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(da esquerda para a direita) Jorge Pinto da Costa (FC Porto), Peter Lim (Valência), Jorge Mendes, Dimitri Rybolovlev (Mónaco) e Luís Filipe Vieira (Benfica)
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(da esquerda para a direita) Jorge Pinto da Costa (FC Porto), Peter Lim (Valência), Jorge Mendes, Dimitri Rybolovlev (Mónaco) e Luís Filipe Vieira (Benfica)

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

(da esquerda para a direita) Jorge Pinto da Costa (FC Porto), Peter Lim (Valência), Jorge Mendes, Dimitri Rybolovlev (Mónaco) e Luís Filipe Vieira (Benfica)

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

Como Jorge Mendes está a ser investigado devido a operações de mais de 420 milhões de euros

Série "Investigação ao Futebol". Super-agente foi constituído arguido por fraude fiscal, branqueamento de capitais e falsificação de documento em operações de cerca de 426 milhões de euros.

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[Este artigo faz parte da série especial “Investigação ao Futebol” sobre os esquemas de fraude fiscal no mundo do futebol. Amanhã leia “Como uma das grandes sociedades de advogados se viu envolvida nas investigações ao futebol”]

Já se sabia desde 2018 que Jorge Mendes estava a ser investigado pelos seus negócios futebolísticos em Portugal, Inglaterra, Itália, Holanda e Espanha — onde acabou por ser ilibado ao contrário do seus clientes Cristiano Ronaldo, José Mourinho e Falcao. Agora, aquele que já foi considerado o melhor agente da história do futebol, é igualmente arguido na justiça portuguesa por suspeitas de fraude fiscal qualificada, branqueamento de capitais e falsificação de documento, entre outros crimes, e está a ser investigado em pelo menos sete processos criminais que o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) abriu ao mundo do futebol.

Só num deles é suspeito de ter alegadamente defraudado o fisco português em 11 negócios de transferências de jogadores do Benfica e do FC Porto para clubes como o Valência, o Mónaco e o Atlético de Madrid — cujos principais acionistas são muito próximos de Jorge Mendes. Estão em causa transferências avaliadas em mais de 420 milhões de euros, que estão a ser passadas a pente fino para detetar eventuais fraudes fiscais e branqueamento de capitais por parte das empresas de Mendes, devido às relações muito próximas que o super-agente construiu com clubes como o Wolverhampton, o Valência, o Mónaco e também com o Benfica e o FC Porto.

Operação Fora de Jogo. Desvio das receitas das transferências sob investigação

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Por exemplo, as transferências de João Félix para o Atlético de Madrid e de Rúben Dias para o Manchester City, as duas maiores operações dos últimos anos do Benfica, avaliadas em 194 milhões de euros, estão a ser inspecionadas ao detalhe. O conglomerado empresarial que Jorge Mendes construiu e a forma como os seus lucros são declarados é outro dos focos desta investigação.

Há pelo menos 11 transferências do Benfica e do FC Porto sob suspeita

Há pelo menos 11 transferências do Benfica e do FC Porto que estão na mira do procurador Rosário Teixeira e da equipa da Autoridade Tributária liderada pelo inspetor Paulo Silva.

De forma genérica, Jorge Mendes é suspeito de ter alegadamente defraudado o fisco português em sede de IRS, IRC e imposto de selo através das suas sociedades Gestifute SA e Gestifute International que terão negociado a alienação dos direitos económicos de vários jogadores. As autoridades acreditam ainda que Jorge Mendes seja o alegado beneficiário de uma parte das receitas de sociedades com sede em Hong Kong, Reino Unido e Chipre, que aparecem nos circuitos financeiros das transferências sob suspeita — e que estarão ligadas a diversos dirigentes de clubes, como Peter Lim (Valência) ou Dimitri Rybolovlev (Mónaco).

Parte dos documentos que estão na base dessas suspeitas foram revelados pelo site Football Leaks, do hacker Rui Pinto.

No caso do Benfica, estão em causa a transferência de sete jogadores que ocorreram entre 2014 e 2018 e que movimentaram um total de 84,8 milhões de euros.

Não são propriamente as maiores operações da parceria entre o clube da Luz e Jorge Mendes, que marcou os últimos mandatos da presidência de Luís Filipe Vieira, mas a atenção do Ministério Público e do Fisco concentram-se nas vendas dos direitos económicos de jovens talentos da academia do Benfica. Tais operações sempre causaram polémica não só pelo valor idêntico de todas elas, 15 milhões de euros — uma espécie de valor de tabela pré-definido —, mas essencialmente pela alegada sobrevalorização dos atletas em questão. É certo que hoje em dia alguns deles, como Bernardo Silva e João Cancelo, são estrelas da Premier League inglesa, mas no momento em que as transações ocorreram eram apenas jovens com talento.

De acordo com o site especializado Transfermarkt, que avalia a evolução da cotação de mercado de cada jogador profissional, Bernardo Silva valia apenas 3,5 milhões de euros (tinha feito apenas três jogos, e como suplente utilizado, na equipa principal do Benfica), enquanto João Cancelo estava avaliado em cinco milhões de euros (jogara apenas duas vezes pelo Benfica). Os dois foram vendidos pelo tal valor de tabela: cerca de 15 milhões de euros.

Os casos de Ivan Cavaleiro (avaliado em 3,5 milhões, mas já com jogos pelo Benfica) e de João Carvalho (avaliado em 2,5 milhões de euros e com apenas 10 jogos pelo Benfica) reforçam as mesmas suspeitas de operações sobreavaliadas. No caso de Carvalho, tratou-se de uma operação de venda para um clube da segunda liga inglesa.

As operações de venda de jovens jogadores, como Bernardo Silva ou João Cancelo, sempre causaram polémica pelo valor da venda (15 milhões de euros) por levantar a suspeita de alegada sobrevalorização dos atletas em questão. É certo que hoje em dia são estrelas da Premier League, mas no momento em que as transações ocorreram eram apenas jovens com talento com poucos jogos no Benfica.

Segundo as suspeitas da AT, Jorge Mendes terá negociado a venda dos direitos económicos dos jogadores acima referidos através da Gestifute, SA (sociedade portuguesa) e da Gestifute International Limited (sociedade irlandesa). Nos respetivos circuitos financeiros apareceram igualmente as sociedades Browselfish Limited (Chipre), a XXIII Capital (Reino Unido) e a Meriton Capital Limited (Hong Kong), que terão alegadamente ficado com as mais-valias dessas operações. A AT suspeita de que Jorge Mendes terá uma relação próxima com essas três sociedades, ao ponto de alegadamente ter direito a uma parte das receitas das mesmas.

No caso da Meriton, é público que a sociedade pertence a Peter Lim, magnata de Singapura que enriqueceu na bolsa e que em 2019 foi considerado o 10.º mais rico do seu país, com uma fortuna avaliada em 2,5 mil milhões de dólares.

Já a Browselfish Limited (Chipre) estará ligada a Dimitri Rybolovlev, o dono do Mónaco. Quem o diz é Rui Pinto que, em reação à publicação desta série “Investigação ao Futebol” do Observador, afirmou isso mesmo na rede social Twitter.

Mais: não só a Browselfish de Rybolovlev terá representado 87% da atividade da Gestifute em regime TPO (ou seja, quando a empresa de Mendes detinha uma parte dos direitos económicos de um jogador; hoje apenas os clubes podem ser proprietários desses direitos), como o dono do Mónaco terá detido “percentagens dos passes de Rafa Silva [Benfica,] Raúl Jimenez [vendido pelo Benfica ao Wolverhampton), Fabinho [emprestado e depois vendido pelo Rio Ave ao Mónaco], etc.”, diz Rui Pinto, citando informação que já tinha sido revelada pelo Football Leaks.

A ligação ao Valência de Peter Lim sob suspeita

Peter Lim começou a interessar-se pelo futebol em 2013 – ano em que começou a preparar a compra da maioria do capital do Valência, o quinto clube espanhol em títulos, sob o conselho de Jorge Mendes. O negócio devia ter sido feito em 2013, mas problemas com a banca espanhola devido à elevada dívida do clube levaram a que tudo só se concretizasse em agosto de 2014.

Enquanto não comprava a participação de 70% da Fundação Valência, Peter Lim utilizou a sua sociedade Meriton Capital Limited para comprar os direitos económicos de cinco jogadores do Benfica: o brasileiro-espanhol Rodrigo Moreno, André Gomes, Bernardo Silva, João Cancelo e Ivan Cavaleiro. Todos jogadores de Jorge Mendes.

As transações de Rodrigo e Gomes para a Meriton foram mesmo anunciadas pelo Benfica a 31 de janeiro de 2014. Os direitos económicos do primeiro foram vendidos por 30 milhões de euros (quando o site especializado do Transfermarket apenas o avaliava em cerca de 18 milhões de euros depois de uma época em que marcou 11 golos e fez 8 assistências no Benfica), enquanto o segundo foi avaliado em 15 milhões de euros. O jornal valenciano Superdeportes, muito próximo do Valência, anunciou igualmente em 2014 que a empresa de Lim tinha investido mais 30 milhões de euros na compra dos passes de Bernardo Silva, Ivan Cavaleiro e João Cancelo.

A transferência de André Gomes do Benfica para o Valência é uma das operação sob suspeita

EPA

Como a compra do Valência se atrasou, todos estes jogadores foram emprestados a diferentes clubes (André Gomes, João Cancelo e Rodrigo Moreno ao próprio Valência, enquanto o Mónaco ficou com Bernardo Silva e Ivan Cavaleiro foi para o Deportivo da Corunha), mas os seus direitos económicos já pertenceriam à Meriton, como um alto responsável do Valência confirmou publicamente.

E onde está a trapalhada? O Benfica acabou por ter de anunciar ao mercado, por exemplo, que a venda de André Gomes era feita diretamente ao Valência, mas que os fundos seguiriam para a Meriton. O MP e a AT estão a ver à lupa todos os circuitos financeiros criados para transferir esses fundos entre a Meriton/Benfica e entre o Valência, o Benfica e a Meriton — tudo com Jorge Mendes pelo meio. O procurador Rosário Teixeira suspeita de uma alegada prática de fraude fiscal e branqueamento de capitais nas transferências para Peter Lim/Valência, assim como nas restantes já referidas.

O mesmo acontece com os negócios com o Mónaco, do milionário russo Dimitri Rybolovlev. Foi esta ligação que permitiu ao Mónaco ter como treinador Leonardo Jardim e vários jogadores portugueses, que viriam a sagrar-se campeões franceses na época de 2016/17. Rybolovlev, que é igualmente dono do Cercle de Bruges, teve como braço-direito até 2019 o igualmente russo Vadim Vasilyev que estabeleceu uma relação próxima com Jorge Mendes. Hoje Vasilyev tem uma agência de representação de jogadores e conseguiu transferir esta época o francês Meité para o Benfica.

Há indícios concretos reunidos pelo MP e pela AT que apontam para a alegada utilização de sociedades internacionais como a Meriton Capital Limited para “receberem a mais-valia obtida com a alienação dos direitos económicos associados a determinados jogadores”, lê-se num relatório da Autoridade Tributária a que o Observador teve acesso.

O MP e a AT estão a ver à lupa todos os circuitos financeiros criados para transferir os fundos relativos às vendas de jogadores do Benfica para o Valência de Peter Lim e para o Mónaco de Dimitri Rybolovlev — tudo como Jorge Mendes pelo meio. O procurador Rosário Teixeira suspeita da alegada prática de fraude fiscal e branqueamento de capitais nessas transferências.

Ou seja, os direitos económicos dos jogadores já mencionados terão sido alienados através da Gestifute SA (empresa portuguesa) e da Gestifute Limited (empresa irlandesa), sendo que a Meriton Capital Limited aparece igualmente como intermediária entre o Benfica e o Valência.

As suspeitas em torno da parceria entre Jorge Mendes e Peter Lim que levou à aquisição do Valência já levaram a Comunidade Valenciana (uma entidade regional político-administrativa semelhante à Comunidade de Madrid ou à Catalunha) a arrependerem-se amargamente do negócio. Um ex-dirigente do Valência, Antonio Sesé, entregou mesmo, em agosto de 2020, uma queixa judicial por vários alegados crimes económicos contra Mendes e Lim, tendo sido assessorado por um dos principais escritórios de advogados de Valência. A queixa, contudo, acabou por ter parecer negativo da agência especializada em crime económico do Ministério Público, segundo o jornal local Las Provincias.

Os links inglês e cipriota

Além da Meriton de Peter Lim, há sociedades intermediárias dos negócios do Benfica e do FC Porto na mira do MP e da AT, como a Browselfish Limited do Chipre e a XXIII Capital Limited do Reino Unido. As autoridades portuguesas suspeitam que ambas estão ligadas a Jorge Mendes.

No caso da XXIII Capital Limited, o diretor da empresa entre 2018 e 2020 foi o inglês Jason Traub. A sociedade é, na prática, um fundo que se especializou num serviço aos clubes de futebol que é uma adaptação do clássico factoring. Só que em vez de adiantar dinheiro na hora em troca de faturas com prazos de pagamento de 30/60 dias, adianta tranches dos contratos das transferências dos jogadores — que nunca são pagas de uma só vez, mas sim em tranches diferidas em vários anos.

Foi já com um novo nome para a empresa (23 Capital) que Jason Traub deu várias entrevistas em 2020 a jornais portugueses. Apresentando-se como o CEO da empresa, Traub revelou que era parceiro do Benfica em linhas de crédito de 100 milhões de euros que terão permitido ao clube então gerido por Luís Filipe Vieira e Domingos Soares Oliveira antecipar receitas das transmissões televisivas. O The Guardian já tinha revelado em novembro de 2019 que esse negócio, de facto, acontecera.

A 23 Capital foi parceira do Benfica em linhas de crédito de 100 milhões de euros que terão permitido ao clube então gerido por Luís Filipe Vieira e Domingos Soares Oliveira antecipar receitas das transmissões televisivas. Além disso, a 23 Capital também financiou o Benfica em várias transferências, como a de Bernardo Silva para o Mónaco. O que se desconhecia até Rui Pinto o ter revelado no site Football Leaks.

Além das transmissões televisivas, a 23 Capital também financiou o Benfica em várias transferências. Uma dessas linhas de crédito já tinha sido confirmada pelo Benfica após o Football Leaks (criado pelo hacker Rui Pinto) ter revelado em janeiro de 2016 os documentos do negócio do empréstimo e venda de Bernardo Silva ao Mónaco. Os documentos revelam que a primeira parcela do valor da venda do jogador agora no Manchester City, no valor de cerca de 5 milhões de euros, tinha sido pago pelo Mónaco à 23 Capital, e não ao Benfica.

Pormenor importante: segundo o The Guardian, a 23 Capital foi criada em Londres com um capital de  duas libras pelo australiano Stephen Duval e por Jason Traub em setembro de 2014 — um mês depois de Bernardo Silva ter sido emprestado pelo Benfica ao Mónaco.

O clube da Luz foi obrigado a emitir um comunicado ao mercado em que explicava que tinha cedido o crédito que tinha a receber do Mónaco à 23 Capital. Qual foi a vantagem para o Benfica? Recebeu de uma só vez da 23 Capital o valor da transferência, descontando, claro, o valor do serviço pago à financeira inglesa. Este mesmo serviço foi prestado novamente no caso de uma tranche da venda de Enzo Peréz ao Valência. Quanto terá custado o valor total dos serviços da 23 Capital? Cerca de dois milhões de euros, segundo o Football Leaks. A que se somam cerca de quatro milhões de euros de custos de intermediação que o Benfica terá pago de comissões a Jorge Mendes pelas vendas de Bernardo e Enzo.

A reação: “Em todo lado se imputa a Jorge Mendes uma mestria profissional”

O Observador confrontou Jorge Mendes com todas as informações que constam deste trabalho e colocou questões específicas sobre os principais temas. Nas respostas enviadas pelo seu advogado, Tiago Félix da Costa, o super-agente optou por dar uma resposta genérica.

Mendes começa por refutar aquilo que considera serem “especulações e interpretações da Autoridade Tributária” (AT) sobre os alegados esquemas de fraude fiscal e branqueamento de capitais de transações cujo conhecimento foi dado pela Gestifute à AT por via documental”. E garante: “A Gestifute” e o próprio Mendes “têm cumprido escrupulosamente todas as suas obrigações contabilísticas e fiscais, e a sociedade, em particular, obedece a todas as imposições legais de publicação e de registo das suas contas. Jamais a referida sociedade [Gestifute] ou o seu acionista principal [Jorge Mendes] foram alvo de qualquer reparo relevante”, lê-se na resposta.

As respostas de Jorge Mendes

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“A Gestifute e o Senhor Jorge Mendes têm cumprido escrupulosamente todas as suas obrigações contabilísticas e fiscais, e a sociedade, em particular, obedece a todas as imposições legais de publicação e de registo das suas contas. Jamais a referida sociedade ou o seu accionista principal foram alvo de qualquer reparo relevante neste domínio: neste processo (bem como noutros processos fiscais), o que está em causa são sempre especulações e interpretações da Autoridade Tributária sobre as alegadas motivações que se encontrarão por detrás de actos e documentos a que teve acesso sem qualquer dificuldade, razão pela qual nunca invocou a ocorrência de ocultações ou omissões. Por outro lado, a Gestifute figura entre os maiores contribuintes portugueses, especialmente quando relacionamos o valor dos impostos pagos com o número dos seus colaboradores.

Além disso, o papel que a Gestifute e o Senhor Jorge Mendes têm assumido no desenvolvimento do futebol – e, em particular, do futebol nacional – é do conhecimento público, encontra-se documentado pela generalidade dos meios de comunicação especializados, em Portugal e no resto do Mundo, o que se tem reflectido de modo relevante na economia portuguesa e na internacionalização do sector. Cada intervenção, cada transferência de jogadores, nunca passa despercebida à generalidade da comunicação social internacional, nos momentos em que ocorre. Chocam, por isso, com a realidade conhecida e divulgada, as especulações à volta da ocorrência efectiva dos serviços prestados ou da sua pretensa “motivação real”. Com natural orgulho do próprio, em todo lado se imputa a Jorge Mendes uma mestria profissional e uma taxa de sucesso dificilmente ultrapassáveis.

Também por estas razões – embora não apenas por causa delas – a Gestifute e o Senhor Jorge Mendes não podem deixar de repudiar as constantes violações do segredo de justiça que, desde logo, não lhes permitem esclarecer as questões factuais e técnicas que se possam suscitar em processos judiciais complexos, sejam eles fiscais ou de outra natureza. A Gestifute e o Senhor Jorge Mendes não deixarão, como sempre e nos termos da lei, de colaborar e esclarecer as autoridades competentes, em primeiro lugar; e, naturalmente, só depois de o fazerem nessa sede poderão esclarecer publicamente todas estas questões em que foram envolvidos.”

Além de refutar qualquer ilegalidade, a resposta recebida pelo Observador puxa pelo “papel que a Gestifute e o senhor Jorge Mendes têm assumido no desenvolvimento do futebol — e, em particular, do futebol nacional”, o que tem levado uma promoção da “economia portuguesa” e da “internacionalização” do futebol português. “Cada intervenção, cada transferência de jogadores, nunca passa despercebida à generalidade da comunicação social internacional, nos momentos em que ocorre”, afirma o comunicado enviado em nome de Jorge Mendes.

Daí que o super-agente fique surpreendido com “as especulações à volta da ocorrência efectiva dos serviços prestados” ou da sua pretensa “motivação real”. “Com natural orgulho do próprio, em todo lado se imputa a Jorge Mendes uma mestria profissional e uma taxa de sucesso dificilmente ultrapassáveis”, regista, num tom de auto-elogio.

A Gestifute e Jorge Mendes repudiam “as constantes violações do segredo de justiça”, mas garantem que vão “colaborar e esclarecer as autoridades competentes.” Só depois disso é que “poderão esclarecer publicamente todas estas questões em que foram envolvidos.”

Vendas de João Félix e Rúben Dias analisadas

Ao que o Observador apurou, algumas das operações mais importantes do Benfica dos últimos anos, como as vendas de João Félix ao Atlético de Madrid por 126 milhões de euros, em setembro de 2019, e a de Rúben Dias ao Manchester City, por 68 milhões (mas que prática se resumiram a 53 milhões devido à dedução do valor de Otamendi que se transferiu para o clube da Luz) em setembro de 2020, também estão a ser analisadas. O Observador não conseguiu confirmar se o MP recolheu provas indiciárias da prática de alguma irregularidade nas transferências.

Recorde-se que, só no caso de João Félix, e a julgar pelas declarações de Domingos Soares Oliveira (CEO da Benfica SAD) no momento da transferência, a empresa de intermediação de Jorge Mendes terá recebido cerca de 20 milhões de euros de comissão.

A 23 Capital foi essencial para que o Atlético de Madrid comprasse João Félix porque terá emprestado cerca de 96 milhões dos 126 milhões euros que o clube espanhol diz ter pago ao Benfica. O MP e a AT suspeitam que Jorge Mendes terá uma ligação direta ou indireta à 23 Capital — empresa que prefere financiar-se na bolsa do paraíso fiscal das Ilhas Caimão com fiscalização muito menos apertada.

Mais: a 23 Capital foi essencial para que o Atlético de Madrid comprasse João Félix. Como? Terá emprestado cerca de 96 milhões dos 126 milhões que o clube espanhol diz ter pago ao Benfica. Tal como já tinha feito aquando da transferência de Griezmann do Atlético Madrid para o Barcelona (terá emprestado 85 milhões de euros ao clube catalão, que já estava com sérios problemas financeiros), a 23 Capital financiou mesmo os clubes espanhóis para que as vendas fossem concretizadas — uma evolução face ao serviço clássico de factoring.

O MP e a AT suspeitam que Jorge Mendes terá uma ligação direta ou indireta à 23 Capital. E há registo dessa participação? No ato da sua fundação, o capital da empresa pertencia à sociedade offshore Candlewood Investment Group. Quem são os seus acionistas? Não se sabe. Certo é que o funding da 23 Capital tem sido apoiado por empresas como a Quantum Partner (do magnata George Soros), mas também prefere promover sucessivas emissões de dívida de valores astronómicos na bolsa de valores do paraíso fiscal das Ilhas Caimão e não nas bolsas europeias ou norte-americanas —  que tem regras de autorização e de accountability (fiscalização) muito mais apertadas.

Só em 2016 teve autorização do regulador da bolsa das Ilhas Caimão para emitir dívida no valor de total de 400 milhões de libras (cerca de 484,4 milhões de euros a preços de hoje).

Sete meses depois de ter dado entrevistas a meios portugueses em modo de auto-promoção, Jason Traub demitiu-se do cargo de diretor da 23 Capital. O fundo entrou em reestruturação devido a problemas financeiros dos clubes de futebol provocados pela pandemia Covid-19, tendo o controlo da empresa passado para os holandeses da Intertrust. O Financial Times reportava em setembro de 2020 que a dívida da 23 Capital era superior a mais de mil milhões de euros e que a reestruturação tinha obrigado a despedir 55 dos 70 funcionários da empresa. Na realidade, o fundo entrou em liquidação.

Os valores das transferências do FC Porto são mais avultados: 150 milhões

As suspeitas que incidem sobre as transferências do Benfica são exatamente as mesmas que incidem sobre as do FC Porto: fraude fiscal, branqueamento de capitais e falsificação de documento. Pela simples razão de que o alegado esquema será semelhante.

Os valores são, contudo, muito mais avultados, estando em causa um montante total de 150 milhões de euros através de quatro jogadores: o francês Mangala e os colombianos Jackson Martinez, James Rodriguez e Falcao.

O Mónaco, destino de James, é um dos clubes em comum com as transferências do Benfica (por causa de Bernardo Silva), mas o principal comprador de jogadores do FC Porto foi o Atlético de Madrid, com quem Jorge Mendes tem igualmente uma relação especial e a quem vendeu também Félix. Mangala foi vendido ao Manchester City mas nunca se conseguiu impor, muito devido a problemas físicos, e acabou por sair dos ingleses para o Valência de Peter Lim a custo zero, depois de sucessivos empréstimos com intermediação de Mendes.

Jorge Mendes é igualmente suspeito nestas transferências de ter alegadamente utilizado diversas sociedades internacionais que terão recebido “a mais-valia obtida com a alienação dos direitos económicos” de diversos jogadores, não tendo a mesma sido declarada ao Fisco.

A 23 Capital, por exemplo, também trabalhou com o FC Porto, nomeadamente na venda de Rúben Neves ao Wolverhampton — operação intermediada por Jorge Mendes para o clube inglês do seu sócio chinês Fosun. A financeira inglesa antecipou aos portistas cerca de 4 milhões dos 16 milhões de euros que o FC Porto faturou pela venda de Neves. Ao contrário do Benfica, o clube azul e branco registou nos seus relatórios e contas a operação com a 23 Capital como “factoring.”

As contas da saída de Mangala que não batem certo

Contudo, ao que o Observador apurou, todos estes casos podem ser apenas a ponta do icebergue. Tal como o Expresso noticiou em 2018 com base em informação documental revelada pelo site Football Leaks (que hoje sabemos que foi criado por Rui Pinto), Mendes esteve envolvido em transferências que movimentaram mais de mil milhões de euros em 2015 e 2016 e que levaram a pedidos de colaboração entre as diferentes autoridades tributárias de Portugal, Espanha, Reino Unido, Holanda e Irlanda.

É verdade que apenas uma parte dessas transferências caem na jurisdição portuguesa, mas logo em 2018 o Expresso avançava que o MP estava a analisar 59 contratos de transferências que tinham tido Jorge Mendes como intermediário.

Transferências do Braga investigadas por “valores manifestamente desproporcionados”

O MP e a AT também estão a investigar outros casos relacionados com diversos jogadores do Sp. Braga que carecem de explicações no plano fiscal, como por exemplo David Carmo e Fábio Baldé.

Como também estão sob suspeita os valores de intermediação pagos à Gestifute pela compra dos direitos económicos dos jogadores Bruno Almeida, Thales Oleques, Amadou Wonkoye e Ailton Silva. O MP considera que as comissões pagas à empresa de Jorge Mendes serão, tendo em conta o real valor de mercado dos passes desses atletas, “manifestamente desproporcionadas.”

Os outros artigos desta investigação:

Sporting terá pago prémios a Bruno Fernandes via agente e é investigado na venda de Raphinha por Deco

FC Porto e os seus jogadores terão alegadamente defraudado o Fisco em 20 milhões. Casillas, Danilo e Mangala entre os maiores beneficiários

Investigação ao futebol põe em causa modelo de transferências. Como clubes, agentes e jogadores fogem ao Fisco: o caso do Benfica

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