se sai é “muito grande”, reforça, explicando que um governador conhece por dentro toda a entidade, processos e pessoas. Por isso, refere ao Observador, “se efetivamente tiver sido contactado para primeiro-ministro e se se tiver disponibilizado para tal, fica a ideia de que fica ferido na sua qualidade de governador independente e na autonomia para tomar decisões sem interferência do poder político”.
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A lei orgânica, código de conduta e o silêncio do BCE
Na lei orgânica do Banco de Portugal, é explicitamente referido que “o Governador e os demais membros do Conselho de Administração gozam de independência nos termos dos Estatutos do Sistema Europeu de Bancos Centrais e do Banco Central Europeu (SEBC/BCE), não podendo solicitar ou receber instruções das instituições comunitárias, dos órgãos de soberania ou de quaisquer outras instituições”.
O BCE, que não se pronuncia sobre o caso concreto de Centeno, remete, no entanto, o Observador para o Código de Conduta dos membros do conselho de governadores, onde é referido, explicitamente, que “os membros do Conselho do BCE, no exercício dos poderes e no desempenho das tarefas e deveres que lhes forem conferidos, não solicitarão nem aceitarão instruções de instituições ou organismos comunitários, de qualquer governo de um Estado-membro ou de qualquer outro organismo, incluindo qualquer órgão de decisão ao qual pertençam”. É ainda referido que os membros do Conselho têm de observar “os mais altos padrões de conduta ética. Espera-se que eles ajam honestamente, de forma independente, imparcial, com discrição e sem levar em conta o interesse próprio e para evitar qualquer situação suscetível de dar origem a um conflito de interesses pessoais”.
No código de conduta do Banco de Portugal é referido igualmente que os trabalhadores da instituição — Centeno é quadro — devem respeitar deveres de lealdade e imparcialidade. “Nos termos dos deveres de lealdade e de imparcialidade, os trabalhadores devem evitar quaisquer situações de que possam resultar conflitos de interesses com as atividades desenvolvidas no Banco ou que possam colocar em causa a imagem e reputação deste”. A comissão de ética da instituição vai analisar este caso.
Os banqueiros, tutelados pelo Banco de Portugal, não quiseram, na maioria, pronunciar-se sobre esta possibilidade (que não foi para a frente) do governador regressar ao Governo como primeiro-ministro não eleito. Paulo Macedo, presidente da Caixa Geral de Depósitos, questionado na conferência de imprensa de resultados desta sexta-feira sobre esta posição, considerou que “uma pessoa competente e séria, por se disponibilizar a prestar um serviço ao país, não me parece que seja uma incompatibilidade. Ainda mais quando o governador fez parte de um governo concreto e, por isso, não haja surpresa em relação à sua área política ou à sua proximidade política”, acrescentando que “o eventual conflito de interesses não me parece que, aqui, neste caso, se coloque”.
Deixa outro ponto neste debate, respondendo a quem considera que Mário Centeno não tem condições para se manter no cargo: “De certeza que não é afastar o governador do Banco de Portugal que ajudava a estabilidade do país. Temos de ter muito cuidado”, salientando que “os conflitos de interesses devem ser evitados antes, deve haver declarações, e serem escrutinadas, permanentemente, com revisões anuais. Agora aumentar instabilidade por instabilidade é tudo menos aquilo que precisamos”.
Já na quinta-feira, numa conferência do Dinheiro Vivo, Pedro Castro Almeida, presidente do Santander Portugal, confrontado com o nome respondeu apenas que “teria o maior gosto e é uma pessoa por quem tenho a maior admiração”, recordando que foi seu colega no ISEG entre 1985 e 1990 — “foi o melhor aluno do curso e sem dúvidas traria algo muito importante” que é distinguir o que é a “espuma do dia a dia e as tendências de médio e longo prazo”.
Mais nenhum banqueiro quis comentar a hipótese de Centeno deixar o Banco de Portugal para ir para o Governo, como primeiro-ministro não eleito.
Saída à italiana criticada
Várias têm sido as vozes a sugerir essa mesma ferida. Na rede X (ex-Twitter), Miguel Poiares Maduro, professor universitário que foi ministro do Governo de Passos Coelho, deixa também a sua posição: “Até na forma como se pretendeu solucionar a crise se continua a manifestar a cultura política que nos trouxe a essa crise. Então o governador do Banco de Portugal pode aceitar ser primeiro-ministro por um partido e ao mesmo tempo permanecer na sua posição de regulador independente?”
Até na forma como se pretendeu solucionar a crise se continua a manifestar a cultura política que nos trouxe a essa crise. Então o Governador do Banco de Portugal pode aceitar ser PM por um partido e ao mesmo tempo permanecer na sua posição de regulador independente?
— Miguel Poiares Maduro (@MaduroPoiares) November 10, 2023
Pela mesma crítica afinaram alguns dos partidos da oposição. Mas o PS saiu em defesa de Mário Centeno, e da sua independência.
Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do PSD, começou: “Soubemos pela própria voz do senhor primeiro-ministro que este terá indicado o governador para o substituir como primeiro-ministro da maioria. É apenas mais uma demonstração, e bastante mais grave, da falta de independência que o governador tem”.
Para o líder parlamentar social-democrata — que chegou a ser apelidado por Rui Rio como o Centeno (que tinha sido apelidado de Ronaldo das Finanças) do PSD — desde a nomeação de Centeno para o Banco de Portugal, diretamente do Ministério das Finanças “sempre dissemos que não era independente do poder político, e vemos que a teia socialista que existe há muitos anos e que ocupa ou procura ocupar todos os espaços do setor público, que tem sempre os mesmos protagonistas, as mesmas práticas e os mesmos resultados, também já se estende ao Banco de Portugal. Se a indicação do governador para substituir o primeiro-ministro que foi feita teve a anuência do próprio governador, mostra bem como o governador é um agente político e não tem independência que o banco central requer”.
Ainda em declarações aos jornalistas, Miranda Sarmento recordou que o lugar de governador é “e bem” inamovível e “deve ser independente”. Por isso, acrescentou, “aquilo que gostaríamos é que o dr. Mário Centeno fosse imparcial”, realçando que sempre houve dúvidas no PSD sobre o que alega ser o conflito de interesses desde que Centeno passou das Finanças para Banco de Portugal. E quer que Centeno informe se anuiu no seu nome “e reflita bem naquilo que deve ser o papel de independência do governador e do Banco de Portugal, uma instituição muito relevante”. Miranda Sarmento lembra que “antes de ser governador e antes de ser ministro das Finanças, Centeno é funcionário do Banco de Portugal e deve ter a preocupação de preservar a instituição à qual pertence pelo menos há 20 anos”.
As críticas foram corroboradas pela Iniciativa Liberal. Rodrigo Saraiva, líder parlamentar deste partido, sublinhou: “Ao longo dos anos ouvimos adjetivarem as capacidades do senhor primeiro-ministro, António Costa, como uma espécie de florentino. Era o que mais faltava ter uma solução à italiana, demostrando esta atitude do PS que se acha o dono disto tudo, confunde o Estado com o PS, e ao invés de devolver a voz aos portugueses, a decisão aos portugueses, vinha com uma solução de secretaria, à italiana, trazer do Banco de Portugal o seu ex-ministro das Finanças”. Em 2021, Mario Draghi tomou posse como primeiro-ministro de Itália, após ter sido encarregado pelo presidente italiano de formar governo na sequência da renúncia ao cargo por parte de Giuseppe Conte. Saraiva lembrou ainda que o partido foi crítico quando Centeno saiu diretamente do Terreiro do Paço para o banco central. “Uma plataforma giratória inaceitável”, concluiu.
Inês Sousa Real, do PAN, também denunciou o que diz serem as portas giratórias sem períodos de nojo. E Rui Tavares criticou a ideia de se acrescentar um novo ponto a esta crise: retirar o governador do Banco de Portugal.
Em defesa da sugestão de António Costa saiu o líder parlamentar do PS, Eurico Brilhante Dias. Saiu em defesa de Costa e do próprio Centeno. “Qualquer português responsável, se o Presidente lhe pedir um serviço importante numa circunstância ao país, deve aceitar. Se ao professor Mário Centeno fosse pedida a liderança de um governo nesta circunstância a minha expectativa, como cidadão, era que ele responsavelmente aceitasse. Dizer que perante a circunstância particular que o país vive um português responsável não aceitaria aquilo que é um trabalho em favor de todos não me parece responsável”. Eurico Brilhante Dias aproveitou para virar o bico ao prego, dizendo que “este conjunto de questões revelam má consciência em particular do PPD-PSD”, para recordar a apresentação do livro de Carlos Costa, ex-governador, evento no qual Eurico Brilhante Dias viu “um abraçar político-partidário da intervenção de um governador” — “aconteceu neste país ainda há muito pouco tempo“.
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Mário Centeno já tinha sido um nome falado para eventual candidato a Presidente da República, nas eleições de 2026, o que significaria suceder, se ganhasse, ao homem que não o quis de volta ao Governo. Marcelo Rebelo de Sousa, já Presidente, aceitou a permanência de Centeno nas Finanças em 2017, apesar do confronto por causa da declaração de rendimentos dos gestores da CGD. Centeno apresentou a demissão a Costa. Marcelo reuniu-se, então, com Centeno e “ouvido o senhor primeiro-ministro, que lhe comunicou manter a sua confiança no senhor professor doutor Mário Centeno, aceitou tal posição, atendendo ao estrito interesse nacional, em termos de estabilidade financeira”. Centeno ficou. Saiu em 2020 para o Banco de Portugal.
Ainda recentemente perante uma análise económica feita, no âmbito do Boletim Económico, os seus elogios a várias medidas do Governo sobressaíram a alguns comentadores (como neste texto de Helena Garrido), mas Centeno recusou que se tratasse de uma análise cor de rosa. “É o governador que se apresenta trimestralmente à vossa frente, é o governador que vai às reuniões em Frankfurt, é o governador que fala, muitas vezes não se consegue distinguir entre ele próprio e as suas funções no Banco de Portugal e portanto o governador, e bem segundo a opinião dele, decidiu partilhar com todos uma análise que tem vindo a fazer ao longo do tempo e que tem partilhado com todos os responsáveis políticos portugueses, porque é o governador que se senta em Frankfurt a participar na tomada de decisão. E era o que faltava que o governador não pudesse partilhar a opinião com os portugueses, e a opinião está ali, é clara e não é nada cor-de-rosa. É um conjunto de factos e desafios difíceis que a economia portuguesa tem de ultrapassar”.
(notícia atualizada com a informação da reunião da comissão de ética)