Foi uma gota, só uma gota, mas chegou para fazer transbordar o copo. Começou a chorar — diz que “desalmadamente” — e teve a certeza de que o que estava a acontecer era “sério” e que precisava de ajuda. Dali para a frente, João Vieira de Almeida entrou “numa viagem” de vários meses, até sair da depressão. Como a maior parte das pessoas, o advogado diz que é difícil definir o “vazio” que se sente e que toma conta de todas as horas, ou descrever o tamanho do “buraco negro” que se tem cá dentro e onde sentia que estava a cair, numa espiral negativa sem fim à vista.
Herdeiro de um nome que é uma marca, presidente do conselho de administração da sociedade de advogados Vieira de Almeida & Associados, uma das maiores e mais importantes do país, antecipa o aparente paradoxo: como é que alguém que, pelo menos desde 2015, é considerado uma das 50 pessoas mais poderosas do país conjuga essa imagem pública de sucesso e poder com uma realidade privada de depressão? Sem vergonha das suas fragilidades — e até aproveitando o que elas lhe podem trazer de bom, garante. Até porque, explica, na altura — há mais de 10 anos — seria impossível esconder o momento que estava a atravessar: perdeu muito peso e chorava muito — nem sabia que era possível ter tantas lágrimas.
Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental”, uma iniciativa do Observador e da FLAD, gravada no Pestana Palace, em Lisboa, explica mais: numa imagem que descreve como “poética, mas sem graça nenhuma”, acredita que chorava até durante o sono, porque acordava já com lágrimas.
Com um escritório para gerir, com centenas de pessoas que esperavam “inspiração, orientação e otimismo”, passou alguns dias em que chegava ao gabinete e chorava sozinho durante as primeiras duas horas. Depois percebeu que tinha de parar e descobriu “a montanha”. Desde a primeira experiência de alpinismo que percebeu que as escaladas seriam um fator decisivo na sua recuperação, também porque a montanha torna clara a diferença entre o que é essencial e o que é supérfluo.
Como é que tudo isto aconteceu? Há uma transparência desconcertante na resposta: “A minha depressão cresceu no espaço entre aquilo que eu sou, mais profundamente, e aquilo que tive de ser para fazer na vida o que fiz”.
Fez terapia e esteve medicado. Nunca teve tendências suicidas, mas admite que lhe passou pela cabeça desistir — como numa viagem de avião, em que chorou todo o caminho entre Lisboa e Barcelona, e pensou que não faria mossa a ninguém se o aparelho caísse — a começar por ele. Diz que parte da recuperação se deveu ao apoio que teve da família e dos amigos. É também por isso que decidiu falar sobre o seu caso: aflige-o a ideia de haver alguém que passe pelo mesmo sozinho e sabe que nem todos têm acesso aos cuidados e às facilidades que teve para superar a depressão. Para todas essas pessoas tem uma certeza: “Nos piores momentos, temos de perceber e acreditar que há uma saída”.
[Veja aqui a entrevista completa a João Vieira de Almeida]
Consegue identificar o momento em que começou a perceber que alguma coisa não estava bem consigo?
Sempre tive alguma preocupação com a minha saúde mental. Por razões várias, ia com alguma regularidade ao psicólogo, ao psiquiatra, e lia sobre a matéria. Porque sempre soube que, por força do tipo de vida que levei — e que levo, em boa parte —, corria alguns riscos.
Porquê? Porque trabalhava muito, tinha muito stress…?
Sim, vivi sempre sob um stress enorme, muitas horas de trabalho e uma escolha que hoje vejo que foi muito, muito clara — e que, na altura, talvez não fosse para mim tão evidente — pela minha vida profissional acima da minha vida pessoal, com os custos que isso foi tendo.
Essa escolha não foi clara quando a tomou, mas tinha a noção de que podia ter custos e, por isso, já procurava algum apoio a esse nível?
Sim. Procurava alguma prevenção e também, provavelmente, colmatar algumas dessas deficiências que sentia na minha vida pessoal. A minha vida pessoal, no fundo, já sofria, e em boa parte por causa dessa escolha que eu tinha feito. Portanto, sabia que corria riscos, estava minimamente preparado e acho que tinha uma boa consciência disso, estava bastante alerta. Uma depressão, que foi o que eu tive, não é como uma gripe, não é? Não se apanha num dia. É uma coisa — julgo eu — que se vai desenvolvendo ao longo do tempo, mas, curiosamente, houve um dia em que percebi.
Que dia foi esse?
Foi o dia em que comecei a chorar desalmadamente. E senti um vazio enorme, que provavelmente já se vinha a acumular. Mas houve, de facto, um dia em que eu senti a gota a cair, a gota que fez transbordar o copo.
Esse chorar desalmadamente foi por uma razão, ainda que menor, ou por razão nenhuma?
Houve uma razão, uma circunstância, mas que foi só uma gota. O copo estava completamente cheio. Nesse dia percebi que as coisas que tinham complicado seriamente.
E aí sentiu o tal vazio.
Foi só o princípio, esse dia foi o começo de uma viagem que levou meses — hoje em dia, não lhe consigo dizer exatamente quanto tempo foi.
Foi há muito tempo?
Foi há uns 10, 11 anos. E isso foi apenas o princípio do conhecimento de um mundo que eu não sabia que tinha dentro de mim, nem sabia que cabia dentro de mim.
O que é que pensou quando isso aconteceu? Só isto, “alguma coisa não está bem”?
Sim. Percebi que se tinha partido qualquer coisa de estrutural dentro de mim e que tinha perdido o controlo.
O que é que fez a seguir?
Procurei ajuda imediatamente. Como tinha essa consciência de que isto me podia acontecer, e foi tão óbvio para mim que se tinha alterado qualquer coisa muito séria, muito profunda, fui procurar ajuda rapidamente. É difícil explicar a quem nunca passou por isto o tamanho do buraco negro que nós temos cá dentro. É assustador.
Esse buraco via-se, para si, de que maneira?
O fundo não se vê. É como entrar numa espiral negativa, como estar a cair numa espiral em direção a um poço sem fundo e do qual se vai convencendo, a cada dia que passa, cada vez mais, que não tem saída nenhuma.
Vê-se sempre tudo como negro, como negativo?
Tudo. Tudo absolutamente negro, tudo sem solução. Eu era aquilo que comummente se diz “o paradigma do sucesso”. Tinha sucesso profissional imenso, tinha imensos amigos — e que foram uma das sortes que eutive —, uma família fantástica, muita proximidade com as pessoas. Felizmente, vivo bem, sem problemas ou ansiedades nenhumas que muita gente tem — e imagino o que é entrar num estado destes sem ter as facilidades que eu tinha. E, de um momento para o outro, entro num mundo onde tudo isso se torna absolutamente irrelevante.
Nem o sucesso profissional, nem o sucesso pessoal…
Zero. Totalmente irrelevante. A única coisa que eu via era um espaço negro e sentia-me totalmente impotente para encontrar uma saída.
Como é que era um dia para si nessa altura? Conseguia ser funcional? Continuou a trabalhar ou teve de parar?
Trabalhar é uma coisa, ir ao escritório é outra. Como tinha essa consciência prévia e tinha lido o suficiente e conversado o suficiente sobre como é que estas coisas funcionavam, houve um resto aqui na minha cabeça, qualquer coisa que ficou, que me dizia que tinha de me levantar da cama. Porque a vontade é deixar-se estar ou deixar-se ir. Nem é deixar-se estar, é o contrário — é deixar-se ir. Deixar de fazer qualquer tipo de esforço, deixar de ter qualquer tipo de proatividade. Tive a sorte de haver um lado dentro de mim que me dizia, porque eu sabia, que não podia ficar na cama.
Sem que fosse necessário alguém dizer-lhe isso.
Não era preciso porque eu já tinha ouvido isso, tinha isso perfeitamente incorporado. Hoje acho que talvez estivesse, de alguma maneira, subconscientemente, preparado para o caso de isto me poder acontecer. E, portanto, levantava-me todos os dias, ia para o escritório e ia para o meu gabinete. Estava numa posição um pouco difícil, como líder do escritório, tinha lá centenas de pessoas que olhavam para mim e esperavam orientação e inspiração e otimismo — sou uma pessoa muito otimista. E chegava ao escritório e as primeiras duas horas estava a chorar.
Sozinho ou permitia que alguém soubesse?
Não, nessa altura, em que chorava daquela maneira, a minha assistente sabia e, portanto, não deixava que alguém me viesse consultar ou fazer perguntas, querer reunir ou fosse o que fosse. Durante as primeiras horas, eu pura e simplesmente chorava. E isso é outra coisa que é impressionante: a quantidade de lágrimas que temos cá dentro, é assustador. Hoje em dia, quando temos estas conversas ou quando se fala disto, penso: todos nós temos este espaço aqui dentro, e eu já sei que o tenho. E é difícil pôr em palavras. Como é que conseguimos viver com isso — e a maior parte das pessoas, felizmente para elas, vive toda a vida sem nunca visitar esse espaço —, com a tamanha dimensão que tem, com aquilo que ocupa quando rebenta? Como é que conseguimos viver com isso aqui dentro e fazer uma vida perfeitamente normal? Ainda bem que assim é, hoje é o que eu faço também.
Sabia a sua assistente que havia um problema, disse que a sua sorte foram os amigos, mas teve alguma resistência, no início, a falar com pessoas, ou sabia que tinha de falar?
Primeiro, sabia que tinha de falar. E segundo, não me inibi muito, não sou pessoa de esconder muito esse tipo de situações. Era impossível esconder, ou me fechava em casa ou bastava olhar para mim para perceber que alguma coisa estava errada. Fisicamente, fiquei transformado, fiquei muito mais magro, os meus olhos estavam permanentemente inchados. Acontecia-me uma coisa que também não sabia que era possível, que é quase poética, mas não tem graça nenhuma: lembro-me de acordar com lágrimas, a chorar. Portanto, eu estava, seguramente, a chorar antes de acordar. São fenómenos fortíssimos. Mas não me inibi, também era impossível disfarçar, a pouco e pouco fui falando com as pessoas e não escondia a minha situação. E aquilo que me aconteceu — e é uma das razões que me leva hoje a falar disto, não imagino o que seja passar por uma situação destas sozinho — foi que tive a sorte de sentir o apoio inequívoco da minha família e dos meus amigos.
Eles perceberam antes de si?
Não. E para muitos foi sempre difícil perceber, porque havia muito aquela frase: “Como é que é possível, tu tens tudo”.
É considerado uma das pessoas mais poderosas do país — no ano passado ficou no lugar 37. Mesmo que não seja voluntário, dão-lhe esse rótulo público. Como é que se conjuga esse rótulo público, de sucesso e poder, com uma realidade privada de sensação de falhanço e desesperança?
Acho que falhanço não é a palavra certa.
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Não sentia isso nessa altura, quando via tudo negro?
Acho que falhanço não é uma palavra que descreva bem aquilo que eu sentia. Sentia era um vazio indescritível, um vazio sem fim. Um vazio que se transformava em tristeza e em incapacidade de ação. Emocionalmente, estava num défice brutal, incapaz de sentir empatia, fosse com o que fosse, a começar comigo próprio, incapaz de dar um sentido e perceber qual era o sentido da minha vida. E repare: tenho três filhas que adoro, como imagina. Naquela altura, de facto, apenas sentia um vazio enorme. Não havia uma ideia de falhanço. E acho que as duas dimensões não têm a ver uma com a outra — nós podemos ter imenso sucesso num momento da vida e ser confrontados com uma coisa destas.
Mas isso podia pesar, até por essa pergunta do “porquê”. Fez essa pergunta para si próprio?
Acho que tinha alguma noção de por que é que estava naquela situação. A minha depressão — isto pode parecer um bocadinho piroso, mas é verdade — cresceu no espaço entre aquilo que eu sou, mais profundamente, e aquilo que tive de ser para fazer na vida o que fiz, e que foi uma escolha. Sem querer entrar aqui em coisas demasiado pessoais, acho que todos nós fazemos isso na vida, eu se calhar levei isso longe demais. Todos nós construímos uma personagem que corresponde não só àquilo que achamos que os outros querem, mas também àquilo que nós próprios queremos para conseguir os objetivos. E acho que, provavelmente, havia um espaço grande demais entre aquilo que eu sou e aquilo em que pensei que tinha de me transformar para poder fazer o que fiz.
Quando diz que procurou ajuda imediatamente, também foi ajuda médica. Marcou uma consulta com um psicólogo, um psiquiatra?
Com ambos. Sempre tive apoio psicológico, muitas vezes sem ter nenhuma razão especial para isso, mas sempre achei que era um apoio que faz sentido, uma coisa que sempre recomendei a toda a gente.
É quase uma questão de exercício?
E de autoconhecimento. E talvez também estivesse a tentar agarrar-me a esse lado que tinha abandonado. Se quer que lhe diga, hoje não sei se o psicólogo me ajudou a fechar essa diferença ou se, na verdade, me ajudou a percebê-la — e, por causa disso, aconteceu o que aconteceu. Se me ajudou a aumentar a consciência dessa diferença. Mas procurei ajuda, na altura estava com um psicólogo, mas obviamente tive de envolver também um psiquiatra. E depois procurei outro tipo de coisas, soluções também banais nestes casos, para quem pode. Comecei a fazer yoga, comecei a meditar. E tive uma sorte incrível, porque falei com um amigo que é médico. A certa altura, depois da primeira fase em que continuava a ir ao escritório naquele estado miserável absoluto em que me encontrava, percebi que tinha de me afastar, não estava ali a fazer nada. Falei com esse amigo e disse-lhe: “Olha, vou sair daqui”. Foi no verão e tinha-me inscrito num curso em Oxford sobre política e religião, duas coisas que eu não pratico, mas que me interessam muito intelectualmente. Disse-lhe que ia e ele disse-me: “Nem pensar nisso, estás proibido de ir, porque vais e já não vens, não vais fazer um curso no estado em que estás”. E deu-me uma recomendação: “Vai mas é para a montanha”. E eu fui. Foi o princípio de uma viagem que nunca mais acabou, apaixonei-me pelas montanhas, hoje em dia farto-me de subir. Fui sozinho e fiz um caminho interior absolutamente extraordinário. Isso foi uma ajuda decisiva.
Creio que a propósito de uma sua subida ao Kilimanjaro, que tinha fins solidários, disse que a montanha era um símbolo de superação porque passar a montanha é perceber que se pode chegar ao outro lado. Para si foi isso?
Foi, foi uma coisa muito marcante. Aquilo é uma espécie de metáfora da vida. É reaprender tudo de novo e ir crescendo à medida que se sobe — até soa um bocado simplista, mas é verdade, é assim mesmo. E depois é um caminho muito em silêncio. Há o aspeto da superação, mas também o da relativização daquilo que é verdadeiramente importante na vida. Porque, quando estamos num ambiente desses, percebemos que, de facto, os aspetos de sobrevivência e aquilo que é verdadeiramente importante está nas coisas mais simples: comer, respirar, descansar, dormir. E isso, para mim, foi absolutamente crítico.
Ao mesmo que tempo que fez isso, estava a ter acompanhamento com psicólogo, a fazer medicação?
Fiz tudo o que me mandaram, tomei os químicos todos, acho que isso é muito importante.
Não resistiu a isso? A parte dos medicamentos, por qualquer razão, costuma ser a barreira mais difícil de ultrapassar.
Não. Tudo o que senti que me podia ajudar, fiz. Tomei os medicamentos o tempo todo que tive de tomar, sem resistência absolutamente nenhuma. E acho que esse é um aspeto importante, para quem passa por uma coisa destas: perceber que isso crítico, acelera a recuperação e, em mim, estabilizou-me muito.
E dá capacidade para lidar com aquilo com que temos de lidar.
Isso. É um caminho de paciência, porque, tal como a gripe, não se pega num dia, mas também não se cura em três. É um caminho de paciência e é um caminho que exige que percebamos isso mesmo, que é um percurso que leva tempo, mas todos os dias podemos dar mais um passo, exatamente como na montanha. É passo a passo. E é a capacidade de estarmos no momento, de nos desligarmos. Uma coisa que não sei se é comum nestes estados, mas que para foi claro foi a total incapacidade de me ligar ao momento. Porque o momento em que eu estava era um momento negro, em que não tinha nada. Não tinha passado, não tinha presente, não tinha futuro. E se olhava para a frente, só via negro. Se olhava para trás, só via o que tinha feito de errado.
Quanto tempo durou essa fase em que percebeu que tinha de parar, de deixar de ir ao escritório, porque não estava a ser útil?
Foram umas semanas.
E todo o processo com terapia, com medicação, durou quanto tempo?
Isto no total durou uns meses. Depois o sair também é impercetível. Não lhe consigo dizer que houve um dia em que, de repente, acordei e estava ótimo.
Mas teve um momento em que pensou: “Já estou melhor”?
Acho que depois fui sentindo que estava melhor, à medida que comecei a reagir, comecei a fazer coisas, voltei a fazer desporto, deixei de chorar a quantidade de lágrimas que chorava. Isso foi muito percetível, porque aquilo que eu chorava no início, sem qualquer razão e sem qualquer aviso, é uma coisa assustadora — eu podia estar aqui a falar consigo e daqui a dois segundos chorava baba e ranho. Esse talvez seja o lado mais percetível de que estamos a entrar num processo de recuperação. E depois o resto é a pouco e pouco.
Fez esse retomar suave também no trabalho? Quando volta, volta devagarinho?
Devagarinho, sim.
Isso é possível?
É. Porque mesmo que eu pense que não estou a ir devagar, na verdade estou porque não tenho as minhas capacidades todas. E acho que havia, provavelmente, um acordo secreto e surdo em que toda a gente sabia mais ou menos que eu não estava bem e, portanto, também evitavam pressionar-me. Tive muita sorte e sei que muita gente não tem nem a sorte nem os meios que eu tive. Por isso, há seguramente processos muito mais dolorosos. E aquilo que me parece que, provavelmente, está ao alcance de muita gente e que não tenho a certeza de que toda a gente utilize é isto: o recurso aos amigos, o recurso à família, o podermos partilhar o nosso estado para que os outros nos possam ajudar. Isso, para mim, foi muito, muito, muito importante e enriquecedor.
Sentia alguma frustração quando queria partilhar o que estava a sentir e havia alguma incompreensão do outro lado, porque é difícil explicar?
No meu caso havia mais uma resignação. Havia pessoas que me levavam a jantar, almoços — acho que nunca saí tanto, mas, se me perguntar onde é que fui, nem me lembro, estava completamente noutra. Mas havia muita gente que, apesar disso, não conseguia disfarçar o incómodo com a incompreensão de como é que eu, com tanto sucesso na vida e com uma vida tão boa e tão fácil, podia estar naquele estado. Às vezes acho que as pessoas sentem que há uma certa injustiça nisto: “Como é que este tipo se dá ao luxo de ser infeliz?” Mas a minha reação a isso foi sempre de alguma resignação, de perceber que isso era uma reação normal das pessoas. Era o que era. A maioria das pessoas, se pensava assim, não mostrava. E estou profunda e eternamente agradecido aos meus amigos e à minha família pela maneira como me apoiaram nessa altura. Acho que foi crítico para me tirar de onde eu estava.
Em nenhum momento sentiu o estigma?
Não. Mas, mais uma vez, também acho que estou numa posição que me protege, privilegiada nesse sentido. Percebo e sei e vejo muitas vezes que esse estigma está lá. Eu tive a sorte de não ser vítima disso.
Houve algum momento em que pensou: “Se calhar não vou conseguir voltar a ser quem eu era”?
Houve momentos em que tive a certeza de que jamais voltaria a ser quem era. Houve momentos em que eu tive a certeza absoluta, 100% de certeza absoluta, de que seria assim o resto da vida. E que a vida não fazia grande sentido. E que tanto fazia estar vivo como não estar.
E depois passou por um momento em que percebeu que podia voltar a ser exatamente quem era, mas talvez não quisesse voltar a ser exatamente quem era?
Sim, claro. Isto é uma experiência fortíssima. Se uma pessoa quiser aprender alguma coisa, é fácil tirar algumas lições disto. É uma experiência de humildade enorme. Uma pessoa quando tem muito sucesso e consegue realizar os seus sonhos, muito facilmente fica muito perto de se achar o maior, invencível, o máximo. E quando se está à frente de organizações, tem imensa gente que lhe vem dizer aquilo que quer ouvir, e reforçar a sua auto-estima ainda mais e a sua convicção de que nunca erra. E isto é um exercício brutal de humildade.
O que é que mudou em si?
Mudou a compreensão de que tinha de estreitar essa diferença entre aquilo que sou e que sempre fui e aquilo que tenho de ser na minha vida profissional. Acho que me deu uma dose de humildade enorme, percebo as minhas fragilidades. Deu-me a capacidade de não ter a mínima vergonha das minhas fragilidades e de viver perfeitamente com elas — e até ser capaz de as aproveitar da melhor maneira para viver aquilo que sou. E deu-me coisas ótimas: deu-me provas de amizade e de amor incríveis, deu-me as montanhas, que hoje em dia são uma parte crucial da minha vida, e deu-me a vontade de continuar a viver e, sobretudo, perceber que há uma saída. E que, nos piores momentos, temos de perceber e acreditar que há uma saída.
Esse processo até à saída é linear ou tem altos e baixos, como as montanhas?
Tem altos e baixos, mas os altos são cada vez mais altos e os baixos são cada vez menos baixos.
No meio disso, pensou em desistir?
Nunca tive tentações suicidas ou coisas do género. Desistir, sim. Lembro de uma vez estar num avião, quando estava nessa fase. Lembro-me perfeitamente, tinha uma reunião em Barcelona. Estava a querer convencer-me de que estava já melhor, quis ir à reunião e ia sozinho. Lembro-me de que entrei no avião e fui a chorar daqui até Barcelona. Mas já estava numa fase bastante confusa, porque fui a chorar daqui até Barcelona, cheguei ao aeroporto, fui à casa de banho lavar a cara, olhei para o espelho e pensei: “Não, estás ótimo para ir para a reunião”. Imagine, devia estar com uns olhos, fui a chorar uma hora e meia da viagem. Mas, nessa viagem, lembro-me perfeitamente de pensar que, se o avião caísse, não me fazia mossa. Nada me agarrava. Foi desistir neste sentido, de pensar que era uma coisa que não faria mossa a ninguém, a começar por mim.
Quando chegou ao final do “labirinto”, pensou na forma como os seus pares, os seus clientes, os seus amigos, a partir dali, iam olhar para si?
Se me pergunta se pensei nisso com preocupação, não. Era o que era. Nesse aspeto, vivi sempre bastante tranquilo com o processo. É quem eu sou, tenho estas fragilidades, isso nunca me preocupou. Se pensei se eles me conheciam agora melhor, se tinham visto um lado meu que eu próprio não conhecia, isso sim. Mas nunca tive medo de julgamentos desse género e sempre falei abertamente sobre o assunto.
E quando é que percebeu que não só era bom falar abertamente sobre o assunto como talvez fosse ainda melhor usar o seu caso para falar com outras pessoas? Falou sobre isto a estudantes, por exemplo.
Eu falo sobre este tema. São duas coisas diferentes. Falar sobre a minha condição, já sabia antes de isto acontecer que era um passo importante que devia dar e que me podia ajudar. Acho difícil, pelo menos no grau em que eu estava, esconder. Ou uma pessoa vive muito sozinha e sem o mínimo de interação, ou é impossível. E falei sempre, sabia que era importante. Falar aos outros no sentido de poder ajudar pessoas que estejam sozinhas a passar por isto — isso é uma coisa que me aflige, pensar que há alguém que está a viver este sofrimento sozinho —, isso percebi depois, em conversas que fui tendo. Há uma coisa que me impressionou, que foi a quantidade de gente que me veio dizer que tinha passado pelo mesmo. Percebi que não estava sozinho. E percebi que o meu exemplo, precisamente porque muita gente olha para mim nesse paradigma de pessoa que vive a vida que sempre quis, podia ajudar os outros partilhando a minha experiência.
Alguma das pessoas que lhe disse que tinha passado pelo mesmo tinha o mesmo paradigma de sucesso?
Algumas foram pessoas de que eu jamais suspeitaria. Também não as conhecia assim tão bem, mas fiquei surpreendido. Percebi aí que era muito mais comum. E há muita gente que está a passar por isto pensando que está sozinha e que mais ninguém a vai perceber e que nunca ninguém passou por isso, e isso não é verdade.
O que é que aprende quando fala com pessoas, nesta fase, sobre a sua própria experiência? Que é um problema maior do que pensamos?
Sim, é um problema muito mais generalizado do que nós julgamos, atinge qualquer pessoa, de qualquer idade, em qualquer estrato social, em qualquer momento da vida. E outra coisa: que nos pode bater sem o mínimo pré-aviso. Este potencial todos temos cá dentro. E o que é importante é não entrar em pânico e perceber que há uma saída. Não está ali, ao virar da esquina, não é amanhã, não é depois, não há nenhuma poção mágica. Mas há mesmo uma saída, por muito que pareça que não — e eu sei que parece impossível.
A pandemia foi muito desafiante ao nível da saúde mental para todos. Como é que foi para si? Esteve particularmente alerta?
Neste plano em que estamos aqui a falar, não. Preocupou-me profissionalmente por outros casos que possam eventualmente ter aparecido no escritório, e foi, de facto, na sequência disso que tomámos uma série de medidas que têm a ver com a saúde mental. Mas pessoalmente não. Fiz a minha vida absolutamente normal, fui ao escritório todos os dias e foi uma empreitada, sobreviver àqueles dois anos.
Como é que cuida da sua saúde mental hoje em dia, além das montanhas? Ainda faz yoga e meditação?
Hoje faço muito menos do que gostava, as montanhas continuo a fazer — aliás, vim de lá a semana passada — e são um fator crítico para o meu equilíbrio. E, ocasionalmente, continuo a fazer as minhas consultas.
Com regularidade?
Volta e meia vou. Depois sou capaz de ir passados dois meses ou sou capaz de estar três meses sem ir. Mas mantenho sempre esse contacto para me manter mais ou menos em cheque sempre. E depois, hoje em dia, estou muito mais atento a qualquer sinal da minha parte que possa indicar estar aqui a acontecer alguma coisa.
Está sempre alerta para a ideia de que isto pode voltar a acontecer?
Vivo convencido de que isto não me volta a acontecer, mas sabendo que posso estar enganado. Esse é o sítio a que eu não gostaria mesmo de voltar. Espero não voltar. Não vivo sempre alerta, mas sei que pode acontecer e, portanto, estou minimamente atento. Não ocupa muito espaço no meu dia a dia, mas estou atento.
Agradecimentos: Pestana Hotel Group
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:
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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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