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Feira do livro: os melhores autógrafos têm uma história

Falámos com vários autores, de Alice Vieira a Mário Zambujal, passando por Rui Zink e Inês Pedrosa, para conhecer alguns dos momentos mais desconcertantes que viveram na Feira do Livro de Lisboa.

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E aí está mais uma vez a Feira do Livro, certame de editores, leitores e farturas. E, ao que se sabe, este ano, comida mais saudável, mais pavilhões, um dispositivo tecnológico capaz de situar o transeunte angustiado com tanta escolha e actividades mui literárias como o ioga. Anunciam-se números ainda melhores – na frequência e nas vendas. Uma romaria de gentes que procuram os mais diversos livros, das literaturas distintas aos manuais de auto-ajuda, passando por volumes que só se podem encontrar nos mais secretos alfarrabistas.

Sejamos sinceros. Há algo que por vezes parece estar a mais na Feira do Livro: o autor. O autor é, não raro, um ser que por ali está. Com frequência desacompanhado. Ou acompanhado do seu ego ofendido pela falta de atenção de quem passa. O professor e escritor Onésimo Teotónio Almeida fala dessas figuras que merecem uma palavra, um carinho, um aceno:

“Uma experiência de Feira do Livro que recomendo: numa solarenta tarde de um fim-de-semana de Junho, Portugal inteiro na praia, ou algures à sombra, e estar um escriba plantado numa mesa na Feira, disponível para autografar livros, às moscas, ou com um ou outro transeunte a passar diante dele, mas sem querer olhar, com receio de cruzar os olhos com ele e sentir-se obrigado a parar e comprar”.

Todos passaram por isso. Ou pelo menos muitos passaram por isso. Até escritores com fama sublinhada e difundida. Há quem deseje, nos seus melhores sonhos, que um dia até José Rodrigues dos Santos e Pedro Chagas Freitas sejam abandonados aos seus melancólicos pensamentos debaixo de um céu sem nuvens e piedade. Onésimo volta a lembrar esse leitor que se atravessa diante do solitário autor e segue em frente, um pouco constrangido. Vai de cabeça baixa “a fazer-se distraído a olhar para outro quiosque, como fazemos quando numa rua da cidade nos cruzamos sozinhos com um pedinte sentado na calçada do passeio de mão estendida”. Considera o autor de “Rio Atlântico” ou do mais recente “Despenteando Parágrafos” que essa é “uma experiência muito saudável, terapêutica mesmo”. E, para quem tenha “peneiras de autor”, um excelente curativo.

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Passear com alguma atenção entre os pavilhões pode ser uma forma de topar o que os leitores mais procuram entre livros de ficção, de não ficção, de História, de dicas para as mais diversas necessidades, catálogos de excepção, volumes que não imaginávamos encontrar em saldos, debates, conversas com interesse e outras com desinteresse. E, claro, vastos “produtos” considerados pouco dignos de serem citados nos melhores salões de chá da alta cultura.

Mas voltemos aos autores e às suas vivências inesperadas nesta floresta de papel e lombadas. Quase todos, com mais ou menos seguidores no local, têm histórias para contar passadas neste acontecimento anual fundado em Lisboa em 1930 e que desde 1931 passou a ser organizado pela Associação de Classe de Livreiros de Portugal, hoje chamada Associação Portuguesa de Editores e Livreiros (APEL).

Alice Vieira

Autora — é sabido — com leitores muitos, partilha dois episódios divertidos passados no Parque Eduardo VII. Um deles aconteceu quando subia a alameda para ir dar autógrafos. Uma mulher atravessou-se no seu caminho, agarrou-a e disse-lhe: “Fique-me aqui com a minha cesta dos tremoços, que eu tenho de ir à casa de banho!’”. Alice não se ficou: “Lembro-me que vendi três pacotes. E recebi um de paga, quando ela regressou”.

Outro momento desconcertante ocorreu quando se encontrava no pavilhão da Caminho. Um homem que havia comprado “Espada do Rei Afonso” estendeu-lhe o livro, a autora autografou-o e o homem fez um pouco amável comentário final: “É para o meu filho… Foi a professora na escola que mandou. Sabe como é: agora nas escolas as professoras mandam comprar toda a merda que aparece…”. Alice Vieira jura que o seu sorriso não se alterou.

Mário Zambujal

Jornalismo: Mário Zambujal

Tem uma simpatia grande para com a Feira do Livro, onde costuma encontrar pessoas que já não vê há décadas. Como amigos de adolescência, que ouvem o seu nome pelos altifalantes e se aproximam, sorridentes. “Trocamos aquelas mentirinhas que se dizem na ocasião: ‘Estás na mesma!’”. Há um ano, Zambujal, hoje editado pela Clube do Autor, encontrou alguém que já não via há anos e com quem teve um relacionamento de amizade na altura em que trabalhava na área do jornalismo desportivo: um ex-jogador do Sporting, agora dedicado a outras artes. “Surgiu um homem negro, elegantíssimo, que se apresentou. Era o Jordão, que neste momento é um pintor de mérito. Foi óptimo”.

Tal como aconteceu com Alice Vieira, viveu um episódio engraçado na famosa Feira. Estava sentado a dar autógrafos quando passou uma comitiva do PCTP/MRPP em campanha. “Havia uma rapariga lindíssima que quis tirar uma fotografia comigo e eu disse-lhe que sim”. Até hoje Zambujal, entre risos, diz não saber se apareceu numa campanha do partido.

Filipe Faria

Nascido em 1982 em Lisboa, é autor de livros como “Vagas de Fogo” e “A Alvorada dos Deuses”, ambos editados pela Presença. Vencedor em 2001 do Prémio Branquinho da Fonseca e em 2002 do Prémio Matilde Rosa Araújo, dedica-se à literatura fantástica. E fantástico também foi o episódio que vivenciou numa das edições da Feira do Livro. Um episódio que envolveu dois gémeos de olhos azuis e barba.

Nada sabiam do autor e claramente não eram o seu, chamemos-lhe assim, público-alvo. “Fizeram toda uma série de perguntas acerca de mim, dos meus livros, do que eles representavam”. Uma vez que já estava perto do final da sessão, o também autor de “O Fado da Sombra” não se importou de ir respondendo às perguntas e de se deixar ir na conversa daquele duplo interrogatório. “Sempre cordatos e movidos por genuína curiosidade intelectual, as minhas respostas sucintas pareciam apenas dar-lhes corda, com a conversa a fluir gradualmente para a poesia, o parnasianismo, o pós-modernismo, o saudosismo judaico-cristão inerente a grandes obras de referência do fantástico e mesmo, pegando como base um elemento da capa de um dos meus livros, na qual estava o detalhe da escultura de um rosto humano, a possibilidade de a minha obra poder revelar até certo ponto um amor ao Homem”. Filipe classifica a tertúlia como no mínimo original e insólita. “Certo é que nunca a esqueci e me deixou apto a responder a quase todo o tipo de perguntas acerca da minha obra. E ensinou-me o que era o parnasianismo”.

Leonor Xavier

Lembra-se de ir desde muito pequena à Feira do Livro quando esta ainda se realizava na Avenida da Liberdade – foi um dos seus poisos, tal como a Praça D. Pedro IV, a Rua Augusta e a Praça do Comércio. Sentiu como estranha a mudança para o Parque Eduardo VII. “Morávamos na Avenida António Augusto de Aguiar e o parque era um território perigoso, arriscado e mal frequentado”. Se quisesse ir sozinha até lá seria proibida pelos pais. Além do mais, veio-se a saber, havia no local “um homem exibicionista”. No domínio dos episódios pitorescos recorda “a falsa morte anunciada de Henrique Barrilaro Ruas, autor de uma edição comentada de Camões que ressuscitou a dar autógrafos na Feira”.

Cristina Carvalho

Autora de O Olhar e a Alma (Editora Planeta) e de O Gato de Uppsala (Sextante), tem uma história para contar que se passou em 2011 nos pavilhões da Planeta. Tinha acabado de publicado o seu livro A Casa das Auroras e estava de caneta em riste, pronta para todas as assinaturas. E, sim, com livros espalhados na mesa. A ocorrência teve lugar em finais de Abril, num sábado chuvoso, ventoso e gelado. Cristina tinha por hábito levar dois bolos rechonchudos. Nesse dia transportou “daqueles bolos irresistíveis, um de laranja, o outro de limão”. E também “frasquinhos com licores variados, também feitos em minha casa pelo meu marido e que são de cair para o lado”.

Uma mulher atravessou-se no seu caminho, agarrou-a e disse-lhe: “Fique-me aqui com a minha cesta dos tremoços, que eu tenho de ir à casa de banho!’”. Alice Vieira não se ficou: “Lembro-me que vendi três pacotes. E recebi um de paga, quando ela regressou”.

As horas daquela tarde infrequentável iam passando e as pessoas que calcorreavam o terreno nem se davam ao trabalho de fazer o movimento descrito por Onésimo Teotónio Almeida. Nem olhavam e muito menos compravam livros. “E nós por ali, a tremer de frio, todos debaixo de um enorme chapéu que devia ser de sol, mas no caso era de chuva e, ainda assim, rindo à gargalhada”. Até que Cristina Carvalho se lembrou de acenar com fatias de bolo e copos de papel cheios com os licores a quem passava, a ver se havia alguém que se chegasse e comprasse um livrinho. “Às tantas juntou-se uma roda de festa com o pessoal todo que subia a rua a lamber-se de gozo, de boca cheia de bolos, a escorropichar o licorzinho dos copos”. Ninguém adquiriu literatura. “Não dei um único autógrafo, é um facto. Mas lá que fiz por isso, fiz, e foi um bocado bem passado e bem divertido”.

Ana Saragoça

É a autora do recente Quando Fores Mãe Vais Ver e de, em 2012, um romance intitulado Todos os Dias São Meus. Foi com o primeiro livro que experimentou o que se descreve a seguir. “Durante uma sessão de autógrafos, um senhor passou uns bons 45 minutos ao meu lado, trocando comigo olhares amáveis, enquanto folheava o meu livro e soltava ruidosas gargalhadas”. Findo esse tempo, “o senhor pousou o livro na pilha, sorriu-me e foi-se embora”.

Também teve aquilo que designa como um “grato encontro” com uma colega actriz que não a sabia escritora: “O seu comentário foi: ‘Que giro, escreves livros! Mas eu nunca venho à Feira do Livro comprar livros. Venho comer farturas!’”. Haja alguém que o assuma.

Ana também assistiu a um episódio que se passou com Alice Brito, companheira na Planeta e autora nascida em 1954 mas “com um aspecto mais jovem do que se esperaria”. A propósito do seu romance As Mulheres da Fonte Nova, que nos transporta para Setúbal durante o salazarismo, uma senhora perguntou se ela ainda se lembrava bem da Guerra Civil Espanhola. A autora confirma e acrescenta o fim desta pequena narrativa: “Nessa altura percebi que o resto do pessoal se tinha calado e saboreava a cena num gozo fininho. Disse-lhe que não, não senhora, não tinha estado, e ela complacente respondeu: ‘Esteve, esteve. Eu sei que esteve!’”. E avançou pela feira fora, eventualmente à procura de uma qualquer “frente de combate”.

Domingos Amaral

O autor de romances como Enquanto Salazar Dormia… e do recente Assim Nasceu Portugal, ambos editados pela Casa das Letras, Domingos Amaral diz que o momento mais divertido que viveu na Feira do Livro foi o de ouvir António Lobo Antunes a explicar como é que faz para que a fila para os autógrafos fique maior. Segundo percebeu, “se Lobo Antunes vê a fila pequena, fica dez minutos a falar com cada pessoa, e assim a fila vai aumentando com as pessoas que estão à espera”. Se a fila é generosa, “ele só fala um minuto com cada pessoa”.

Inês Pedrosa

Inês Pedrosa directora da Casa Fernando Pessoa

As memórias que Inês Pedrosa tem da Feira do Livro, que visita desde criança, são “múltiplas, ternas e luminosas”. Conta uma história que não tem a leveza das anteriores. Desde que passou a participar como autora viveu vários episódios desconcertantes. “Talvez o mais complicado tenha sido quando, em 2002, por ocasião da publicação de ‘Fazes-me Falta’, me surgiu diante da mesa de autógrafos uma rapariga de vinte e poucos anos, lavada em lágrimas, pedindo: ‘Escreva-me qualquer coisa que me faça aguentar o enterro do meu pai, que está ali adiante numa igreja a ser velado’”. Não sabe exactamente o que escreveu. “Preenchi de palavras a folha de rosto do livro, dizendo, em suma, que também eu tinha passado por aquela experiência e sobrevivido, que só morrem de vez aqueles que deixamos de amar, etc”. Escrevia sabendo que nenhuma palavra poderia atenuar a tristeza, mas que “talvez a união de todas aquelas palavras pudesse esboçar sobre a página uma espécie de abraço vital”. Ao mesmo tempo, comoveu-a sentir “a fé” que as pessoas – pelo menos algumas pessoas – “depositam nos livros”. Sentimento a que recorre, nos dias em que emperra na escrita.

João Tordo

Ainda em território afectivo: na Feira do Livro de 2014, o escritor João Tordo recebeu uma visita significativa. “Um senhor veio ter comigo e disse que era o parteiro (é assim que se diz) que assistira ao meu nascimento”. O homem lembrava-se de todos os pormenores: do facto de ter nascido com João uma irmã gémea e de um seu gémeo idêntico ter morrido à nascença. Tordo conta: “Apareceu para comprar um livro meu, uma vez que me tinha visto nascer e tinha ouvido dizer que eu era escritor”.

Rui Zink

Episódio burlesco para o final, passado com Rui Zink, que se estreou na literatura com “Hotel Lusitano”, em 1987. No ano anterior andou pela Feira, “muito aprumadinho”, a pedir a censura de um livro, Metamorfoses do Vídeo, de Alberto Pimenta. “Num instante reuni umas 30 assinaturas, sobretudo quando explicava quem éramos – ‘um grupo de jovens’ — e ninguém protestou”. Faz um reparo. “Minto. O autor protestou. Foi a única vez em que levei uma carga de porrada do Alberto Pimenta”. Pimenta, ele próprio, tinha sido o autor da ideia. “Fui apenas actor, com a minha amiga Leonor”.

Zink descreve a cena — que teve consagração jornalística pela mão do próprio e pela de Júlio Pinto — como sendo uma espécie de wrestling. “No fim o Alberto perguntou-me se continuava a achar que o livro dele devia ser censurado. Eu, a cuspir dentes, reforcei: ‘Continuo. Tenho a liberdade de censurar o que quiser!’”. Pimenta abriu os braços e disse: “Eu também!”. E Rui ficou com duas marcas de lábios nas bochechas, porque Pimenta havia colocado batom para dar “osculógrafos”. Uma invenção, também ela, do autor de Discurso Sobre o Filho-da Puta e Ainda Há Muito Para Fazer.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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