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Rodolfo Magalhães

Rodolfo Magalhães

Gisela João: "A mulher desgraçadinha? P... que pariu, nem pensar! Nos meus discos não há disso"

Aguentou as comparações a Amália, fintou pressões e fez um novo disco luminoso, uma "AuRora" na nossa música. Numa longa entrevista, Gisela João fala de tudo: Barcelos, Lisboa, Sr. Vinho, fado, vida.

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A beleza é um motor tremendo, a poesia é avassaladora. Há discos e discos e há álbuns como este, que fazem um ouvinte querer levantar-se da cadeira, dizer mentalmente “vamos à vida, caramba!”, ser tomado por uma força que vem de encontrar um som que ainda estava por descobrir, uma canção que ainda ninguém ouvira mas que só poderia ser escutada assim, com este arranjo, com este timbre, com esta voz, com esta melodia.

Quando Gisela João editou o primeiro álbum e se tornou nova coqueluche do fado cool, o fado que na verdade não precisava de grandes artifícios ou novidades para ser novo clássico — só canto sentido, bom gosto, emoção a ribombar com delicadeza —, Miguel Esteves Cardoso escreveu: “Amália Rodrigues foi a grande fadista do século XX. (…) Sei e sinto, com a mesma força, que Gisela João é a grande fadista do século XXI”.

Nunca como até AuRora isso se sentiu deste modo. Como se Gisela João fosse por alguns minutos — o tempo que este novo disco dura — a única voz que importasse, o som e o canto sozinhos que valessem a pena escutar. Não há-de ter sido muito diferente a sensação de quem ouviu discos como Com Que Voz ou (este já com a voz menos esplendorosa, mas ainda mais afundada em vida e sabedoria) ou Cantigas Numa Língua Antiga, de Amália Rodrigues.

Percebe-se que Gisela João tenha ficado tantos anos sem editar um álbum — cinco, contámo-los nós —, compreende-se que tenha decidido deixar este disco pendurado até que o mundo e os portugueses tivessem a cabeça um bocadinho menos dominada pelo omnipresente coronavírus. Mas AuRora não precisava sequer de contexto para revelar todo o poder magnético..

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A capa de ‘AuRora’, o novo disco de Gisela João

Encontrámos Gisela no ateliê que tem desde outubro em Lisboa, onde pouco tem ido — diz estar a esforçar-se por sair pouco de casa enquanto o país está confinado — mas onde planeia fazer os seus bordados e costura. Na montra, o artesanato barcelense, com as figuras dos chamados “minhotos” em madeira expostas, denuncia logo quem está no interior.

É lá que nos sentamos com Gisela João para uma conversa longa sobre este disco, sobre o seu trajeto desde que cantava na “mini-Chuva de Estrelas organizada pela Sãozinha”, sobre o “orgulho” de ser mulher e as facilidades que muitos homens têm por ser homens, sobre como viveu um ano de pandemia. E ainda: as “pressões constantes” que sente desde que lançou o primeiro álbum, o problema grave de saúde em 2017 que a fez mudar a forma como vivia, as memórias de encontros com Carlos do Carmo e o desejo de que pudesse cantar só quando lhe “apetecesse”, sem fazer da música vida — e até porque “na maior parte das vezes apetece-me cantar quando não há nada preparado”.

Desempoeirada no verbo, sem pruridos em usar o calão e sem floreados ou meias-tintas na linguagem, eis Gisela João, desabrida, “louca” como canta no seu novo disco, indomável, independente, a partir pratos numa entrevista como o fez há “uns três fins de semana”, quando um dia horrível se abateu sobre Lisboa. Gisela, a rebentar de tensão e nervos, sentiu o fado a acontecer-lhe e a necessidade de cantar — e de cantar “aquela música em específico” — como necessidade visceral.

[O novo disco já chegou às plataformas digitais de streaming]

“O fado está na forma de estar na vida. Há pessoas que não cantam e são fadistas”

De zero a 20, como está a sua ansiedade para que as pessoas oiçam este disco que fez? Tinha-o guardado há tanto tempo, à espera de melhores dias para sair…
A minha ansiedade está bem, honestamente. Acho que a pandemia ajudou um bocado nessa gestão. O que acontece à nossa volta é tão sério e tão grave que ajuda a relativizar também estas questões que são tuas, do teu umbigo. É uma coisa minha, isto. A big picture assombra-me muito mais do que isto, há coisas bem piores a acontecer. Mas por outro lado também sinto que o facto de estar descansada…

Acho que o disco acabou por sair no tempo dele, quando tinha de sair. Era suposto ter saído em abril do ano passado e o plano era um mês antes, em março, começarem a sair vídeos. Acho que o facto de perceber que não era para ter saído naquela altura ajudou. A vida dá-nos sempre muitos sinais do que é mesmo para ser, nós é que muitas vezes lutamos contra porque queremos muito as coisas. As coisas têm um tempo para acontecer e acho que este disco tinha de acontecer agora, por todos os motivos e mais alguns.

Por exemplo?
O meu disco chama-se AuRora. E nós estamos todos a viver uma aurora. Escolhi o nome do disco antes disto [Covid-19] tudo acontecer. Ou seja, a mensagem de esperança que o disco tem também é aquilo de que precisamos neste momento. O meu disco vai sair quando vamos desconfinar. Era para ser agora. Não valia a pena andar aqui a sofrer antes do tempo. Mas não vou mentir a dizer que no ano passado quando via os dias passar e quando chegava a data em que sabia que era suposto sair um vídeo, em que ia revelar uma das músicas, não ficava um bocado triste. Ficava, claro que ficava.

Tinha esta dúvida: se a impaciência foi tanta que chegou a pensar lançar o disco em algum momento, ao longo deste ano.
Às vezes tinha vontade de mostrar. Também porque havia outra questão. Tu enquanto jornalista podes ter uma coisa a dizer hoje mas amanhã já terás outras coisas a dizer. E no dia seguinte, outras ainda. No dia-a-dia podemos não dar por isto mas passados alguns meses notas que já te tornaste outra pessoa, mudaste de ideias em relação a algumas coisas, aprofundaste as tuas ideias sobre outras [coisas], agudizaste os teus valores.

Pensava às vezes: será que aquilo que estou ali a dizer ainda é aquilo que vou querer dizer daqui a três ou quatro meses? No ano passado andávamos um bocado assim: ‘será que podemos fazer isto para a semana, daqui a dois meses?’. Não sabíamos. O que sabia era isto: no dia em que lançasse a primeira música, o comboio começava a andar e não parava. Isso sabia. Quando a primeira música [“Louca”] ficou disponível à meia-noite em todas as plataformas… confesso que não dormi [risos].

"Às vezes parece sempre que estamos numa de fingir que está tudo bem. Nas redes sociais as fotografias são todas fixes e está tudo perfeito. Claro, também não me apetece ir para lá pôr fotos em que estou toda f*****, não é? Mas acho que acaba por ser também um bocado tóxica essa falsa felicidade. Ninguém vive assim de forma tão plena, é impossível. Também seria uma seca, a vida."

Cada pessoa ouvirá e interpretará o disco como entender. Mas o que é que gostava mesmo que as pessoas captassem do disco? Há algumas coisas que gostasse mesmo que as pessoas reparassem?
Há uma pergunta que detesto que me façam, que é: o que queres dizer quando estás a cantar isto ou aquilo? Prefiro que as pessoas me digam o que sentiram. Aí, sim, sinto: missão cumprida! Mas não foi isso que me perguntaste e ainda bem. Pondo a pergunta dessa forma, posso dizer que todas as letras do disco constatam um facto. Há uma situação, há um problema, que correu mais ou menos bem e tu estás a refletir sobre aquilo, a falar sobre aquilo. Mas em todas as letras o final deixa sempre uma porta aberta para uma coisa melhor. Vem aí uma coisa melhor, alguma coisa mais fixe.

Às vezes parece sempre que estamos numa de fingir que está tudo bem. Nas redes sociais as fotografias são todas fixes e está tudo perfeito. Claro, também não me apetece ir para lá pôr fotos em que estou toda f*****, não é? Mas acho que acaba por ser também um bocado tóxica essa falsa felicidade. Ninguém vive assim de forma tão plena, é impossível. Também seria uma seca, a vida. Tenho praticamente a certeza que naqueles momentos em que a tua vida está mais… lixada, em que estás mais triste ou chateado, nem que seja por um nanosegundo passa-te sempre aquela coisa pela cabeça: ‘Isto vai ficar melhor, vai passar’. Eu por exemplo quando estou com ‘dores’ é um exercício que tento muito fazer: respirar fundo e pensar ‘vai passar’… Aquela máxima do ‘só não há remédio para a morte’ é verdade. As coisas passam, o tempo ajuda a curar — ou então não. Mas as coisas ficam melhores.

Mesmo que não ajude a curar, o tempo ajuda a digerir, pelo menos?
Sim — e gosto de pensar que o meu disco tem essa mensagem. As letras nunca se fecham só numa história, só numa vida, só numa pessoa. São muitas histórias ao mesmo tempo, podem falar de uma história de amor como podem falar da tua relação com o trabalho ou da tua relação de amizade porque o meu amor é muito mais do que a relação amorosa. Gosto de pensar que o meu disco tem essa mensagem, sobretudo de esperança e de encontro contigo próprio, de aceitação.

É um disco que foi gravado entre Lisboa e Catalunha. O que a levou a El Prats de Rei [município catalão onde decorreram parte das gravações e misturas]?
Na verdade não foi nada de especial que me levou até lá. O Michael [League, produtor do disco] vive entre a Catalunha e Nova Iorque. Tem lá o estúdio dele. Gravámos montes de coisas cá e fizemos as misturas lá.

"Sentia-me meio chateada: f***-**, sou uma privilegiada da merda, estou para aqui a pensar agora no meu disco. Por causa da pandemia às vezes sentia isso, não queria sequer pensar no disco. Quase me sentia chateada comigo por de repente estar focada no que era meu, no meu bombomzinho."

Escreveu a dada altura: “Durante este ano assustador que vivemos, quase perdi interesse em tudo o que fiz com o meu novo álbum”. Houve algum momento concreto em que isso tenha mudado, em que tenha sentido vontade de voltar ao que fez antes da pandemia? Encontrou alguma paz de espírito, algum equilíbrio mental que permitisse isso, em algum momento?
Quando escrevi isso… sou uma desbocada, escrevo e digo tudo o que penso, que se lixe. [risos] Quando escrevi isso foi precisamente por causa disto da pandemia, que é muito séria. A leviandade com que via o assunto ser tratado por montes de pessoas, por alguns países — por exemplo o Brasil… estava um genocídio a acontecer em montes de lugares do nosso mundo. Quase me sentia chateada comigo por de repente estar focada no que era meu, no meu bombomzinho, no meu disco.

Sentia-me meio chateada: f***-**, sou uma privilegiada da merda, estou para aqui a pensar agora no meu disco… “pá, não quero sequer pensar nisto”, sabes? É muito importante percebermos qual é o tipo de privilégio que temos. Se pensarmos nisso vamos ter mais cuidado com as ações que tomamos no dia-a-dia, com a forma como cuidamos do outro. Por causa da pandemia às vezes sentia isso, não queria sequer pensar no disco. E tive de tomar aquela decisão que acho que muita gente tomou: não ver notícias todos os dias, a toda a hora. De repente até já me faltava o ar com a ansiedade.

Também escreveu nas redes sociais: “Assombrava-me o medo de já não querer contar aquela história, de já não ser aquela pessoa que gravou este disco”. Passou-se um ano, ainda é algum tempo. Esse medo foi só pelo efeito da pandemia? Ou passou-se alguma coisa na sua vida que a fez mudar, que fez com que alterasse a forma de olhar para as coisas?
Escrevi isso mais a pensar na pandemia. Mas acho que é importante todos fazermos de vez em quando um ponto de situação do que nós somos, do que queremos ser, do que andamos a fazer. Para não andarmos aqui meio sem norte. Não é fixe andar sem norte. A liberdade é super fixe mas é bom haver um norte lá ao fundo, haver objetivos.

Continuo a ser a mesma pessoa… mais ou menos. Claro que não sou a mesma pessoa que era há um ano, mas ninguém é — e ainda bem. Mas o que me deixa descansada e muito feliz é que há sempre uma preocupação muito grande que tenho quando vou escolher letras e poemas para cantar. É muito importante para mim que sejam intemporais, que não se fixem num momento ou num período. Se não as letras ficariam muito datadas e daqui a uns anos já não faria muito sentido as palavras serem tocadas e cantadas. Por exemplo no primeiro disco tenho ali a ‘Casa da Mariquinhas’ que é sobre um período fechado, em que falava da crise que tivemos em 2011 e 2012…

Da crise imobiliária, também…
… Exatamente. Mas naquela altura fazia sentido e fará sempre sentido, porque haverá sempre casas a cair de podre. Fico muito contente por perceber que ao longo da minha carreira todas as coisas que canto fazem sentido hoje, em 2021 e farão sentido também em 2050. São coisas tão abrangentes. Isso deixa-me descansada porque sei que daqui a dez anos continuarei a querer dizer o que digo agora. Se calhar já terei vivido outras coisas e farão sentido outro tipo de histórias que não as que tenho hoje na minha cabeça, que já vivi e que já experienciei. Mas sinto-me descansada, sei que tenho coisas a dizer e sei que quero dizer estas coisas.

Perguntava-lhe sobre o regresso ao disco porque julgo que a maior parte das pessoas que resistiram a esta pandemia passaram por um período de desesperança. Estava a tentar perceber como e em que fase é que voltou a encontrar alguma esperança.
Olha, foi em janeiro deste ano… mas na verdade não desesperei nada. Tentei ir fazendo a minha rotina normal: acordar cedo, tomar o meu banho, vestir-me como se fosse para ir para um lugar qualquer. Claro, tive os meus dias mais escuros e de ficar de fato de treino o dia inteiro mas foram muito poucos.

É muito importante para a minha saúde mental, para o meu coco [cérebro] estar fino, ter esse ritual de me vestir como se fosse para algum sítio, preparar-me para ir trabalhar. Mas em janeiro deste ano senti-me mais livre, senti que as coisas estavam mais… por isso é que este segundo confinamento me bateu mais, confesso. Foi mais difícil, não estava à espera que de repente a coisa ficasse tão grave como ficou. Por outro lado, já estava a tratar da saída do disco, estava ocupada e as coisas tinham de se fazer.

“Quando vou gravar um disco não tenho preocupação — nenhuma! — de: ai, tenho de cantar a letra daquela pessoa, tenho de interpretar a música daquela pessoa. Soube sempre que não queria fazer originais só para fazer originais. Agora durante a minha carreira fui sempre ouvindo essa questão: 'ai, tens de ter os teus originais', 'ai, tens de criar o teu repertório'.”

Num comunicado oficial em que o disco era anunciado, lia-se: “AuRora é também o primeiro disco em que Gisela João apresenta essencialmente canções originais e revela os seus dotes de letrista e compositora”. Já vamos a canções concretas, mas teve sempre vontade de escrever e compor e de cantar originais?
Quando vou gravar um disco não tenho preocupação — nenhuma! — de: ai, eu tenho de cantar a letra daquela pessoa, tenho de interpretar a música daquela pessoa. Tenho muito respeito pelas pessoas que me oferecem coisas que fazem [letras e canções] porque tal como cantar para mim é uma coisa muito importante, para eles escrever ou compor é onde põem o amor todo que têm. Mas não posso ter amarras de lado nenhum.

Ter de cantar originais seria uma amarra. Nunca a tive. Nunca tive essa preocupação até porque acho que reinterpretar-se uma coisa que é antiga é uma homenagem, é uma coisa bonita de se fazer, é a prova que a arte não se fecha só num tempo e que vive, que tem montes de interpretações. Não acho que isso seja em nada menor do que ter originais. Sei muito bem aquilo que não quero, às vezes não sei muito bem é aquilo que quero. Mas soube sempre que não queria fazer originais só para fazer originais. Agora, durante a minha carreira fui sempre ouvindo essa questão: “ai, tens de ter os teus originais”, “ai, tens de criar o teu repertório”.

Pressões constantes?
Sempre. É como aquela coisa do “já namoras?”, do “ai, tens de ter um namorado”, de “então e quando é casas?”, do “então e quando é que têm o primeiro filho”, de “então e quando é que vem o segundo filho?”. É um bocado o mesmo. Agora com este disco comecei a perceber uma coisa com o Justin Stanton, que é o meu namorado e que foi super importante no período inicial de escolha de repertório — foi uma injeção de adrenalina e de confiança em mim própria!. Ele dizia-me: “Mas tu fazes músicas”. Eu dizia-lhe que não sabia escrever, ele dizia-me: “Sabes, tu fazes mais músicas do que muita gente que conheço que escreve muita música e estudou música a vida inteira”. E disse-me: quero ouvir mais. Porque eu tinha algumas coisas. Ensinou-me a usar um programa de computador para ligar ao teclado e para gravarmos bem. Deu-me ferramentas, que é a coisa mais fixe que alguém te pode dar na vida: ferramentas para tu sozinho saberes fazer as coisas.

Comecei a ir gravando porque ele disse-me: tens de gravar sempre tudo; se estás a cantar uma coisa, grava. Comecei a fazer isso. Tinha uma lista grande de músicas possíveis de se gravar, entre fados tradicionais e coisas novas que me enviaram. Estou sempre a receber músicas e letras. Comecei a pôr essas também na lista. Ia-lhe mostrando mais coisas, íamos trabalhando. Quando cheguei a estúdio acaba por haver sempre uma seleção natural quando se está a gravar e quando se está a trabalhar as músicas em conjunto, a tocar. As minhas acabaram por fazer parte do alinhamento e fiquei toda feliz.

"Para mim o fado está muito para além da música e da guitarra. Para mim o fado está na forma de estar na vida. Há pessoas que não cantam e são fadistas na sua forma de viver. Era muito importante para mim conseguir traduzir essa forma muito portuguesa de viver e de sentir as coisas. Não sou purista mas é importante para mim. Quando canto sinto que é uma coisa nossa, que é uma coisa... minha."

O Justin Stanton e o Michael League têm uma presença grande no disco, não só na produção mas nos arranjos das canções. Para si foi importante que eles percebessem a linguagem do fado? Ou a música é tão universal que isso não era especialmente relevante?
A minha música é completamente universal. Mas o fado tem a carga de ser a identidade do meu país. Portanto era importantíssimo. Foram meses de vai e volta, mail para aqui e mail para ali, conversas e traduções múltiplas. Por exemplo, traduzi cada letra [de português para inglês] em quatro histórias diferentes que sentia que aquela letra podia abarcar, para que o Mike me conhecesse melhor. Já nos conhecemos há uns anos, mas ele tem de perceber a forma como vivo a vida, como vejo e sinto as coisas, porque para mim o fado está muito para além da música e da guitarra. Para mim o fado está na forma de estar na vida. Há pessoas que não cantam e são fadistas na sua forma de viver. Era muito importante para mim conseguir traduzir essa forma muito portuguesa de viver e de sentir as coisas porque de outra forma não ia funcionar. Não gosto de dizer que sou uma fadista, sou uma artista, faço muita coisa.

Até fora da música…
Sim. Mas se canto com base no fado é importante para mim que seja respeitado. Não sou purista nem nada que se pareça, atenção, mas é importante para mim sentir que está ali alguma coisa que sinto. Nem sei explicar muito bem o que é, mas quando canto sinto que é uma coisa nossa, que é uma coisa… minha.

Rodolfo Magalhães

“Sou minhota. A mulher como desgraçadinha? Nos meus discos não há isso”

Há uma série de canções e fados neste disco que me parecem ter uma coisa: não é bem uma poesia de desencontro, é mais uma poesia de desprendimento.
Exatamente.

É notório em canções como a “Já Não Choro por Ti” ou a “Vai”, entre outras. Como se a Gisela João cantasse pela recusa de dependências, por um soltar de amarras que não são saudáveis nem benéficas. Aprender isso é uma coisa que os anos e já agora as experiências, os amores e os desamores ensinam?
Como dizia no outro dia um amigo meu, nem toda a gente aprende, não é? Ensinam quem quer aprender, quem está atento, quem está disponível para se ouvir e para perceber o que é que lhe aconteceu, porque é que lhe aconteceu. Aí aprendes sempre alguma coisa. Essas canções em específico têm claramente isso. Não sei se sabes a história da “Já Não Choro por Ti”.

Não sei, não.
O Jorge Cruz [ex-Diabo na Cruz] deu-me essa música. É uma história muito castiça. Há uns valentes anos, quando saiu o meu primeiro disco, em 2013, a primeira faixa era a “Madrugada Sem Sono”. Essa canção tem uma pessoa que eu imagino estar de madrugada a olhar pela janela de uma casa velha, uma pessoa já com alguma idade, que está a fumar um cigarro e a viajar sobre memórias. Está ali a pensar numa pessoa, num amor que viveu, e está a dizer: vivi isto, fiz aquilo. Está a viajar nas suas memórias. Até que chega ao fim da letra e diz: “madrugada sem sono / mordi meus brancos lençóis / e tive saudades, chorei”. Ainda continua a pensar naquela pessoa, continua a ter aquela memória.

Na altura, havia uma pessoa que trabalhava comigo que também trabalhava com o Jorge. Dizia-me que eu e o Jorge tínhamos de combinar um café porque ele tinha umas letras boas para mim, umas músicas. Isso nunca aconteceu, por causa das digressões… bem, porque não tinha de acontecer. Passados uns anos ele enviou-me algumas músicas, mas nunca me enviou esta. Até que combinei com ele um encontro lá em casa antes de gravar o disco. Ele trazia umas folhas com as músicas que já me tinha enviado e trazia uma folhinha à parte. Disse-me sobre essa folhinha: tenho aqui esta música que nunca te dei, queria dar-te em mãos porque queria explicar-te a história. [Fala já com a voz de Jorge Cruz] “Quando te ouvi pela primeira vez, ouvia montes de gente falar na Gisela João, e pensei: isto tem muito hype, deixa-me lá ouvir”. Disse-me que quando ouviu aquele tema, aquilo bateu-lhe, sentiu que já tinha vivido o que estava a ouvir, que conhecia aquele sentimento, sabia o que era. E que também sabia escrever sobre aquilo porque tinha-o vivido.

Tal qual o que a Gisela sentiu quando ouviu o “Que Deus Me Perdoe” cantado pela Amália Rodrigues, há muitos anos.
Exatamente, exatamente! O Jorge Cruz disse-me que pensou assim: agora vou escrever uma continuação, uma continuação daquilo [daquela história da “Madrugada Sem Sono”] porque de facto foi algo que ele viveu, tal como eu vivi, como toda a gente já terá vivido. Foi assim que a “Já Não Choro Por Ti” chegou até mim. Acho que há ali uma coisa curiosa também: no fim, se reparares, ela diz: [começa a cantar] “Já não choro / por ti”. Já não chora? Será? Será que já não chora mesmo? Ou será que ainda chora e não diz a ninguém? Também adoro estas coisas dúbias, deixar-se as coisas em aberto. Se pensarmos bem, podes já ter andado meio triste pelos cantos por causa de uma ex-namorada, ou de um ex-engate ou lá o que seja — e depois isso pode ter passado. Mas tu não te esqueces que viveste aquilo e não esqueces que passaste por momentos fixes, bons. As coisas são maioritariamente boas, acho isso. É partilha. Acho engraçado ela cantar isso no final. Hum…

Pode ser negação?
Sim, aquela coisa de “já passou” mas aquilo ainda ter ficado ali. A “Vai” tem uma contenção que acho muito bonita e muito sinal de amadurecimento. Há ali uma relação que acabou, que não funciona mas não é uma gritaria, não há nenhum choro, não há drama, nada. Há só um “vai, vai porque já não funciona”. Há amor ainda, não quer dizer que já não haja.

"A coisa da mulher como desgraçadinha, a mulher que sem ele nunca mais... que vai vestir de preto para o resto da vida? Ah, puta que pariu. Nem pensar, nem pensar, não. Nos meus discos não há isso."

Há uma imagem que se associa, justa ou injustamente, à mulher no fado, à personagem feminina nos fados: a mulher que tem uma aura trágica, de dependência. Um bocado aquela coisa extrema de “sem ti eu não vivo”.
Que seca, não é? Pronto, este mundo… isto é feito para os homens, não é? Vocês nascem com uma pichota e já têm montes de coisas.

Se calhar essa imagem também se explica por as letras de fado terem sido escritas maioritariamente por homens…
Ah, pois. Quantas mulheres não houve a escrever maravilhosamente bem e que não tiveram hipótese? Agora essa coisa da mulher como desgraçadinha, a mulher que sem ele nunca mais… que vai vestir de preto para o resto da vida? Ah, puta que pariu. Nem pensar, nem pensar, não. Nos meus discos não há isso.

Por ser como é, o tipo de mulher que é, não lhe apetecia cantar estas histórias de mulheres mais dependentes?
Dependentes? A mim? Não me apetecia nunca! Nunca cantei uma coisa assim ou com esse peso. Na verdade até há coisas muito antigas que gosto de cantar que quem quiser. À primeira instância a pessoa pode sentir que é esse o peso que tem mas não pode achar que a poesia daquilo é assim tão simples.

Sou minhota e cresci com mulheres muito fortes ao meu lado. As mulheres minhotas têm uma personalidade forte, vão para a feira, saem de manhã cedo para levar os miúdos à escola, deixam o almoço pronto, é tudo muito… é tudo muito! Toda a minha vida tive sempre muitas mulheres à minha volta. Muitas amigas, também. Até a trabalhar comigo tenho muitas mulheres. Adoro ser mulher. Não tenho nada contra os homens, nada que se pareça, não é nada esse o meu discurso. Acho é que nós somos tão maravilhosas que tenho mesmo muito orgulho em ser mulher. E este disco acaba por ser uma homenagem às mulheres e é todo muito inspirado nesta força que as mulheres têm de se renovar.

A “Louca” tem a ver com isso?
Totalmente, totalmente. Foi logo o primeiro [single] precisamente com essa mensagem forte: tu chamas-me louca mas não sabes nada de mim.

Sente que tem hoje um canto mais experiente? Na maneira como diz as palavras, como interpreta os textos. Nota os anos e a experiência na voz? Ou acha que a forma de interpretar não mudou especialmente?
Houve uma coisa que pessoas diferentes apontaram ao ouvir este disco. Disseram-me que notavam alguma contenção no bom sentido. Isso foi-me dito por pessoas na minha agência — as primeiras que ouviram — e por alguns amigos. Pessoas que não falavam umas com as outras. Fiquei a pensar: que graça! Porque não tenho sangue de barata, sou muito elétrica e muito dinâmica. Acho que quando gravei o meu disco interpretava como me sentia e continuou a ser assim. Canto com aquilo que tenho, com aquilo que sou, com as histórias que já vivi, com a forma como sinto as coisas. Acho que isso [a mudança na forma de cantar] estará relacionado com a idade, com aprender, com crescer. Olha que fixe!

"Quando ouvi a 'Que Deus Me Perdoe' [Amália], e gostava de cantar aquilo, percebi que de facto adorava cantar porque quando cantava já não chorava. Quando cantava o meu mundo ficava em pausa. Entro noutro sítio, noutro limbo. Às vezes depois dos concertos as pessoas dizem-me: eu estava mesmo ali à frente, não me viste? Meu, eu não vejo nada, até posso estar a olhar mas não vejo nada. Porque não estou ali, estou noutro lugar — que não sei muito bem qual é."

Logo no primeiro tema, canta: “Quando eu cantava / já não chorava”. A música, o fado, o canto, serviram-lhe regularmente como substituto dessa forma de expressar emoção — o choro?
Totalmente. Essa frase sou eu que escrevo, o resto da canção é um poema da Capicua. Fica como abertura no disco porque sou eu a explicar o que é que me fez apaixonar por isto. Quando eu ouvi a “Que Deus Me Perdoe” [Amália], e gostava de cantar aquilo, percebi que de facto adorava cantar porque quando cantava já não chorava. Quando cantava o meu mundo ficava em pausa. Entro noutro sítio, noutro limbo. Às vezes, depois dos concertos, as pessoas dizem-me: eu estava mesmo ali à frente, não me viste? Meu, eu não vejo nada, até posso estar a olhar mas não vejo nada. Porque não estou ali, estou noutro lugar — que não sei muito bem qual é. “Quando eu cantava / já não chorava” continua a ser aquilo que sinto, por isso é que ficou na abertura do disco.

Houve ao longo destes anos algum momento concreto a cantar em que tenha sentido isso mais intensamente — que a música ali servia para não soçobrar?
Ai, todos. É por isso que às vezes fico puta quando me pedem para cantar e não me apetece.

Como se fosse só pôr uma moedinha na jukebox e já está?
Pois. Ou então naqueles dias em que estou com o período, quando estou com o período fico de rastos e tenho um concerto…

Apetece-lhe tudo menos cantar?
É muito sério, é muito sério para mim. Por isso é que digo às vezes que prefiro voltar a trabalhar numa loja de roupa, fazer outra coisa qualquer, do que estar assim exposta a cantar. Exposta interiormente, percebes? E não estar a fazer jus àquilo que quero dizer, que quero passar.

Rodolfo Magalhães

“Em 2017 tive um problema de saúde muito grave, ia batendo a bota. Fiquei um bocadinho diferente”

A pandemia serviu para rever algumas coisas, abrandar de alguma maneira esse ritmo de canto constante e concertos permanentes? Já disse várias vezes que trabalha de forma muito obsessiva, que acontece passar anos sem tirar férias… passou do 80, com concertos a toda a hora e a saltitar de sítio para sítio, para o 8.
O meu segundo disco saiu em 2016 e em 2017 tive um problema de saúde muito grave, ia batendo a bota. A partir daí noto que fiquei um bocadinho diferente em relação a isso de parar. Tenho mais calma. Acho que nem foi muito a pandemia [que fez repensar], foi mais esse momento. Continuo a ter os meus concertos. Mas no ano passado toda a gente parou.

Esse susto muito grande repercutiu-se de algum modo na escolha de repertório? Ou só no ritmo de vida?
No ritmo de vida. Até aí a vida estava a viver-me, não era eu que estava a viver a vida. A partir daí comecei a tentar, pelo menos — porque a vida não dá hipótese, está sempre a viver-nos —, ter mais atenção, ser eu a viver a vida em vez de ser ela a viver-me a mim. E isso tem repercussões em muitas coisas, em variadíssimas coisas. Por exemplo, assumir que não quero fazer certas coisas.

Há uma coisa que para mim é muito importante em tudo, mas na música e na arte que faço mais ainda: critério. Não vale tudo, não pode valer tudo. Isso foi sempre uma coisa muito importante para mim. Mas a partir desse momento percebi que era importante aprender a dizer não. É muito difícil e continua a sê-lo. Por exemplo, marcam-me um concerto num sítio qualquer. É claro que quero fazer concertos, mas se for uma coisa num sítio que não goste, em que sinta que não vai ser possível criar ali o que quero, prefiro não fazer, prefiro dizer não e assumir: “Não quero, a responsabilidade é minha, não é vossa, fico muito feliz que trabalhem para fazermos coisas mas aqui sou eu”. Isso foi uma das coisas que ganhei a partir da 2017 e acho que foi uma das coisas que a pandemia ensinou a muita gente. Muitas vezes dás por ti a fazer um monte de coisas, depois paras, olhas para trás e pensas: porra, estive aqui tantos dias a bater naquela tecla, a fazer aquilo. E fico frustrada porque não valeu a pena, porque o dinheiro não é tudo na vida — nem nada que se pareça.

O hype inicial: “Não foi felicidade nenhuma no início, nem alegria imensa. Foi precisamente o contrário, foi: "E agora?” Quando saiu o meu primeiro disco e essas coisas começaram a acontecer pensei: e agora, o que é que vou fazer? Para o meu segundo disco tive crises de ansiedade muito fortes.”

Estava a falar há pouco do seu primeiro disco, quando comentava a ligação com o Jorge Cuz. Esse disco gerou um grande fascínio por si. Houve um texto em particular do Miguel Esteves Cardoso que a colocou, de certo modo, no patamar da Amália. Imagino que isso seja num primeiro momento uma felicidade enorme, um grande orgulho. Mas alguma vez deu por si a pensar mais tarde: “Caramba, o que está a acontecer, será que vou passar a ser uma ‘figura’?”
Não foi felicidade nenhuma no início, nem alegria imensa.

Não?
Não. Foi precisamente o contrário, foi: “F***-** e agora?” Porque estás ali, ninguém sabe quem tu és. Imagina que és conhecido por teres sempre umas sapatilhas espetaculares, que és aquele gajo com alta pinta, que até dá palestras sobre isso e fala do assunto. Se ninguém te conhece, vais ali descansadinho. Se saíste de casa em chinelos para ir pôr o lixo e fumar um cigarro porque estavas farto de estar em casa, ninguém te vai dizer nada. Mas se tu és o gajo que é conhecido por ter umas sapatilhas fixes e que fala de sapatilhas, aí as pessoas conhecem-te, já têm uma expectativa, têm uma imagem tua, esperam algo de ti.

Quando saiu o meu primeiro disco e essas coisas começaram a acontecer pensei: e agora, o que é que vou fazer? Por isso é que para o meu segundo disco tive crises de ansiedade muito fortes. Era muita gente a dizer-me: ah, mas é agora que vais fazer música eletrónica? Porque nunca escondi que gosto de música eletrónica. Ou: “é agora que vais cantar originais? Vê lá, tens de ter originais”. Ou: “Olha lá que as pessoas estão à espera, tem de ser melhor do que o primeiro, tem de ser não sei quê”. Fui aprendendo a lidar com isso. Perguntei-me: como é que gravei o meu primeiro disco, quando ninguém sabia quem eu era? Fui gravar aquilo que gostava e que queria mostrar às pessoas. Foi o que fiz a seguir e agora também, sempre.

Falava na música eletrónica. Quando saiu o primeiro single deste disco escreveu-se que já não se ouvia música nova da Gisela João há cinco anos. Não é verdade, pelo meio houve uma canção com o Xinobi. Tentou incorporar alguma coisa desse universo neste álbum?
Este disco traz a eletrónica que acho necessária para caber neste género musical. Os sintetizadores estão aí por todo o lado, por todas as músicas, nos sons ambiente. Cresci a ouvir o Thom Yorke e o Plastikman e a Bjork e o Frankie Knuckles. E neste disco muitas vezes penso: adorava que o Thom Yorke estivesse aqui a fazer alguma coisa comigo, porque acho que se fizesse alguma coisa aqui teria feito desta forma, também. Não é preciso pores eletrónica ali a rasgar e a comer os outros instrumentos todos para provar: ai, fiz aqui uma mudança.

“Isto agora é moderno!”
“Isto é moderno”, é isso! Odeio “ser moderna” só para “ser moderna”. Não, as coisas estão lá mas dentro do que é o meu entendimento do que é a música eletrónica neste contexto: o necessário para se juntar aqui.

Gisela João, despida de preconceitos

“Sabes quantas vezes me convidaram para ir a festas onde estava a Madonna? Nunca fui!”

Queria puxar a fita um bocadinho atrás e perguntar-lhe uma coisa sobre o passado: lembra-se da primeira vez que cantou fado em público em Barcelos, e mais tarde em Lisboa, já depois de ter vivido no Porto?
Em Barcelos, cantar em público pela primeira vez foi na mini-Chuva de Estrelas, que era organizada pela Sãozinha no Círculo Católico Barcelense.

Mas ganhavam sempre outros, não era?
Eu nunca ganhei. Nunca ganhei, nem pensar! Alguma vez! [risos] Fado? Ó meu Deus. Nos anos 90, em Barcelos, não se ouvia fado como se ouve agora.

Há tempos li uma entrevista do Camané em que ele dizia: “Ouvia rock muito alto e ouvia fado baixinho por causa do preconceito”. Ele é de outra geração mas isso provavelmente manteve-se a seguir. Ainda se manterá hoje, apesar da maior popularidade do fado?
Agora não, tornou-se cool ouvir fado. Tornou-se cool bordar, também.

Na altura era quase como se fosse punk, contra-cultural?
As pessoas diziam: “A sério, ouves música de velhos?! Não pode”. Eu cantava no mini-Chuva de Estrelas, tinha  nove anos ou dez.

E em Lisboa, qual foi a primeira vez a cantar em público?
Vim para Lisboa cantar no Sr. Vinho, mas lembro-me que a primeira vez que cantei em Lisboa foi na Mesa de Frades. Ainda nem vivia cá, nem sequer sonhava em viver cá. Foi aí que conheci o João Monge [autor de uma das letras deste novo disco], foi aí que conheci a Paula Moura Pinheiro. Lembro-me que ela estava lá e eu adorava-a. Ela tinha um programa na RTP2 que eu via sempre. Foi sempre uma mulher muito bonita e eu adoro mulheres bonitas. Lembro-me que fui ao pé dela dizer-lhe: gosto muito de si. E ela respondeu-me: obrigada, também gosto muito de ti, cantas tão bem! Fui logo contar às minhas amigas. E isso foi na Mesa de Frades.

Estava nervosa nessa noite?
Super, mega! Acho que a minha vida é tipo um conto de fadas. Acho mesmo, mesmo. As coisas têm-me acontecido, vêm até mim. Parece que tenho um íman. Ontem a minha melhor amiga dizia-me assim: Gisela, tu tens um íman. Esta minha amiga — o namorado dela é ator e eles são mais velhos do que eu — quando vivia lá no Porto,  eles diziam-me: “Tens de ir para Lisboa, Gisela”. Dizia-me ele principalmente, porque ia a Lisboa fazer trabalhos. E insistia: tu tens de ir para Lisboa, tens de ir para Lisboa.

Era preciso sair do Porto, que é a segunda maior cidade do país?
Continua a ser, deixem-se de merdas. E continua a ser em qualquer área! Quando eles me diziam aquilo eu revirava sempre os olhos, “ok, tá bem, mas vou para Lisboa fazer o quê? Então estão lá os cantores todos, maravilhosos, famosos, o que é que vou para lá fazer?” Tanto assim era que quando vim para Lisboa foi a minha amiga Luísa que me inscreveu num anúncio da RTP2, que tinha a voz do Carlos do Carmo e que dizia: se és do sexo feminino, tens até 30 anos e gostas de cantar o fado, inscreve-te e vem fazer um casting”. A Luísa inscreveu-me. Foi um projeto em que estive e que nunca saiu, mas foi por causa desse projeto que vim para Lisboa.

Que projeto era esse?
Prefiro não falar porque saiu depois com outra artista. Saí e ela fez. Não é elegante estar a falar, gosto muito dela.

"Nunca tenho por garantido isto. Às vezes nem me apetece cantar. Não quero ter a amarra de depender disto para viver, para comer. Faço muitas coisas, tenho outras coisas paralelas. Isto é muito sério e quero ter a elasticidade possível para dizer: não quero dar aquela entrevista, não quero fazer cinco concertos seguidos."

Barcelos, Porto, Lisboa, Sr. Vinho, primeiro disco. Lembra-se de algum momento neste percurso em que a ficha tenha caído, em que tenha pensado: ok, posso mesmo levar a vida a cantar?
Ai, nunca, não. Mesmo no dias de hoje, [pausa] nunca tenho por garantido isto, sabes? Porque [outra pausa] às vezes nem me apetece cantar. No outro dia estava a telefonar ao meu manager a dizer: “Olha, tens aí trabalho na agência? Eu faço, telefono para as pessoas, digo que sou outra pessoa”. Nunca tenho isto por garantido, desde logo porque não quero ter a amarra de depender disto para viver, para comer. Faço muitas coisas, tenho outras coisas paralelas. Isto é muito sério. E quero ter a elasticidade possível para me dizerem “conseguimos uma entrevista com este ou aquele” e poder dizer que não, que não quero.

Quero ter a elasticidade de poder dizer: não, não quero fazer cinco concertos seguidos, só quero fazer um. Não tenho isto como garantido. Quando vim viver para Lisboa para cantar no Sr. Vinho foi quando comecei a viver só da música. Tinha três noites a cantar: segunda, quarta e sexta. E depois passei a ter todos os dias da semana tirando uma folga, que era à quarta. E fiquei toda contente porque ia ganhar muito mais dinheiro. Nos primeiros tempos comia latas de atum e fui trabalhar para a Zara da Rua Augusta. Fui porque quis! Lembro-me de uma vez estar ao telefone a falar com a minha mãe e com a minha avó. E de dizer à minha avó: iiiih, agora canto todos os dias. E a minha avó: boa, boa, mas olha e um trabalhinho a sério? Não sei se eu própria não tenho resquícios dessa mentalidade cá atrás, escondida na minha cabeça, que se reflete nisto de nunca tomar por garantido.

Mas chega de malas e bagagens a Lisboa para cantar no Sr. Vinho. As pessoas aqui do meio do fado… sentiu-se logo bem acolhida?
Olha, há uma coisa que tenho na vida: não tenho interesse em conquistar ninguém. Sou como sou, faço as coisas que gosto de fazer, trato bem as pessoas. Não sou nada de furar, de dizer: têm de me ouvir. Pff, nem pensar! Até faço o oposto: quando as pessoas me dizem para ir cantar para me mostrar, para os outros me ouvirem, digo que não vou. Sabes quantas vezes é que me convidaram para ir a festas onde estava a Madonna? “Vai, vai, porque é uma oportunidade!” Nunca, nunca fui! Se tivesse de acontecer, acontecia. Isto parecia-me um bocado aquela coisa de: olha, tenho aqui uma amiga, ela vai ficar mesmo bem contigo. Vai correr super bem [tom irónico], começando assim… As coisas quando é para acontecer acontecem.

Quando vim para cá fui muito bem acolhida pela Maria da Fé, pelo Hélder Moutinho, o Carlos Silva, a Bela… houve pessoas mesmo muito importantes. Houve dificuldades como há com qualquer pessoa que muda para uma cidade maior. Olha, lembro-me que vivia na Mouraria, mesmo ali ao pé do Martim Moniz, no Largo do Terreirinho. Um dia pensei: vou dar uma volta. Andei por ali, pelo Chiado, e quando queria ir para casa estava na Praça da Figueira a telefonar à minha amiga do Porto a chorar e a dizer ‘estou perdida, não sei ir para casa’. Estava na Praça da Figueira, percebes? [risos] Essas dificuldades fazem parte de uma pessoa sair da sua zona de conforto. Não tinha os meus amigos e a minha família, não tinha o trabalho que costumava ter, tinha uma casa super fixe no Porto e deixei de ter.

Mas não sentiu resistências em Lisboa?
Não. Ouvi algumas bocas, aquelas bocas: “Ah, vêm por aí abaixo a escorregar por uma tábua e pensam que já sabem tudo”. Até hoje prefiro pensar que não eram para mim, mas claro eram para mim [risos], porque era a única pessoa nesses momentos que ali estava. Prefiro é pensar que não eram, até porque de um modo geral acho que fui muito bem recebida.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Teve de aprender a ser delicodoce na linguagem? Aqui as pessoas falam com mais rotundas, mais floreados.
Ai pá, mais ou menos! Não aguento! Durante um dia ou dois posso tentar mas não dá. Nem é um dia ou dois, é meia hora! Tive algumas situações engraçadas e ainda vou tendo muitas. Posso praguejar, “f***-** c******”, e a pessoa pensa que estou chateada, que levei a mal alguma coisa. “Estás chateada?” Não estou nada chateada!

Ontem uma amiga estava a contar-me uma história que lhe aconteceu e estava a pensar: oh pá, isso é o meu dia-a-dia aqui. Ela vem cá volta e meia e estava a falar com a dona da escola onde ela dá umas aulas. Essa pessoa fazia-lhe perguntas e ela respondia: sim, não, sim, não. E de repente a rapariga perguntou-lhe: estás chateada, passa-se alguma coisa? Ela lá respondeu: não, porquê? “Ah e tal, não sei, estás um bocado seca”. Então não é sim ou não? Queres que me ponha aqui a filosofar? [risos] Aqui também há outra coisa que é: muitos beijinhos e mimimis e não sei quê. Oh pá, se é para trabalhar é para trabalhar! É ou não é, sim ou não, horas — é o que quero saber. [ri-se]

Na maior parte das vezes apetece-me cantar quando não há nada preparado. A Maria da Fé, que é uma pessoa por quem tenho um carinho e uma admiração imensa, dizia-me muitas vezes (e diz): o fado não acontece quando a gente quer, acontece quando ele quer. Vou ainda mais longe, acho que é assim em toda a arte. E na maior parte das vezes até acontece quando a gente não tem nada planeado."

Deu uma entrevista há uns tempos onde lhe perguntavam se ainda cantava em casas de fados. Respondeu: “Não”. O que é que esse tipo de experiência e de vida tem de bom e de complicado? Seja o ambiente, sejam os horários. Há de ter coisas boas e outras menos boas.
É assim, eu não canto porque não tenho tempo. Mas fico muito feliz de não depender disso, confesso. É uma escola incrível. Agora tenho um disco novo e ainda hoje de manhã estava a ensaiar sozinha, a cantar a “Já Não Choro por Ti” para a letra ficar sempre presente. E depois ensaio com os músicos. Mas isso é completamente diferente de ensaiar com o público à frente e a casa de fados tem isso.

Imagina, estás a aprender um fado em casa. Decoras a letra, chegas ali [à casa de fados] e experimentas cantar num tom. Se te esqueces da letra, fazes um sinal e param de tocar. É basicamente um ensaio diário. Por outro lado, entendo o lado do dono da casa de fados: se tens uma casa de fados tens um espetáculo montado porque cada fadista faz ali o seu papel, um canta umas coisas mais alegres, outro umas coisas mais intensas, outro umas coisas dramáticas. Aquilo no seu todo conta uma história. Mas para mim chegar a uma casa de fados e cantar todos os dias por obrigação ou cantar as mesmas quatro ou oito músicas todos os dias é completamente castrador. A dado momento já chegas ali e é carregar num botão da tecla, hoje assim, amanhã outra vez assim, vamos embora e está feito.

Voltamos à jukebox…
Uma vez numa entrevista do Carlos Paredes, alguém lhe perguntava porque é que ele continuava a ser arquivista, porque é que continuava a ter outro trabalho, porque não vivia só da música. E ele dizia: a música é uma coisa muito séria para se viver dela. Eu assino por baixo, assino mesmo. Tenho saudades das casas de fado, sempre que posso vou, mas não tenho saudades de cantar regularmente nas casas de fados por causa disso.

"Há uns três fins-de-semana houve um sábado medonho, estava um dia horrível. Estava no sofá sentada, estávamos a ver um filme e o Justin diz-me: mas tu não estás bem. "Não, vou lá dentro, preciso de partir um prato". E parti dois pratos e disse-lhe: anda tocar por favor, anda tocar para mim que eu preciso de cantar. Ele veio para o piano e eu cantei para aí dez vezes a mesma música, sei lá. Estava a precisar de cantar e estava a precisar de cantar aquela música!"

Qual era o cenário ideal? Cantar só quando lhe…
[interrompe] Quando me apetecesse. Na maior parte das vezes apetece-me cantar quando não há nada preparado. A Maria da Fé é uma pessoa por quem tenho um carinho e uma admiração imensa. E foi uma pessoa que me ensinou muita coisa — nem passa propriamente pelo cantar, passa pelo estar na vida e por entender as coisas. É uma pessoa que de repente diz-te coisas do género: a junção de uma boa letra com uma música muito boa nem sempre dá bom resultado, pode estragar as duas coisas. São coisas em que se calhar não paramos para pensar. E a Maria dizia-me muitas vezes, e diz: o fado não acontece quando a gente quer, acontece quando ele quer. Vou ainda mais longe, acho que é assim em toda a arte. A matemática é uma coisa, carregas numa tecla do computador, somas dois mais dois e dá quatro, é exato. Isto não é exato. Por isso é que o ser humano é tão apaixonado pelas artes e fica tão inebriado. De facto isto não acontece quando a gente quer. E na maior parte das vezes até acontece quando a gente não tem nada planeado. Muitas vezes digo a brincar: porra, porque é que não tenho tudo aqui montado para gravar para o disco quando preciso?

É um impulso forte? Pensa: é agora, tem de ser agora?
Sim. Agora, agora, é agora que me apetece cantar! Há uns três fins de semana houve um sábado medonho, parecia que era o fim do mundo. O céu estava cinzento, horrível, Lisboa cheia de nevoeiro como nunca tem, a cair chuva miudinha. Estava um dia horrível. Estava no sofá sentada, estávamos a ver um filme e o Justin diz-me: mas tu não estás bem. “Não, vou lá dentro, preciso de partir um prato”. E parti dois pratos e disse-lhe: anda tocar por favor, anda tocar para mim que eu preciso de cantar. Ele veio para o piano e eu cantei para aí dez vezes a mesma música, sei lá. Estava a precisar de cantar e estava a precisar de cantar aquela música! E é nesses momentos que penso: ai, porque é que não tenho aqui um estúdio montado?!

"Conheci o Carlos do Carmo por volta de 2007. Uma vez vim a Lisboa encontrar um amigo meu, o Ivan, e ele levou-me ao Clube de Fado. Conheci o Mário Pacheco, a Sara Pereira do Museu do Fado e conheci o Carlos do Carmo. Lembro-me que toda a gente cantou e depois eles puxaram-me para eu cantar. "Vai lá". Então fui cantar. Depois no fim o Mário Pacheco estava a dizer ao Carlos do Carmo para ele cantar e ele disse: 'Depois desta menina cantar, já não há mais fado'."

Este 2021 é um ano que poderemos lembrar futuramente como o ano em que a Gisela João lança este seu terceiro disco. Mas é também um ano em que o fado perdeu um dos seus nomes maiores: Carlos do Carmo. Lembra-se de conhecer o Carlos do Carmo? E que contacto teve com ele ao longo destes anos?
Nunca tive assim muito contacto com o Carlos do Carmo mas foi sempre uma figura de referência. Aliás quando ainda estava na casa de fados em Barcelos e depois no Porto, cantava sempre — fazia parte do meu repertório — o “Duas Lágrimas de Orvalho” [fado composto por Pedro Rodrigues e João Linhares Barbosa, que Carlos do Carmo interpretou].

Conheci-o mais tarde em 2007, nas primeiras vezes que vim a Lisboa. Uma vez vim encontrar um amigo meu, o Ivan, e ele levou-me ao Clube de Fado. Conheci o Mário Pacheco, a Sara Pereira do Museu do Fado e conheci o Carlos do Carmo. Lembro-me que toda a gente cantou e depois eles puxaram-me para eu cantar. “Vai lá”. Então fui cantar. Depois no fim o Mário Pacheco estava a dizer ao Carlos do Carmo para ele cantar e ele disse: “Depois desta menina cantar, já não há mais fado” [sorri]. Lembro-me que vim de carro porque ia apanhar um voo [a seguir] para ir para a Holanda e quando voltei montes de pessoas sabiam que isso tinha acontecido. Pensei: ó, a sério, é assim tão importante? [ri-se] É, é importante, claro que é importante. Depois sempre que fui encontrando o Carlos — em alguns concertos dele que fui ver —, no fim ia-lhe sempre dar um beijinho. Ou num restaurante, numa noite de fados, ele lá aparecia com a Judite [mulher]. Sempre uma pessoa impecável, altamente inspirador para qualquer pessoa que goste de fado e de música em geral.

Chegaram a cantar juntos alguma vez?
Não, nunca.

Ele tem um disco em que faz muitos duetos com fadistas mais novos, mas é de 2013 — o ano em que a Gisela lança o seu primeiro disco. Por um lado pode ser uma pena, por outro pode ser uma boa prova da saúde do fado de 2013 em diante.
Adorava. É uma daquelas coisas que tenho pena: não cantei com o Carlos do Carmo. Há pouco tempo foi o Joel Pina [que também morreu], uma dor incrível. Tinha sido feito há pouquinho tempo um concerto de homenagem ao Joel Pina no Teatro São Luiz e o Pedro Castro na altura convidou-me. Só que não consegui, não estava disponível, não estava aqui. E quando vi que ele morreu, pronto, já não vai acontecer. Aconteceu o mesmo com a Argentina Santos, que era uma fadista que eu adorava. Ou a Beatriz da Conceição. A Beatriz conheci e privei com ela bastantes vezes mas nunca cantámos juntas, nunca gravei. E gostava de ter cantado e gravado. Bom… encontramo-nos noutro sítio.

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