O Brasil foi um dos países escolhidos para participar num ensaio clínico de fase III da vacina que está a ser desenvolvida pela Universidade de Oxford em conjunto com a farmacêutica AstraZeneca. Os voluntários são profissionais de saúde e outros profissionais que, direta ou indiretamente, contactam com os doentes com Covid-19, mas terão de ser adultos com menos de 55 anos.
“O que nos chamou muito a atenção foi que as pessoas querem realmente participar no estudo clínico, querem ajudar no desenvolvimento de uma vacina”, diz à rádio Observador Lily Yin Weckx, coordenadora deste ensaio clínico no Brasil e investigadora na Universidade Federal de São Paulo. As pessoas inscreveram-se no ensaio mesmo sabendo que podem ser colocadas no grupo de controlo, o grupo que não vai receber a vacina em teste (mas outra) e que servirá de comparação com o grupo vacinado para a Covid-19.
Os voluntários começaram a ser vacinados há cerca de um mês, por isso é difícil saber quando poderá haver resultados. Mas Lily Yin Weckx arrisca dizer que no final do ano podemos começar já a fazer uma utilização da vacina. “Se, com o tempo, se conseguir juntar dados, fazer uma análise, se os dados forem positivos, pode ter-se uma licença para uso de emergência.” Para a investigadora é claro que os ensaios não podem correr à velocidade normal: “Temos de conduzir este estudo ao passo que a doença exige”.
Lily Yin Weckx diz que ter mais de 80 mil mortos por causa da Covid-19 no Brasil “é realmente muito impressionante”. Sobre as opções do Presidente Jair Bolsonaro e as recomendações sobre tratamentos não aprovados a nível internacional, a investigadora mostra não concordar, mas opta por não fazer comentários aprofundados sobre o assunto.
No mês de maio recebeu o convite da Universidade de Oxford para coordenar uma nova fase de estudos sobre a vacina contra o coronavírus. Sabe por que razão foi escolhido o Brasil para desenvolver este estudo?
Todo o mundo pergunta: “Porquê o Brasil?”. O Brasil foi escolhido porque os estudos de fase III têm como objetivo primário avaliar a eficácia da vacina, isto é, se a vacina vai funcionar ou não. Para fazer um estudo de eficácia, esse tem de ocorrer num país onde esteja a circular muito o SARS-CoV-2. É o caso do Brasil. Estamos numa curva ascendente. Desde maio, estamos com uma infeção muito importante. Se o Brasil tem a circulação do vírus bem estabelecida, além do facto de ser um país com uma tradição de vacinação reconhecida — produtores de vacina, centros de investigação —, isso justifica a escolha para a condução dos estudos de fase III.
Quem é que pode participar neste estudo? São três as cidades selecionadas — São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador —, mas como é que escolheram as pessoas para participar nesse estudo?
São Paulo foi escolhida porque é a cidade onde a situação é mais intensa. Aqui no braço brasileiro vamos incluir adultos entre os 18 e os 55 anos de idade. Que adultos? Os profissionais de saúde e os adultos com alto risco de infeção por coronavírus, pessoas com elevada exposição. Todos os profissionais de saúde — enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, todos os que atendem os doentes — e, além disso, o pessoal de apoio — o pessoal da limpeza, higienização, segurança, portaria, etc., e, principalmente, motoristas. O motorista de ambulância, por exemplo, tem um risco aumentado de exposição.
As pessoas que vivam numa zona com maior probabilidade de contágio, por exemplo, uma favela, não vão receber esta vacina? Será apenas para as pessoas que têm grande exposição, mas com ligação aos hospitais?
Isso mesmo. As pessoas que não sejam da área da saúde ou que não tenham um risco aumentado não entram porque precisamos de delimitar que população queremos avaliar. Como é um estudo clínico com um número limitado de participantes, temos de nos focar numa população específica. No caso, são os profissionais da área da saúde e nesta faixa etária, não vamos incluir nem crianças nem pessoas mais idosas.
Como é que os voluntários, as pessoas que vão tomar esta vacina, vão ser vigiadas?
Primeiro, têm de se inscrever. O que nos chamou muito a atenção foi que as pessoas querem realmente participar no estudo clínico, querem ajudar no desenvolvimento de uma vacina. Outra coisa é que, como é um estudo de eficácia para ver se a vacina funciona ou não, todos aqueles que entrarem no estudo vão ser randomizados [distribuídos aleatoriamente por grupos]: metade vai tomar a vacina [contra a Covid-19] e a outra metade vai tomar uma outra vacina de controlo, que não é para proteção contra a Covid-19. E a pessoa não sabe em que grupo vai ser colocada e que vacina vai receber. Vamos acompanhar estes participantes durante um ano para ver se vão desenvolver a doença ou não.
É apenas uma vacina por pessoa?
Por enquanto, é apenas uma vacina por pessoa. Depois, com os resultados, decidimos manter a dose única ou não.
Quando é que esperam ter os primeiros resultados que permitam avaliar isso?
O interessante é que há dois dias foram publicados os primeiros resultados do estudo de fase I e II feito em Oxford. E este estudo — por isso é que todo o mundo está muito animado — mostrou que a vacina é segura. Foram vacinadas cerca de mil pessoas e a vacina mostrou-se muito segura. Além disso, mostrou ser muito imunogénica, isto é, produz uma boa resposta imunológica, tanto com formação de anticorpos como de imunidade do tipo celular [glóbulos brancos específicos]. O que chamou a atenção nesses primeiros dados é que se deu a um subgrupo pequeno de participantes uma segunda dose e que a segunda dose mostrou uma resposta ainda melhor. Isso poderá levar a estudos para avaliar se há realmente benefícios em dar duas doses.
[Pode ouvir a entrevista a Lily Yin Weckx no podcast da rádio Observador]
Estes são os resultados do Reino Unido. Quanto esperam ter resultados no Brasil?
Começámos o estudo há um mês e ainda estamos a vacinar as pessoas, por isso não temos nenhum resultado.
Quantas pessoas já foram vacinadas?
Aqui, no Brasil, cerca de mil pessoas. A nossa meta é vacinar cinco mil pessoas, distribuídas entre São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.
Já explicou como essas pessoas vão entrar no estudo, mas depois como é que vão avaliar se as pessoas ficaram imunes ao vírus ou não? Vão infetar as pessoas ou vão esperar que sejam infetadas naturalmente?
Naturalmente. Um ensaio de fase III é um estudo em que se vacina as pessoas no ambiente delas. Não vamos forçar nada, só vamos dar a vacina e ver se protege esse indivíduo durante a pandemia.
Com os dados que já temos, é possível dizer se a vacina é protetora ou, até mesmo, se consegue impedir a transmissão do vírus?
Não, com estes dados não dá para dizer isso. O que os dados mostram é que a vacina provoca uma resposta imunológica muito boa, produz anticorpos [induz a produção pelo sistema imunitário]. Se estes anticorpos vão ser capazes de proteger contra a doença, essa é outra fase do estudo. O facto de se produzir anticorpos é um dado muito, muito positivo, porque todas as vacinas começam com uma resposta imune, é a base para se continuar. Se tem uma resposta imune boa, muito provavelmente vai proteger.
Durante quanto tempo é possível produzir esses anticorpos?
O estudo mostrou que a produção de anticorpos se dá ao final de, mais ou menos, um mês. Ao fim de um mês tem-se já quantidades de anticorpos bastante elevadas. Quanto tempo vão durar? Ainda não sabemos.
Olhando para tudo o que já se passou, estamos a falar de investigações em tempo recorde. Olhando para aquilo que já foi feito, aquilo que já sabemos e aquilo que está planeado para os próximos meses, de quanto tempo vamos precisar para ter uma vacina disponível?
Essa é a pergunta que todo o mundo faz. Se se desenvolver normalmente, digo que o estudo vai durar um ano. Se obedecer a tudo, só em meados do ano que vem, talvez no segundo semestre. Mas estamos numa pandemia, temos urgência com esta vacina. Então o que é feito numa pandemia? Temos cinco mil pessoas vacinadas a ser acompanhadas, mas há outros centros no mundo [a fazer o mesmo ensaio] que totalizam 50 mil pessoas nesta fase de estudo, entre Reino Unido, Brasil, África e Estados Unidos. Se, com o tempo, se conseguir juntar dados, fazer uma análise, se os dados forem positivos, pode ter-se uma licença para uso de emergência. Talvez no final do ano.
Como é que vê esta corrida, principalmente dos países do Ocidente, já à procura de garantir que, assim que ficar disponível, vão ter a vacina?
É uma corrida realmente. Milhões de doses já foram reservadas, compradas, com uma vacina como está, sem dados certos de que vai funcionar. Mas as pessoas já estão a reservar porque acreditam que a vacina vai funcionar. E, se não der certo, o laboratório que já está a produzir vai perder tudo. Mas é um risco que se está a correr.
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No caso do Brasil, prevê que haja um acesso facilitado à vacina?
O acordo que foi feito prevê a aquisição de 100 milhões de doses da vacina começando já em dezembro deste ano — 15 milhões em dezembro, 15 milhões em janeiro e depois mais 70 milhões. Além disso, há um acordo de transferência de tecnologia para que se possa começar a produção da vacina no Brasil.
Quem está a financiar este estudo no Brasil?
O nosso patrocinador principal é [a Universidade de] Oxford. Mas conseguimos muitos doadores individuais, com doação de apoio financeiro aqui do país.
Gostaria de olhar um pouco também para o cenário no Brasil. Como é que tem visto a situação no país e a gestão da pandemia?
A gestão da pandemia é uma coisa muito discutível aqui no Brasil, porque os casos aumentam e a gestão central perdeu um pouco a direção, não está a atuar tão firmemente. [Ficou decidido que] o estado, a cidade, seria responsável pelo controlo da situação. Hoje temos cada estado a fazer a própria política de contenção de casos. Alguns locais fecharam mais a circulação de pessoas, com distanciamento social, alguns locais tornaram obrigatório o uso de máscaras e assim por diante. Num país continental, temos locais onde a doença já estabilizou e locais onde a doença começa agora a intensificar-se.
Como é que vê a gestão a nível nacional, principalmente ao nível da comunicação?
A nível nacional não há muita recomendação. Existe uma controvérsia nesse sentido. Alguns acham que deveria manter-se a restrição de circulação de pessoas ou fechar instituições, escolas, etc. E outros defendem a reabertura dos locais do comércio, etc. Então, a nível nacional o tema é polémico. Discute-se muito sobre isto. Os estados têm tomado os seus próprios procedimentos em relação a isto. O Brasil já tem mais de 80 mil óbitos pela Covid-19. Realmente é muito impressionante.
Neste momento, o Presidente brasileiro continua a testar positivo para a Covid-19 e tem recomendado a utilização de hidroxicloroquina, mesmo sem estudos que comprovem a eficácia deste medicamento. Como é que vê esta situação?
Esse é outro ponto polémico. Um tratamento é uma indicação médica, não é uma recomendação de uma pessoa. Como não [trabalho com o] tratamento, não queria entrar nessa área. Não há estudos científicos, realmente. Acho que o Ministério da Saúde poderia atuar de outra forma em relação a isto. Mas são condutas tomadas pelo nosso Presidente.
Estamos num ano de pandemia em que todos os olhos estão na ciência. Sente que é uma profissional mais reconhecida nestas alturas ou é simplesmente o trabalho do dia a dia?
Acho que todos os que trabalham nesta área estão num momento muito especial, não é um dia a dia comum. O que podermos dedicar [à investigação da doença], neste momento, é muito importante. Este não é um estudo que vai correr como os outros, temos de conduzir estes estudos ao passo que a doença exige. A Covid-19 está muito rápida e temos que ser rápidos e entrar nesse mesmo passo. Quando se fala que há tantas vacinas em desenvolvimento e tudo está a ser feito em tempo recorde, não é para outra coisa senão conseguir controlar a doença em tempo útil, controlar o SARS-CoV-2. Por isso é que está a fazer-se todos os esforços para chegar a uma conclusão o mais rapidamente possível.