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O funeral de Claude Debussy não teve o séquito nem a formalidade que seriam de esperar tratando-se de um compositor que gozava de amplo reconhecimento público. Debussy falecera a 25 de Março de 1918, dois dias depois de os exércitos alemães, que se tinham aproximado perigosamente de Paris, terem começado a bombardear regularmente a capital francesa com formidáveis canhões com um calibre de 210 mm e um cano de 21 metros de comprimento, dispostos a 120 Km de distância e operando no limite do seu alcance.

Pouco depois, a 29 de Março, um projéctil atingiu a Igreja de St-Gervais-et-St-Protais, a de 1918, causando 91 mortos e 68 feridos, mas a verdade é que os “canhões de Paris” (Pariser Kanonen), causaram vítimas e estragos materiais relativamente limitados para a imponência (e custo) das armas e dos colossais recursos humanos e materiais envolvidos: do disparo de cerca de 360 obuses (a uma média de 20 por dia) resultaram 250 mortos e 620 feridos.

Estragos causados pelo obus alemão que caiu a 29 de Março de 1918 na Igreja de St-Gervais-et-St-Protais, Paris, 1918

Mas o efeito psicológico sobre os parisienses foi tremendo. Assim se explica que o cortejo fúnebre do compositor tenha desfilado por ruas desertas e que a deposição (temporária) do féretro no Cemitério Père Lachaise tenha sido feita de forma sumária e pouco cerimoniosa, sem os pomposos discursos expectáveis perante a partida de um dos maiores vultos da música francesa.

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Um dos “canhões de Paris”, 1918

Guiado pelo prazer

Achille-Claude Debussy nasceu a 22 de Agosto de 1862, em Saint-Germain-en-Laye, não muito longe de Paris, numa família de classe média sem inclinações culturais – os pais tentavam manter aberta uma loja de louças com escassa clientela, que acabou por fechar pouco depois, obrigando o pai a buscar subsistência como caixeiro-viajante e assistente de tipógrafo. Porém, o seu padrinho, o banqueiro Achille Arosa, coleccionava arte e proporcionou ao jovem Claude as suas primeiras aulas de piano quando ele o visitou na sua casa de Cannes.

A aprendizagem a sério do piano começou com Madame Mauté, que se dizia aluna de Chopin – não há indício de que o tenha sido, mas a sua pedagogia foi suficientemente eficaz para que, aliada ao talento inato de Debussy, este fosse admitido no Conservatório de Paris com dez anos.

Claude Debussy (Henri Manuel/Getty Images)

Passaria lá onze anos, sem fazer grandes amizades com os colegas e gerando apreciável quantidade de atritos com os professores, pois desde cedo revelou independência de espírito e escassa disposição para aceitar regras cuja única legitimidade residia na antiguidade. Os progressos no piano também não foram os que o seu precoce talento fazia prever, pois Debussy mostrou-se menos interessado em tornar-se num pianista de concerto do que em compor. Aos colegas que torciam o nariz aos primeiros ensaios na composição, replicava, trocista: “Só aceitam acordes que possam chamar pelo nome?”. Quando um professor, agastado pelas “infracções” patentes nos seus exercícios de composição, lhe perguntou por que regras se regia, Debussy respondeu: “Pelo meu prazer”.

Antoine François Marmontel, um dos seus mestres, que manifestara entusiasmo quando acolhera o jovem Claude no Conservatório, foi ficando algo desiludido, mas nem por isso deixou de indicar o seu nome quando uma dama russa da alta sociedade pediu ao Conservatório um rapaz dotado para, nas férias de Verão, lhe providenciar entretenimento musical e dar lições de piano à prole. Foi assim que, em 1880, tinha Debussy 17 anos, se foi juntar na Suíça a Nadezhda von Meck e aos seus onze filhos (cinco rapazes e seis raparigas).

Nadezhda von Meck

Meck é um nome familiar aos melómanos, uma vez que foi ela que, durante vários anos serviu de mecenas a Tchaikovsky e lhe propiciou condições para se consagrar a tempo inteiro à composição. O emprego de Verão de Debussy junto da família Meck estendeu-se por três anos e proporcionou a Debussy o contacto com a fina-flor das artes e letras do tempo e enriquecedoras estadias em Génova, Nápoles, Florença, Viena, Trieste, Roma, Veneza e Moscovo.

Debussy acabou por apaixonar-se por Sonja, a filha mais velha dos Meck e chegou a pedir a sua mão em casamento, o que a matriarca, que tinha certamente em mente para as suas filhas maridos mais bem colocados na vida, rejeitou.

Debussy aos 22 anos, num retrato por Marcel Baschet, 1884

A busca da estranheza

Em 1884, Debussy ganhou o Prix de Rome, o mais prestigiado concurso musical de França, com a cantata L’enfant prodigue, uma obra convencional, mas que se enquadrava no que o ortodoxo júri do concurso esperava – fora a segunda tentativa de Debussy, que, no ano anterior, ficara em 2.º lugar com a cantata Le gladiateur. Debussy não tinha em grande conta o Prix de Rome – comparou-o a uma corrida de cavalos – nem o formato cantata – “uma forma híbrida devedora da ópera no que esta tem de mais banal” – e acabou por pouco desfrutar dele.

O prémio consistia numa bolsa de quatro anos para uma residência artística na Villa Medici, em Roma, mas esta revelou-se uma desilusão para Debussy, que não apreciou as acomodações nem a comida, não tinha empatia pela ópera que dominava esmagadoramente o meio musical italiano e não simpatizava com a ideia de ter de justificar a bolsa com a submissão anual ao júri do prémio de composições originais (envois), obrigação que comparou a “trabalhos forçados”.

A Villa Medici, em Roma

Acabou por só apresentar três dos quatro envois previstos, pois abreviou a estadia em Roma, e nenhuma deles está entre as peças memoráveis de Debussy – o compositor seria o primeiro a reconhecer o seu modesto valor, pois do primeiro deles, a ode sinfónica Zuleida (perdida) escreveu que “não é de todo o tipo de música que pretendo criar […], faz lembrar demasiadamente Verdi e Meyerbeer… perdão!”.

Mas vale a pena recordar o juízo que, sobre outro dos envois, a bem mais conseguida suíte sinfónica Printemps (1887), emitiu o douto júri que apreciava os envois: “O Sr. Debussy não pode ser acusado dos pecados da banalidade ou da sensaboria; pelo contrário, exibe uma tendência pronunciada, demasiado pronunciada, pela busca da estranheza. Reconhece-se nele um sentimento de cor e poesia a que o exagero faz facilmente esquecer a importância do desenho e da limpidez da forma. Seria desejável que ele se precavesse contra esse impressionismo vago que é um dos mais perigosos inimigos da verdade nas obras de arte”. A apreciação cai no equívoco – divertido, quando apreciado a posteriori – de identificar em embrião as principais qualidades de Debussy, mas ver nelas perigosas inclinações a evitar a todo o transe.

[Suíte sinfónica Printemps (1887), pela Orquestra Nacional de França, dirigida por Emmanuel Krivine]

Nos anos seguintes, Debussy iria abraçar mais estreitamente o “impressionismo vago” e virar as costas ao “desenho e limpidez da forma”, operando uma revolução que deixaria assarapantados os guardiões da velha ordem. Mas, entretanto, em Roma, o que lhe causava maior desgosto eram as saudades que tinha de Marie Vasnier, que conhecera em 1880 como aluna do Conservatório e de quem se tornara amante. A relação durou sete anos e parece ter sido tolerada pelo esposo de Marie, Henri Vasnier, um alto funcionário do Estado, e só acabou quando Debussy, regressado de Roma em 1887, se apaixonou por Gabrielle (“Gaby”) Dupont e foi viver com ela num quartinho em Montmartre.

A ligação com Gaby Dupont durou nove anos e, embora pouco se saiba sobre a sua vida, pode presumir-se que, fosse qual fosse a sua actividade (há quem sugira que era dançarina), foi ela que sustentou a vida boémia do casal. A privação material que marcou este período da vida de Debussy teve como contrapartida um intenso contacto com a elite intelectual de Paris: Pierre Louÿs, André Gide, Paul Valéry, Stéphane Mallarmé e Catulle Mendès, entre os escritores; Ernest Chausson e Erik Satie pelo lado dos compositores.

Música sem sauerkraut

A descoberta por Debussy da música de Wagner em 1887, levou a que, nos dois anos seguintes, se deslocasse ao Festival de Bayreuth, de onde regressou declarando-se “loucamente wagneriano”. Em 1889 descobriu, na Exposição Universal de Paris, a orquestra de gamelão de Java, que haveria de exercer influência decisiva na sua música.

A paixão por Wagner ainda alimentou a composição da ópera Rodrigue et Chimène, sobre libreto de Catulle Mendès, mas esta nunca passou de um estádio inicial e foi abandonada em 1892, em resultado de o seu wagnerismo estar a arrefecer rapidamente.

[“Mais non, je n’en crois rien”, da ópera Rodrigue et Chimène, por Nathalie Manfrino, com a Orquestra Filarmónica de Monte Carlo, com direcção de Emmanuel Villaume, do álbum French heroines (Decca)]

O seu amigo Satie reivindicou ter subtraído Debussy ao fascínio por valquírias ululantes: “fiz-lhe ver que, embora eu não fosse anti-wagneriano, ele tinha de encontrar o seu próprio caminho, se possível sem sauerkraut algum. Porque não podia ele usar os processos a que Claude Monet, Cézanne, Toulouse-Lautrec e outros tinham recorrido? Porque não transpô-los para a música? Nada mais simples”.

Fosse por influência de Satie ou por evolução pessoal, a verdade é que em 1894 Debussy já admitia “ter começado a duvidar da fórmula wagneriana, ou melhor, parece-me que ela só se ajustava ao particular génio desse compositor”. Quando Debussy escreveu estas linhas já a sua música se demarcara da influência de Wagner e já afirmava uma via própria, manifesta na composição, no ano anterior, do seu (único) Quarteto de cordas, mais próximo de César Franck do que de Wagner. Mas foi com o poema sinfónico Prélude à l’après-midi d’un faune, inspirado por um poema de Mallarmé e estreado, com estrondoso sucesso, em 1894, que rubricou a sua primeira obra-prima orquestral de plena maturidade – Pierre Boulez foi ao ponto de ver nela o começo da “música moderna”.

[Prélude à l’après-midi d’un faune, por The Cleveland Orchestra, dirigida por Pierre Boulez (Deutsche Grammophon)]

https://youtu.be/vLHKwOkqV9o

Enquanto Debussy começava a agitar as águas do meio musical, a sua vida sentimental também passava por um período turbulento: teve um caso com a soprano Thérèse Roger, com a qual se apresentou várias vezes em concertos, acompanhando-a ao piano na interpretação das suas canções. O caso parecia estar encaminhado para um noivado, mas num dia de 1894, Gaby Dupont encontrou uma carta comprometedora num bolso de um casaco de Debussy: nas palavras algo cínicas do compositor houve “choro, drama, uma pistola a sério e uma notícia no Petit Journal”. A tentativa de suicídio de Gaby falhou (terá apontado a pistola deliberadamente ao lado) e ela e Debussy reconciliaram-se.

Não foi por muito tempo: em 1899, Debussy trocou Gaby pela sua “melhor amiga”, a modelo Marie-Rosalie Texier (“Lilly”), facto de que deu conta ao seu editor através de uma carta em que anunciava que “a Sr.ª Dupont, a minha secretária, despediu-se das suas funções. É algo extremamente perturbador, até porque, sendo-se compositor, nem por isso se deixa de ser um homem”.

Lilly era, nas palavras de Debussy, “tão bela como uma figura saída de um romance” e desta feita foi Debussy quem ameaçou suicidar-se se Lilly não aceitasse casar com ele, ao que ela acedeu pouco depois de Debussy se ter desembaraçado de Gaby.

Marie-Rosalie Texier (“Lilly”), c.1902

Triângulos amorosos

Entretanto, desde 1893 que Debussy trabalhava para levar à cena uma ópera baseada na peça Pelléas et Mélisande, de Maurice Maeterlinck. A colaboração com Maeterlinck decorreu numa atmosfera cordial, apesar de Debussy considerar o poeta um néscio em matéria de música – “quando fala das sinfonias de Beethoven parece um cego num museu”. A composição ficou praticamente terminada em 1895, mas foram precisos anos de diligências de Debussy para que a Opéra-Comique de Paris aceitasse estreá-la em 1902. Debussy teria prometido o papel de Mélisande à amante de Maeterlinck, a soprano Georgette Leblanc, mas, entretanto, Albert Carré, o diretor da Opéra-Comique descobriu a jovem escocesa Mary Garden e propô-la para o papel.

Mary Garden no papel de Mélisande, 1908

Debussy deu-lhe a aprovação, mas não disse nada a Maeterlinck e a Leblanc, que só descobriram a substituição quando a estreia foi publicitada na imprensa. Maeterlinck ficou possesso e irrompeu pela casa do compositor, que só se salvou de levar umas bengaladas porque Lilly se interpôs entre ele e o despeitado libretista. Poucos dias depois, Maeterlinck fez publicar uma carta aberta no Le Figaro, acusando Debussy de ter mutilado o seu libreto com cortes absurdos e arbitrários e proclamando que “o Pelléas da Opéra-Comique é uma peça que se me tornou alheia, quase uma inimiga; e, uma vez que estou desprovido de qualquer controlo sobre ela, resta-me fazer votos para que o seu fiasco seja imediato e retumbante”.

Maurice Maeterlinck, c.1905

Na verdade, Maeterlinck não se limitou a desejar o fracasso da ópera: tentou impedir por via judicial que fosse levada à cena e, quando a “providência cautelar” foi rejeitada, tratou de, com a ajuda dos seus amigos, instigar um clima hostil na estreia; contou com a colaboração dos professores da ala mais retrógrada do Conservatório, que tentaram demover os seus alunos de assistir à ópera. O ensaio geral foi tumultuoso, mas, a estreia teve atmosfera mais neutra, pois a claque pró-Maeterlinck foi neutralizada por uma claque pró-debussysta – houve confronto físico entre ambas e a polícia foi chamada a acalmar os ânimos (bons tempos estes, em que a ópera inflamava mais os espíritos do que o futebol). Quanto ao público não-alinhado, ficou meio aturdido pelo facto de Pelléas pouco ter a ver com aquilo que , na época, se esperava de uma ópera. Porém, público e crítica acabaram por aderir a Pelléas e a ópera teve, nas semanas seguintes, 14 récitas esgotadas na Opéra-Comique e consolidou a reputação de Debussy, que foi, inclusive, distinguido com a Legião de Honra.

[“Scène de la fontaine des aveugles”, por Nathalie Dessay (Mélisande), Stéphane Degout (Pelléas) e a ORF Radio-Symphonieorchester Wien, com direcção de Bertrand de Billy e encenação de Laurent Pelly (DVD Virgin Classics/Erato]

O líder da claque pró-Debussy na estreia de Pelléas na Opéra-Comique foi Maurice Ravel, cujo apreço pela música de Debussy o levou a assistir às 14 récitas da ópera. Os dois compositores, cujas obras têm pontos de contacto, mantinham uma relação em que se mesclavam o respeito mútuo e a rivalidade, parte desta última alimentada pelos respectivos fan clubs. Mas se Ravel uma vez declarou que gostaria de reorquestrar La mer (insinuando que haveria inépcias no trabalho de Debussy), por outro lado, quem deu mais mostras de ciúme e tomou atitudes mais azedas parece ter sido Debussy, cujo egocentrismo acabava quase sempre por corroer os seus relacionamentos. E Lilly não tardaria a ter disso uma amarga prova.

[Cena I do III acto de Pelléas et Mélisande, com Alison Hagley (Mélisande), Neill Archer (Pelléas) e a Welsh National Opera, com direcção de Pierre Boulez e encenação de Peter Stein]

O um triângulo amoroso que está no centro do enredo de Pelléas et Mélisande era algo que também surgia frequentemente na vida de Debussy. Por esta altura, o compositor já se tinha enfadado de Lilly, mulher encantadora mas de “interesses intelectuais limitados”, e quando, no Outono de 1903, um dos seus alunos de piano, Raoul Bardac, lhe apresentou a mãe, Emma, ficou embevecido: além de ser bela, tocava piano, cantava e era culta e sofisticada – era também casada, com o banqueiro Sigismund Bardac e fora a musa e amante de Fauré uns anos antes.

Debussy tornou-se amante de Emma Bardac, dedicou-lhe o II volume do ciclo de canções Fêtes galantes (1904, sobre poemas de Verlaine) e viajou com ela por França durante o Verão de 1904, enquanto trabalhava em La mer – durante a estadia em Dieppe, escreveu uma carta a Lilly dando-lhe conta de que o casamento estava terminado (mas sem mencionar a existência de Emma). Lilly imitou Gaby: tentou suicidar-se com uma pistola e, tal como Gaby, fracassou no intento. Mas Debussy não saiu incólume: o escândalo abalou a sua imagem e alguns dos seus amigos, como os compositores Paul Dukas e André Messager, cortaram relações com ele e tomaram o partido de Lilly.

[“Le faune”, n.º 2 do livro II da colecção Fêtes galantes, por Véronique Dietschy (soprano) e Emmanuel Strosser (piano)]

A soprano Mary Garden, que fez o papel de Mélisande na estreia da dita ópera, diria: “Não sei se Debussy alguma vez amou realmente alguém. Amava a sua música e amava-se talvez a si mesmo. Creio que estava embrulhado no seu próprio génio”. É uma perspectiva que coincide com a que fora emitida, muitos anos antes, por Paul Vidal, seu condiscípulo no Conservatório: “Não sei se o seu egoísmo alguma vez será domado”.

No Verão de 1905, Debussy e Emma buscaram refúgio da hostilidade da opinião pública parisiense no Grand Hotel de Eastbourne, em Inglaterra, com vista para o Canal da Mancha – foi aí que Debussy deu os últimos retoques na partitura de La mer – enquanto em França decorriam as negociações para obter os divórcios dos respectivos cônjuges. Obtidos estes, Debussy e Emma casaram-se e em Outubro de 1905 nascia ao casal uma filha a que foi dado o absurdo nome de Claude-Emma, mas que foi sempre tratada por “Chouchou”. Seria ela a inspiração para a colecção de obras para piano Children’s corner (1908).

Um compositor impressionista?

A estreia de La mer, em 1905, não suscitou entusiasmo, talvez por culpa de um maestro pouco inspirado, mas quando Debussy dirigiu a obra em 1908 logrou convencer público e crítica e a obra acabaria por tornar-se uma das mais célebres do compositor. Debussy nunca manifestou interesse pela forma sinfónica, que considerava não ter produzido nada de válido após Beethoven e que representava para ele as convenções obsoletas de que pretendia libertar-se, e quando chegou a altura de explicitar a natureza de La Mer deu-lhe a designação de “trois esquisses symphoniques”; porém, os musicólogos vêem nos seus três andamentos – De l’aube à midi sur la mer, Jeux de vagues, Dialogues du vent et de la mer – afinidades estruturais com a sinfonia e alguns contam-na como a única sinfonia da carreira de Debussy.

[I andamento (De l’aube à midi sur la mer), de La mer, pela Orquestra do Festival de Lucerne, com direcção de Claudio Abbado, Festival de Lucerne, 2003]

Há quem veja na designação “esquisses” um vínculo à pintura e, em particular, à escola impressionista, embora Debussy rejeitasse veementemente tal associação; o termo “impressionista” tinha sido aplicado, com intuito pejorativo, num comentário à sua suíte sinfónica Printemps (1887), denotando que faltava à obra uma estrutura bem definida e estar demasiado preocupada com a cor orquestral. Mas, apesar da oposição de Debussy, não será completamente descabido falar de “impressionismo” na sua música se por este termo entendermos o esbatimento dos contornos da progressão tonal tradicional, a pulverização sonora, a fluidez, a indeterminação do tempo e a ênfase na transmissão das emoções e sensações que rodeiam um tema ou uma narrativa, em vez de elaborar um retrato musical nítido e detalhado.

[III andamento (Dialogues du vent et de la mer), de La mer, pela Orquestra do Festival de Lucerne, com direcção de Claudio Abbado, Festival de Lucerne, 2003]

Reagindo à imposição do rótulo “impressionista”, Debussy declarou que “o que eu busco é muito diferente: um efeito de realidade; o que alguns tolos apelidam de impressionismo é geralmente usado inadequadamente, especialmente pelos críticos que não hesitam em aplicá-lo a Turner, o maior criador de efeitos misteriosos de toda a História da Arte”. O gosto em pintura de Debussy ia menos para Monet e Pissarro do que para Turner e Whistler e uma das mais notáveis criações orquestrais de Debussy, o tríptico Nocturnes (1899), foi mesmo inspirado por uma série de pinturas de Whistler.

[“Fêtes”, o n.º 2 dos Nocturnes, pela Radio-Sinfonieoerchester Stuttgart, com direcção de Sergiu Celibidache]

https://youtu.be/U-RPDlUOxVk

Mas não só, na sua nota introdutória, o compositor não consegue evitar aludir a “impressões” – “o título Nocturnes […] não pretende designar a forma usual do ‘nocturno’ mas antes as várias impressões e os peculiares efeitos de luz que a palavra sugere” – como os quadros de Whistler em questão representam a quintessência do impressionismo.

Nocturne in black and gold: The falling rocket, de James Whistler, 1875

Analogamente, J.M.W. Turner, embora não sendo catalogável na escola impressionista, até porque faleceu em 1851, 23 anos antes da exposição colectiva em Paris que levou a que o termo “impressionista” fosse cunhado (a partir do quadro de Monet Impression: Soleil levant), produziu quadros que são impressionistas avant la lettre e que, aliás, foram objecto de aturado estudo pela parte de Monet.

Snow storm: Steam-boat off a harbour’s mouth, de J.M.W. Turner, c.1842

Porém, quando em 1905 foi publicada a partitura de La mer, não foi uma das inúmeras paisagens marinhas de Turner que Debussy escolheu para capa, mas uma versão simplificada e reenquadrada de uma estampa do japonês Katsushika Hokusai, que adquirira durante a sua estadia em Roma em 1885-87 e que tinha pendurada no seu escritório.

Capa da edição de 1905 da partitura de La Mer

À primeira vista, parece haver um abismo entre a pureza das linhas e as cores planas da Onda de Hokusai e da gravura japonesa (ukiyo-e) em geral, e a difusa poalha sonora e os subtis matizes de La mer, mas alguns críticos e comentadores têm apontado que a rejeição por Debussy do constante “movimento em frente” típico da tradição musical ocidental (e em particular da música oitocentista), em favor da imobilização num presente estático tem muito a ver com arte japonesa e, em particular com a suspensão do tempo operada pela ukiyo-e.

A grande onda de Kanagawa, de Hokusai, c.1830-32

Apogeu e declínio

Com a vida sentimental estabilizada e a vida financeira mais desafogada, Debussy conheceu os seus anos mais produtivos de criação no domínio do piano solo: as promessas anunciadas pela colecção Pour le piano (1901) e concretizadas em Estampes (1903), desabrocharam em pleno nos dois cadernos de Images, de 1905 e 1907, e nos dois cadernos de Préludes, de 1910 e 1913.

[“La fille aux cheveux de lin”, n.º 7 do I caderno de Préludes, por Fazil Say]

No mesmo ano do II caderno dos Préludes, Debussy conclui também uma obra orquestral de arrojo similar: o poème dansé Jeux, composto em resposta a uma encomenda dos Ballets Russes de Sergei Diaghilev e tendo por base um enredo (envolvendo a busca por uma bola de ténis extraviada!) delineado por Vaslav Nijinski, que foi também coreógrafo e intérprete da obra.

[Jeux, pela Orquestra Sinfónica de Montreal, com direcção de Charles Dutoit, 1989 (Decca)]

A estreia de Jeux, a 15 de Maio, no Théâtre des Champs-Elysées, foi acolhida com perplexidade e a pouca repercussão que teve no meio musical seria obliterada pelas ondas de choque resultantes da “escandalosa” estreia, duas semanas depois, no mesmo local e também num espectáculo dos Ballets Russes, de Le sacre du Printemps, de Stravinsky (ver A Primavera é a mais cruel das estações). O tumulto causado por Le Sacre fez esquecer que Jeux, embora sendo obra bem mais discreta, não é menos revolucionária, na sua ausência de desenvolvimento, nas suas texturas e ritmos em incessante mutação (há 60 mudanças de ritmo em menos de 20 minutos), no seu primado da transitoriedade. E vale também a pena notar que parte das harmonias inovadoras contidas nos três primeiros bailados de Stravinsky – L’oiseau de feu (1910), Petrushka (1911) e Le sacre du Printemps – são tributárias das harmonias de Debussy.

Debussy e Stravinsky, fotografados por Satie, 1910

Jeux seria a última grande obra orquestral de Debussy, pois o cancro do recto que lhe fora diagnosticado em 1909 tornou-se, a partir de 1915, numa penosa limitação e, até ao fim da vida, teria apenas forças para compor mais duas obras maiores: as peças para piano a quatro mãos de En blanc et noir e os Études para piano solo, ambos de 1915.

Os Études são peças mais abstractas e despojadas, que se afastam da sensualidade e colorido iridiscentes que usualmente se associam à obra para piano de Debussy. En blanc et noir suscitou no decano dos compositores franceses, Camille Saint-Saëns (1835-1921), uma reacção que mostra como, 21 anos passados sobre a estreia de Prélude à l’après-midi d’un faune, o establishment musical francês continuava a resistir a Debussy; escreveu Saint-Saëns numa carta a Fauré: “Recomendo-lhe que dê uma olhadela às peças para dois pianos que o Sr. Debussy acaba de publicar. São verdadeiramente inacreditáveis e devemos, a todo o custo, barrar a entrada no Instituto [de França] a um homem capaz de tais atrocidades. Deveriam ser arrumadas junto das pinturas cubistas”.

[Dois Études por Pierre-Laurent Aimard]

Todavia, o reconhecimento obtido por Debussy, em França e no estrangeiro, tinha tornado impossível ignorá-lo ou ostracizá-lo e até o bafiento Conservatório de Paris se achara obrigado, por sugestão de Fauré (que, embora sendo da geração de Saint-Saëns, tinha espírito mais desempoeirado), a convidá-lo a fazer parte do seu conselho superior. Debussy aceitara o cargo mas nem por isso perdeu o espírito crítico, observando que no júri das provas do Conservatório, de que fazia parte, “havia músicos que eram mais qualificados para avaliar gado”.

A eclosão da I Guerra Mundial, no Verão de 1914, despertou a veia patriótica do compositor: o seu anti-wagnerismo converteu-se em anti-germanismo inflamado e tratou de contribuir para o esforço de guerra escrevendo uma Berceuse héroïque dedicada ao rei Alberto da Bélgica e aos seus soldados e a canção Noël des enfants qui n’ont plus de maison, que seria a última peça que comporia e cujo texto, também de sua autoria, exorta o Pai Natal a não mais visitar as crianças alemãs, como forma de punição pela miséria trazida pelos exércitos do Kaiser às crianças francesas (e “também aos pequenos belgas, aos pequenos sérvios e aos pequenos polacos!”).

No meio da progressão da doença e das privações e perturbações decorrentes da guerra, Debussy teve ainda de haver-se com uma desagradável ponta solta do seu passado: em 1916 a sua ex-mulher Lilly Texier moveu-lhe uma acção judicial por falta de pagamento da pensão de alimentos e o tribunal deu razão à queixosa. Em Setembro de 1917, Debussy deu o seu último concerto em Biarritz e no início de 1918 foi forçado a recolher definitivamente ao leito, onde faleceria a 25 de Março.Os sons e os perfumes rodopiam no ar da tarde

O ano de 2018 tem sido fértil em edições discográficas – entre novidades e reedições e obras fundamentais e curiosidades – assinalando o centenário da morte de Debussy.

No domínio dos inéditos e raridades”. a Warner Classics propõe o triplo CD Centenary discoveries, enquanto no capítulo nas novas gravações de obras essenciais estão as leituras dos cadernos de Préludes pelo pianista turco Fazil Say (Warner Classics), que acopla o caderno I às três Gymnopédies (1888) e às seis Gnossiennes (1889-1897) do seu amigo Erik Satie…

As gravações de Fazil Say na Warner Classics

…e pelo pianista russo Aleksandr Melnikov (Harmonia Mundi), que acopla o caderno II à versão para piano a quatro mãos de La mer (em que conta com a parceria de Olga Pashchenko); Melnikov, que tem vindo a aprofundar o estudo de instrumentos de época e a coleccionar um apreciável número deles, escolheu tocar num piano Érard construído por volta de 1885 e que não será muito diverso daqueles em que Debussy tocou.

Aleksandr Melnikov, na Harmonia Mundi

Os Préludes, compostos em 1909-1910 (caderno I) e 1912-13 (caderno II), somam 12 + 12 peças, mas, ao contrário das colecções de prelúdios de Bach e Chopin, não cobrem sistematicamente os 12 tons da escala maior e menor e não foram pensados para ser tocados todos de uma assentada nem em nenhuma ordem particular. Debussy deu um título a cada um deles, mas colocou-o no final da partitura, insinuando que o prelúdio não era uma representação musical do que era aludido no título, mas meramente uma premonição, uma sugestão, uma aura do que estava para vir.

O compositor Jean Roger-Ducasse, aluno de Fauré e amigo de Emma Debussy, viu neles “menos prelúdios do que impressões visuais encerrados num quadro” – uma perspectiva a que Debussy, tão empenhado em demarcar-se da pintura impressionista, talvez franzisse o cenho. O musicólogo Vladimir Jankélévich definiu-os, num jogo de palavras intraduzível, como “l’avant-propos eternel d’un propos qui ne jamais n’adviendra” e viu neles o apogeu “do estaticismo e da aversão ao desenvolvimento discursivo”.

Os 24 Préludes são um fascinante microcosmos, exibindo uma grande variedade de ambientes a que corresponde análoga variedade de estruturas formais e recursos técnicos e foram o culminar do seu propósito de fazer com que o piano soasse como um “instrumento sem martelos”. Debussy tinha uma visão muito própria sobre como deveria soar o piano, que o levou a denunciar a falta de jeito de Beethoven em escrever para o instrumento. Para ele, só Chopin fora capaz de mostrar como o piano era capaz de cantar, através do recurso aos pedais e de uma abordagem subtil ao teclado – e tratou de levar mais longe as explorações de Chopin.

Os prelúdios têm as mais diversas inspirações/conexões: por exemplo, “Danseuses de Delphes” (caderno I, n.º 1) alude a figuras em relevo no topo de uma coluna num santuário dedicado a Apolo em Delfos, que Debussy terá conhecido apena através de uma fotografia.

[“Danseuses de Delphes”, por Fazil Say]

“Voiles” (caderno I, n.º 2) evoca uma paisagem marítima mas o compositor fez questão de assinalar que “não é uma fotografia de praia, um bilhete postal do 15 de Agosto” e, com efeito, há algo de sonho inquietante nesta costa silenciosa e desabitada, sensação que é realçada pela interpretação de Say.

[“Voiles”, por Fazil Say]

O título de “Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir” (caderno I, n.º 4) é um verso do poema Harmonie du soir, de Charles Baudelaire, que contém outro verso que poderia servir de descrição a este prelúdio: “Valse mélancolique et langoreux vertige”.

[“Les sons et les parfums tournent dans l’air du soir”, por Aleksandr Melnikov]

“Des pas sur la neige” (caderno I, n.º 6) coloca-nos numa paisagem gelada e desolada, esboçada com a máxima economia de notas e que acaba por ser engolida pela bruma imóvel. Extravasando as convenções musicais, a partitura contém, a dado momento esta instrução para o pianista: “comme un tendre et triste regret”.

[Des pas sur la neige, por Fazil Say]

O título “Ce qu’a vu le vent d’Ouest” (caderno I, n.º 7) provém de O jardim do Paraíso, um conto de fadas de Hans Christian Andersen, e é uma peça extraordinariamente caprichosa, que se agita sem cessar e muda de direcção sem aviso. Embora as peças musicais inspiradas por fenómenos atmosféricos tenham uma longa e nobre tradição, poucas vezes a ideia de vento foi tão magistralmente expressa em som.

[“Ce qu’a vu le vent d’Ouest”, por Fazil Say]

“La cathédrale engloutie” (caderno I, n.º 10) inspira-se numa lenda sobre a mítica cidade de Ys, na costa da Bretanha, que terá sido engolida pelo mar (“muito antes de se falar em alterações climáticas!”, observaria Trump se perdesse o seu precioso tempo a ouvir Debussy). Reza a lenda, que nalguns dias do ano a catedral de Ys emerge das profundezas e que é possível ouvir o dobrar dos sinos, os cânticos dos monges e o som do órgão.

[“La cathédrale engloutie”, por Fazil Say]

Debussy não se limita a evocar estes eventos – dá a ouvi-los de forma amortecida e distorcida, como se fossem filtrados através da água. O musicólogo Vladimir Jankélévich descreve “La cathédrale engloutie” como “o reflexo de algo perdido nas profundezas […], uma arquitectura tremulante e difusa”.

[“La cathédrale engloutie”, pelo próprio Debussy, num registo em rolo de pianola (rolo perfurado para piano mecânico) efectuado em 1914 e reproduzido e gravado posteriormente]

O título de “La terrasse des audiences du clair de lune” (caderno II, n.º 7) terá vindo, provavelmente, de L’Inde sans les anglais, um livro de viagens de Pierre Loti que narra as suas experiências na Índia, em 1899, mas não há exotismo de bilhete postal nesta peça nocturna e misteriosa, iluminada por uma claridade fria e leitosa e que faz pensar nalgumas peças que Messiaen viria a compor anos depois.

[“La terrasse des audiences du clair de lune”, por Aleksandr Melnikov]

A acoplagem dos Préludes às Gymnopédies e Gnossiennes proposta por Say é plenamente justificada pela amizade e pelas afinidades musicais entre Debussy e Satie. Embora a restante obra para piano de Satie seja dominada por um humor ressequido e alguma avareza de inspiração (ver O estranho e fabuloso caso do senhor Satie), as Gymnopédies e as Gnossiennes têm fortes pontos de contacto com a música de Debussy e não foi certamente por acaso que, em 1887, Debussy orquestrou as Gymnopédies n.º 1 e n.º 3.

[Gnossienne n.º 1, por Fazil Say]

Say aborda Satie com uma melancolia elegante, isenta do sentimentalismo e da languidez que tantas vezes inquinam as interpretações destas peças. A Gymnopédie n.º 1 é abordada num tempo inusitadamente lento, mas que não compromete o fluir das notas.

[Gymnopédie n.º 1, por Fazil Say]

A Harmonia Mundi assinalou o centenário de Debussy com a reedição de gravações de referência – a obra completa para piano por Alain Planés –, novas gravações – entre as quais estão o I caderno de Préludes (acoplado às Estampes) por Javier Perianes e o já mencionado CD por Melnikov – e até uma incursão no crossover, entregando a música de Debussy a um quarteto de cordas e um grupo de jazzmen de primeiro plano como Jacky Terrasson, Vincent Peirani, Jean-Philippe Collard-Neven e Franck Tortillon.

[Lançamentos Harmonia Mundi por ocasião do centenário da morte de Debussy]

Nas mãos de Melnikov e graças à superlativa engenharia de som do Teldex Studio, o piano Érard de 1885 revela uma sonoridade límpida e cheia de nuances subtis. Melnikov é um executante de elevado tecnicismo – ouçam-se os turbilhões de “Les tierces alternées” (n.º 11) – mas nada nele soa frio ou mecânico.

O CD é complementado pela transcrição para piano a quatro mãos de La mer, preparada pelo próprio compositor. Numa era em que os registos fonográficos ainda tinham circulação restrita e a rádio-difusão estava por nascer, as transcrições para piano eram uma forma prática de divulgar música orquestral e os editores, sabendo que eram um produto apetecível para o mercado dos salões e dos executantes amadores, apostavam na edição de “versões reduzidas”. Usualmente a “redução” era confiada a “operários especializados”, mas, em 1904, Debussy teve, entre os seus afazeres “alimentares”, o encargo de corrigir as provas de uma versão para piano a quatro mãos de uma obra de Albert Roussel e ficara tão desgostado com as inépcias do transcritor que se terá sentido impelido a ocupar-se ele mesmo da transcrição de La mer, de forma a não sujeitar a obra a maus-tratos similares.

Nas mãos de Aleksandr Melnikov e Olga Pashchenko a versão para piano a quatro mãos resulta tão bem que poderia supor-se ter sido composta de raiz para esse formato – mas, claro, não pode ter a esplêndida paleta de cores e texturas da versão orquestral.

[“Jeux de vagues”, de La mer, na versão para piano a quatro mãos, por Mayumi Kameda e Jean-Jacques Balet]

As descobertas do centenário

Entre as edições do centenário da morte de Debussy estão as caixas com a obra integral editadas pela Warner Classics (33 CDs) e pela Deutsche Grammophon (22 CDs + 2 DVDs), reunindo gravações de referência do vasto catálogo dos dois grupos editoriais.

O maior número de CDs da caixa da Warner resulta de se ter levado a peito o sentido de “integral”: contém um total de 137 composições, ou seja, todas as que constam do catálogo de Debussy, com exclusão de 13 cujo estado é tão fragmentário que impede a execução). A caixa da DG se fica pelas 116 composições.

Após a saída, no início de 2018, da caixa de 33 CDs, que inclui 28 obras em estreia discográfica (pelo menos na versão em questão), que foram registadas expressamente para esta edição, a Warner Classics lançou o triplo CD Centenary discoveries, cujo destinatário será o fã de Debussy que, embora pretenda conhecer todas as aparas e rebarbas da oficina do compositor, não está interessados em comprar a caixa de 33 CDs, até porque, provavelmente já terá boa parte dos registos nela compilados. Porém, o triplo CD apenas contém sete dessas 28 peças.

O CD1 de Centenary discoveries serve para recordar que embora Debussy só tenha concluído uma ópera – Pelléas et Mélisande – fez uma dúzia de tentativas no género, sem conseguir gerar mais do que fragmentos, quase sempre sob a forma de esboço para voz e piano. Assim, o CD1 contém fragmentos da comédie lyrique Diane au bois, uma obra de juventude sobre texto de Théodore de Banville, na qual Debussy trabalhou em 1885-87, e da ópera La chute de la maison Usher, tendo por base o famoso conto The fall of the house of Usher, de Edgar Allan Poe, na qual Debussy trabalhou intermitentemente entre 1908 e 1917, mas que já andava na sua mente desde 1890.

Debussy tinha Poe em especial apreço e entre 1902 e 1912 também tentara erguer Le diable dans le beffroi, uma ópera baseada noutro conto do autor americano, The devil in the bellfry, de que só restaram três páginas de esboços. La chute de la maison Usher tem sido (muito esporadicamente) levada à cena e gravada sob a forma reconstrução orquestral, mas este registo dá conta, pela primeira vez, da versão contida no manuscrito original de Debussy, em que as vozes só têm acompanhamento de piano.

[“Et sa soeur…”, de La chute de la maison Usher, por Jean-Christophe Lanièce (L’Ami) e Jean-Pierre Armengaud (piano)]

O CD contém também, pela primeira vez na versão integral (graças à recente descoberta de um manuscrito), Chanson des brises (1882), para soprano, coro feminino e piano a quatro mãos, mas só os completistas quererão ouvir esta obra de juventude, farfalhuda, estridente e que pouco tem a ver com as obras vocais de maturidade.

O CD2, pelo pianista Jean-Pierre Armengaud, contém as versões para piano, da autoria do próprio compositor, dos bailados Khamma (1911-12) e Jeux (1912-13). Khamma, de atmosfera manifestamente exótica, a condizer com o tema (tem lugar no Antigo Egipto) não parece ter entusiasmado o seu criador, dado que a orquestração foi realizada, essencialmente, por Charles Koechlin.

[Prelúdio de Khamma, por Jean-Pierre Armengaud (piano)]

Jeux também nasceu numa versão para piano – foi a partir dela que a coreografia de Nijinsky foi concebida – e só depois foi orquestrada, pelo que, em ambos os casos, a versão para piano é a “original”.

O CD 3 é preenchido com transcrições para piano a quatro mãos (Jean-Pierre Armengaud e Olivier Chazu) de obras orquestrais de outros compositores, realizadas pelo jovem Debussy: a Sinfonia n.º 2 de Camille Saint-Saëns e as Airs de ballet de Étienne Marcel, ambas datadas de 1890. A realização destas transcrições foi ditada por imperativos de subsistência, não pelo apreço de Debussy pelas obras, pois Saint-Saëns representava muito do que Debussy abominava – nas críticas que publicou em La Revue Blanche, sob o pseudónimo de Monsieur Croche, escreveu: “Odeio o sentimentalismo – e o seu nome é Camille Saint-Saëns”. Tudo isto contribui para que o CD3 se revista de ínfimo interesse para o público em geral.

Se parece óbvio que Centenary discoveries se destina a completistas e estudiosos da obra de Debussy, estranha-se, por outro lado, que só contenha sete das 28 peças “inéditas” e que o livrete omita os textos cantados (pecado que partilha com a caixa de 33 CDs) e não providencie um adequado enquadramento das obras, tanto mais necessário por serem “descobertas”.

Já os Préludes por Fazil Say e Aleksandr Melnikov são dois soberbos discos, que fazem digna companhia a dois outros novos registos da mesma obra, por dois decanos do piano, lançados este ano pela Deutsche Grammophon: o caderno I por Daniel Barenboim (acoplada a Estampes, Clair de lune, La plus que lente e Élégie) e o caderno II por Maurizio Pollini (acoplado a En blanc et noir).