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Entrevista à escritora e dramaturga Joana Bértholo, que lançou agora o seu novo livro "A História de Roma". 28 de Setembro de 2022 Largo do Intendente, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Joana Bértholo entre Lisboa, Roma e Buenos Aires: "Verdade e ficção, autoficção e autobiografia? O leitor é soberano"

No novo livro, "A História de Roma", a autora portuguesa usa as experiências pessoais enquanto viajante pelo mundo para contar a história de dois amantes desencontrados e das cidades que os amparam.

Há uma sobriedade delicada na distância como ambos os acontecimentos e as memórias são contados nesta história. É como se Joana Bértholo dotasse o presente e o passado de uma bolha de oxigénio, atenciosa para com a disponibilidade de quem lê. O novo livro, A História de Roma — depois de Inventário do Pó (2015), O Museu do Pensamento (2017) e Ecologia (2018) —, conta a narrativa de dois ex-namorados que, após um romance iniciado em Buenos Aires, se encontram dez anos depois em Lisboa. Roma seria o nome da filha que não tiveram. Lugares e pessoas misturam-se através de diversas geografias e um livro cuja intenção era estruturar-se por cidades acabou por organizar-se por dias. Simultaneamente macro e micro, é aqui contada a história de um império e a história de uma vida por ser.

Num dos primeiros capítulos, percebemos de que forma surgiu a ideia do livro, a de associar o nome de uma criança ao nome de uma cidade. Como se desenvolveu a ficção a partir daí?
É uma mistura da minha própria vida – não posso dizer que foi feita a viajar, mas a minha juventude é muito marcada por viagens importantes – com a ideia desta personagem, que levou isso um pouco mais longe. E para quem as pessoas e as coordenadas geográficas eram mesmo a sua identidade. Era como se ela não tivesse nacionalidade. As diferentes fases da vida dela seriam as cidades e as pessoas que ela encontrou nesses lugares. Já não sei de onde nasceu: se conheci alguém, se de uma personagem que aparece no livro. E que aquilo na altura me impressionou. Claro que há muitas pessoas com nomes de lugares. E lugares que são dados pelos nomes das pessoas. Mas comecei a pensar o que significa quando temos um nome de um lugar. E daí resultou uma personagem que queria dar aos filhos nomes de lugares. Também pela questão imperial, tornou-se Roma. O livro tem muito a visão do mundo ocidental, ou seja, a União Europeia. Trata-se de uma portuguesa, que viaja por Buenos Aires, pelo Líbano, por sítios não europeus. Sobretudo em Buenos Aires, há muito essa questão do colonialismo: “vocês, os portugueses”, “vocês, os espanhóis”, “vocês, os europeus”. Então, contar ao mesmo tempo a história de um império e a história de uma vida é quase o mínimo e o máximo de poder contar histórias. Neste caso, a história da potência de uma pessoa, de uma pessoa por ser.

Um filho está sempre ligado a uma ideia de nascimento, a algo que começa.
Ela tinha a sua lista, que era um pouco extensa, de todas as capitais, cidades, que lhe pareciam inaugurar tanto um lugar como uma biografia, que tinham essa dupla qualidade. Mas foi à conversa com o futuro pai, quando ele reagiu… primeiro estranhou muito o exercício e depois embalou-se um pouco no jogo. Houve um momento em que ela diz “Roma” e os dois perceberam que tinham chegado lá. Como quem está a fazer uma viagem, chega a um sítio e percebe “é aqui”. Tentei sempre equiparar estes processos emocionais deles com disposições no espaço, com os percursos que eles fazem, tanto na memória como na cidade de Lisboa. E, também, os percursos de uma vida. Na minha cabeça era assim que funcionava.

A capa de "A História de Roma", de Joana Bértholo (Caminho)

Sabia desde o início que Roma não ia nascer?
Não, não sabia. Saia que essa era a ferida entre eles. Já sabia que queria falar dos dez anos da vida de uma mulher, no caso dela, com 27-37, 28-38 anos. Entre o final dos 20 e o final dos 30, em que essa decisão muda muito de natureza. Ou seja, no final dos 20, uma pessoa pode deixar ao sabor do destino, pode dizer “não sei”, quase tem a sensação de que tem todo o tempo do mundo. Mas, enquanto mulher, não tem. Então, no final dos 30, já é bom que tenha uma decisão, um plano, uma certeza em relação a isso. Eu sabia que essa personagem iria ter esse arco de angústia, de confusão, de como se toma essa decisão, o quanto ela se deixa influenciar pelo que vem de fora para dentro e, claro, de dentro para fora. Relembre-me a pergunta….

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Sabia desde o início que Roma não ia nascer?
Sabia que a ferida entre eles tinha a ver com a maternidade, com serem pais ou não.

Ou seja, foi escrevendo e aprendendo.
Sim, claramente. Demorei muito tempo até perceber que ele tinha uma visão… A história é claramente contada mais do lado dela. Demorei tempo a perceber que visão é que ele tinha dos acontecimentos. Só percebia que eles não concordavam. Até porque as memórias de como se conheceram não coincidem. Mas depois percebi que eles não concordam em algo de muito essencial: o que é que aconteceu a essa filha. E foi aí que percebi que, de uma forma ou de outra, não nasceu.

Houve um fio invisível que delineou esse arco narrativo de que falava há pouco?
Não. Normalmente os livros são todos diferentes. Eu parti para este livro tentando contar uma história em cada cidade. Sabia sobre que cinco cidades queria falar porque são as cidades da minha vida. O itinerário é perfeitamente autobiográfico, são as cidades onde vivi e morei, e que nunca aparecem na minha literatura, de alguma forma. Ou aparecem de formas muito desfocadas. E eu quis desafiar-me a realmente descrever os lugares pelos quais passei e até algumas pessoas que conheci. Quase que tinha esse início: o livro não se estruturava por dias, mas por cidades. Foi só com o avançar do processo, à medida que ia pondo camadas, que fui percebendo a natureza da relação deles. A pergunta que a personagem feminina tem ao longo do livro é: “como é que o nosso amor anoiteceu?”, “como é que isto acabou?” Era uma pergunta que eu própria enquanto escritora me coloquei. O que é que aconteceu com estes dois amantes? Gosto de escrever assim porque faz com que eu também queira acordar no dia seguinte para descobrir um pouco mais dessa história. Claro que há períodos em que parece que o devaneio é eterno e que nunca vou chegar a lado algum. Mas é uma questão de preserverança.

"Ou seja, não tenho nenhum contrato de honra ou de verdade com o que realmente aconteceu. Uso elementos do real, da minha memória, e depois combino-os de uma forma que sinto ser ficção."

Aquilo a que hoje se chama ficção autobiográfica. Não chega a isso?
Sinto que não. Se o leitor quiser ler o livro assim, não me incomoda. Quis contar esta história cheia de elementos da minha vida. Mas com a liberdade de juntar duas ou três características de uma pessoa numa só. Ou começar a contar uma história que me contaram e depois terminá-la de outra forma. Ou seja, não tenho nenhum contrato de honra ou de verdade com o que realmente aconteceu. Uso elementos do real, da minha memória, e depois combino-os de uma forma que sinto ser ficção. Isto é o meu testemunho do que fiz. Acho que essas balizas entre verdade e ficção, autoficção e autobiografia, são tão voláteis que acho que o leitor é soberano.

Há uma sobriedade e uma distância na forma como as memórias e os acontecimentos desta história são contados. Como tratou a questão do tempo?
Isso é muito interessante. O que descreve não foi uma intenção. Não pensei “vou fazer isto desta maneira”, mas sabia que estas personagens estavam com dez anos de distância de qualquer coisa muito marcante que lhes aconteceu. E eu sabia também que tinha sido muito marcante para a personagem feminina. A minha dificuldade foi sempre — e acho que se sente no livro — a de tentar perceber como é que a personagem masculina vive. Qual a perspetiva dele.

A adivinhar.
Eu própria a adivinhar. Essa distância, essa calma, tem a ver com os dez anos que existem sobre o que se passou entre eles e o facto de também se perceber que ambos foram viver muitas coisas depois. Supostamente, é também uma calma do fim dos 30. Eles apaixonam-se em coup de foudre [amor à primeira vista] num parque de estacionamento no centro de Buenos Aires e depois é toda uma loucura. Não que não possa acontecer vida fora, mas há uma disponibilidade muito típica dos 20s. Já uma mulher de 30 e tal anos está a refletir sobre o que lhe aconteceu. É uma questão sobre a qual vou ter de pensar, a questão do tempo. Foi tão imperativa que às tantas aquilo que eu achava que ia guiar o livro, as cidades, mudou. E passou a ser os dias. No início, eles passavam um tempo em Lisboa, um tempo indefinido, mas foi uma altura em que o livro se organizou muito, em que percebi que eles iam falar num período de dez anos durante dez dias. Portanto, sim, as diferentes  escalas do tempo contam muito.

Entrevista à escritora e dramaturga Joana Bértholo, que lançou agora o seu novo livro "A História de Roma". 28 de Setembro de 2022 Largo do Intendente, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Eu parti para este livro tentando contar uma história em cada cidade. Sabia sobre que cinco cidades queria falar porque são as cidades da minha vida"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Fala também sobre a Lisboa de agora, em que evitou a crítica às mudanças abissais que lhe estão a acontecer. Foi intencional?
Eu, Joana, não tenho uma posição neutra em relação a isso. Portanto, é curioso que não tenha sido um dos temas do livro. Há que dizer que estamos a conversar no Largo do Intendente, que é em si um sítio onde a minha história pessoal tem também ela já uns dez anos, muito importantes. Fiz parte do início do Largo Residências [cooperativa de desenvolvimento local] e fui vendo isto a mudar radicalmente ao ponto de o Largo Residências já nem ser sequer aqui. E fui vivendo esse turbilhão em todas estas grandes cidades por onde passei, sobretudo Berlim. Também mudaram a olhos vistos enquanto eu lá estava. Portanto, acho que faz parte da natureza das grandes capitais serem sobretudo reflexo dos movimentos do mercado imobiliários. E do turismo. Eu, por um lado, entendo isso e tento usufruir da mudança e das coisas boas que traz e, por outro lado, sinto uma descaracterização – agora falando de Lisboa – a acontecer muito rápida, sem travão, sem reflexão, sem que se oiça as pessoas que aqui vivem mesmo.

As que ainda aqui vivem.
As que ainda aqui vivem. Eu, Joana, sou menos neutra e muito crítica do que se está a passar. Mas de alguma forma talvez esse tema não servisse tanto o livro. Há sempre uma Lisboa, mesmo nesta Lisboa, que eu continuo a desfrutar muito. Também porque vivi muitos anos no estrangeiro e às vezes ainda tento relembrar-me e andar por aí com olhos de turista. A personagem masculina do livro é turista. Por muito que ele às vezes se queixe… é aquele turista que não quer fazer as coisas dos turistas. Mas é inescapável, porque depois ele vai ao restaurante e quer que falem com ele em inglês. Não quer que falem com ele em português. Há aqui muitas contradições no que está a acontecer nesta cidade. Para mim, falando em tempo, falta um bocadinho mais de tempo: as coisas não acontecerem tão rápido. E falta consulta às pessoas que aqui estão.

"Há aqui muitas contradições no que está a acontecer nesta cidade. Para mim, falando em tempo, falta um bocadinho mais de tempo: as coisas não acontecerem tão rápido. E falta consulta às pessoas que aqui estão."

Agora que já escreveu o livro, como a caracterizaria a ela?
Acho que, naquilo que toca o arco da maternidade, ela chegou a um destino. Ela encontra uma paz em relação a tudo o que são as vozes exteriores e interiores, assim como as deceções do seu próprio passado e as acusações de que é alvo por parte do ex-namorado. Ela encontra um lugar de paz em relação a não ser mãe. Já em relação ao amor deles, fica a perguntar-se. Há esta ideia que acho muito violenta de ele lhe dizer que o amor deles foi muito mais importante para ela do que para ele. Mas as suas ações ao longo do livro não denotam isso: ele é que vem a Lisboa, ele é que vem a Lisboa sem voo de volta, ele é que escreve um conto a tentar explicar a história deles. Acho que ela não sai resolvida a esse nível: afinal que importância é que isto teve? A personagem masculina deste livro é a grande incógnita deste livro.

Ela parece ver-se sempre de fora, parece não fazer parte das histórias, dos lugares. É como se estivesse a olhar de fora para aquilo que está a acontecer.
É uma descrição perspicaz dela e que tem qualquer coisa a ver com o exercício do viajante. Há viagens dela que se descrevem como tendo sido feitas sozinha, mesmo aquelas em que vai em grupo, como é o caso de Beirute. Essa história é quase toda contada ela sozinha perdida na cidade. Acho que é uma pessoa que está habituada a olhar para as coisas e a conversar consigo própria sobre o que está a ver. E isso faz com que seja sempre demasiado descritiva do que se está a passar com ela. É quase como se quisesse ter alguém com quem conversar enquanto viaja. Não a pensei assim, mas faz muito sentido. E, em relação ainda à pergunta anterior, acho que no fim há umas pazes também feitas com a cidade de Lisboa. Apesar de não estar “em guerra”, acho que a identidade dela é muito a de viajante. O facto de os potenciais filhos terem o nome de lugares faria com que o mapa-mundo dela estivesse sempre a aumentar. A cena final é no terraço da sua casa, em Lisboa, e isso, para mim, na minha cabeça, é uma decisão que significa ficar.

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