Índice
Índice
Foi a própria secretária de Estado a trazer à baila o caso de Alexandra Reis que há um ano abalou o governo (socialista) para defender que a sua situação é totalmente diferente. Apesar de perceber a comparação entre as duas gestoras de empresas públicas que saíram com compensações para ocupar mais tarde outros cargos públicos, Cristina Pinto Dias sublinhou o que considerou uma diferença fundamental.
“Eu não saí de uma empresa pública para outra empresa pública. Eu não saí da CP para ir para a TAP ou para ir para a NAV. Saí de um emprego para a vida para ir fazer um mandato único na AMT (Autoridade da Mobilidade e dos Transportes). Abandonei a minha carreira e o meu lugar de recuo para fazer um mandato único e irrepetível”.
O confronto entre os dois casos revelou-se incontornável na audição à secretária de Estado da Mobilidade realizada esta quarta-feira na comissão de economia e obras públicas. Carlos Guimarães Pinto não resistiu a estender a comparação ao comportamento dos dois maiores partidos, agora trocados no poder e na oposição. “O partido que se entusiasmou com o caso Alexandra Reis (o PSD) defende agora a sua Alexandra Reis. E o partido que a defendeu (o PS e o Governo) ataca agora”, disse o deputado IL.
O “ataque” socialista seguiu-se à audição da governante, com o deputado Pedro Coimbra a considerar que este caso tem até maior gravidade do que o de Alexandra Reis, porque, neste último, foram tiradas consequências políticas com a demissão da própria de secretária de Estado, e mais tarde dos dois responsáveis políticos das Infraestruturas (Pedro Nuno Santos e Hugo Mendes). E neste caso, não. Ao fim de um ciclo de seis audições, Cristina Pinto Dias continua em funções. O PS diz que há dúvidas sobre a legalidade da indemnização recebida da CP, mas “não temos dúvidas quanto à falta de moralidade e ética” e o tratamento de “favor”, deixando ao primeiro-ministro a sugestão de avaliar as condições para manter a governante em funções.
A IL vai apresentar um projeto de resolução para que a Inspeção-Geral de Finanças faça uma auditoria aos pagamentos feitos a gestores públicos nos últimos 20 anos. Para o deputado Carlos Guimarães Pinto, o que está em causa é um PPR garantido para os quadros da CP que no período de 5 anos pagou milhões de euros em rescisões de mútuo acordo a mais de 400 pessoas.
Dois casos passados que só tiveram impacto com nomeações para o governo
Para o deputado da Iniciativa Liberal, este é mais um caso de portas giratórias, igual a tantos outros que terão existido na CP, que só se tornou relevante por causa da nomeação para o Governo. E este é um dos pontos que aproximam os dois casos.
[Já saiu o sexto e último episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro, aqui o quarto episódio e aqui o quinto episódio.]
Alexandra Reis saiu da TAP em fevereiro de 2022 e foi nomeada para a administração da NAV (empresa de navegação aérea) em junho, mas só quando foi escolhida em novembro para a Secretaria de Estado do Tesouro de Fernando Medina é que foi conhecida a indemnização paga pela TAP de meio milhão de euros. Cristina Pinto Dias rescindiu com a CP em julho de 2015, quando foi nomeada para a administração da Autoridade de Mobilidade e Transportes (AMT). Mas só com a sua entrada no Governo de Luís Montenegro, em abril deste ano, é que o tema suscitou polémica. Mas dentro destas simetrias há um detalhe de grande diferença.
A indemnização de 80 mil contos recebida pela ex-gestora da CP foi noticiada em 2015 (pelo Público) e nunca desmentida, tendo sido recuperada nove anos mais tarde, e com mais detalhes, no quadro da nomeação de Cristina Pinto Dias para a equipa de Miguel Pinto Luz. A indemnização paga pela TAP a Alexandra Reis foi mantida em segredo e só veio a público (por notícia do Correio da Manhã), um mês depois da entrada da gestora no Governo.
Duas gestoras que também era quadros foram indemnizadas
Alexandra Reis e Cristina Pinto Dias eram administradoras da TAP e da CP quando negociaram as respetivas saídas e também faziam parte dos quadros das duas empresas antes de serem nomeadas para a administração. Mas também aqui os cenários são distintos, como notou Carlos Guimarães Pinto da Iniciativa Liberal. “Uma saiu porque a administração não a queria lá, a outra porque quis”.
O grosso da indemnização de 500 mil euros atribuído a Alexandra Reis teve como fundamento as suas funções como administradora que ainda estavam a meio do mandato e que se foi embora da empresa por iniciativa da então presidente, Christine Ourmières-Widener, e contra sua vontade. Essa é aliás a principal razão para o valor negociado pelos advogados das duas partes — os 500 mil euros são o resultado de um processo que começou por um pedido de 1,5 milhões de euros. Há uma fatia da indemnização que resulta da rescisão do contrato de trabalho com a TAP, mas é residual porque Alexandra Reis tinha poucos anos de quadro.
Já Cristina Pinto Dias saiu por sua iniciativa. Mas antes de rescindir por mútuo acordo com a CP renunciou ao cargo de vice-presidente que ocupada há dois anos. E é como técnica superior da CP que adere ao programa de rescisões por mútuo acordo da empresa, tendo a sua compensação de quase 80.000 euros sido calculada com base numa tabela já aprovada para estes casos e tendo como referência os 18 anos de casa. Foi um cálculo automático com base numa tabela definida em 2010 e não uma negociação, afirmou a governante no Parlamento.
De uma empresa pública para outro cargo no Estado
O facto de as duas gestoras saírem de uma empresa do Estado com indemnização para irem ocupar, pouco tempo depois, outro cargo público é uma das “coincidências” que dão corpo à comparação entre Alexandra Reis e Cristina Pinto Dias. Mas também nesta semelhança há diferenças. Quando negociou a sua indemnização para sair da TAP, Alexandra Reis não teria ainda garantido o outro cargo. Pelo menos, tal não ficou provado na comissão parlamentar de inquérito que se debruçou sobre o tema no ano passado.
Como Alexandra Reis foi convidada para a NAV só com conhecimento “informal” das Finanças
A gestora testemunhou que tinha sido sondada pelo então secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, para a presidência da NAV em março de 2022 quando o novo Governo (também socialista e com os mesmos ministro e secretário de Estado na pasta das Infraestruturas) ainda não tinha tomado posse. Mas, ainda assim, depois de ter consumado a sua saída da TAP. A nomeação para a presidência da NAV viria a ser confirmada em junho do mesmo ano.
Cristina Pinto Dias assume que a sua saída da CP foi motivada pelo convite que teve para integrar a administração do regulador dos transportes, a AMT. E só depois desse convite ter sido validado nos termos da lei, com um parecer favorável da Cresap e uma audição no Parlamento, é que a então vice-presidente da CP iniciou o processo de saída. E porque, argumentou, estava impedida de manter o vínculo à CP que era uma empresa regulada pela AMT.
Mas, repetiu várias vezes: “Não saí de uma empresa pública para outra empresa pública. Eu não saí da CP para ir para a TAP. Saí de um emprego para a vida para ir fazer um mandato único na AMT. Abandonei a minha carreira e o meu lugar de recuo para fazer um mandato único e irrepetível”.
Quem sabia e quem teve de autorizar
A negociação para a saída de Alexandra Reis foi conduzida pela então presidente executiva da TAP, Christine Ourmières-Widener, com as duas partes assessoradas por escritórios de advogados. Apesar da fase final do acordo ter sido aprovada no conselho de administração da TAP, a auditoria da Inspeção-Geral de Finanças atribuiu a responsabilidade apenas à presidente executiva e ao chairman (Manuel Beja). Ficou também provado que o processo negocial foi acompanhado, sobretudo, pelo secretário de Estado Hugo Mendes, e pelo então ministro Pedro Nuno Santos que validou o valor final. O Ministério das Finanças não foi informado, ao contrário do que prevê o quadro legal.
O acordo de saída de Cristina Pinto Dias foi tratado internamente na CP sem necessidade de qualquer intervenção da tutela, ainda que tenha sido o Ministério da Economia (e o secretário de Estado das Obras Públicas, Sérgio Monteiro já ouvido no Parlamento) a convidá-la para a administração da AMT. Sérgio Monteiro afirmou no Parlamento que desconhecia a indemnização recebida pela ex-gestora da CP.
O processo foi aprovado numa reunião do conselho de administração da própria CP, após o processo ter sido remetido à direção de recursos humanos.
Ainda de acordo com a explicação dada pela secretária de Estado, teve que ser a administração a validar o seu processo de rescisão porque a direção da qual fazia parte já tinha sido extinta. Os documentos enviados ao Parlamento mostram que a indemnização da ex-gestora foi calculada a partir do vencimento de cargo de chefia com o valor bruto mensal de 4.312 euros, para 18,3 anos de casa. Cristina Pinto Dias invocou o cargo de diretora do gabinete de desenvolvimento organizacional, qualidade e ambiente que ocupava antes de ser nomeada para a administração.
Segundo o ex-presidente da empresa Manuel Queiró, Cristina Dias não revelou que ia sair para a AMT, o que aliás foi confirmado pela própria. “Não foi perguntado a mim, nem às 420 pessoas que saíram da CP, o que iam fazer a seguir. Não era importante.”
Cristina Pinto Dias argumenta que não sabia quanto ia ganhar no regulador (o vencimento seria fixado por uma comissão após a sua nomeação), mas a política remuneratória dos reguladores é mais generosa do que a aplicada na generalidade das empresas públicas.
Legalidade, moralidade e consequências
O processo de saída de Alexandra Reis da TAP com uma indemnização de meio milhão de euros foi considerado irregular e contrário ao normativo do estatuto do gestor público, numa auditoria da Inspeção-Geral de Finanças pedida pelo anterior Governo. Apesar de a TAP ser uma empresa pública, ainda que com algumas exceções, a negociação foi feita ao abrigo do quadro jurídico que se aplica a empresas privadas.
As ilegalidades apontadas pela IGF serviram de fundamento à demissão por justa causa dos dois gestores da TAP que assinaram o acordo. O caso deu origem a uma comissão parlamentar de inquérito que abalou o Governo de maioria de António Costa e quando foi conhecido teve um preço político imediato: Alexandra Reis abandonou o cargo de secretária de Estado do Tesouro e, semanas mais tarde, Hugo Mendes e Pedro Nuno Santos demitiram-se.
Outra irregularidade apontada foi a não devolução de uma parte da indemnização paga por uma empresa pública (TAP) quando foi nomeada para outra empresa pública (NAV). Alexandra Reis acabaria por devolver quase todo o dinheiro (líquido) que recebeu da TAP na sequência das conclusões da auditoria da IGF.
A oposição levantou várias dúvidas sobre a regularidade e legalidade do processo de saída de Cristina Pinto Dias da CP que foi descrito logo na primeira audição pela pessoa que o denunciou em 2015 — um ex-diretor da Emef que também era à data sindicalista — como não tendo cumprido as normas internas da empresa. Segundo Francisco Fortunato, a gestora não cumpria os requisitos “muito especiais” que permitiam aderir ao programa, nomeadamente em termos de função, idade e competências. E o acordo de saída não foi sustentado em nenhum parecer jurídico ou de recursos humanos a indicar que a empresa a podia dispensar.
Mas a informação remetida pelo Governo aos deputados (a pedido do PSD) revela que houve outros casos de técnicos licenciados a sair com indemnização, dois dos quais com idades próximas da então gestora (dois a três anos mais velhos). Cinco deles saíram no mesmo ano — 2015 — num total de 45 rescisões acordadas nesse ano com indemnizações de 2,4 milhões de euros.
A situação de Cristina Pinto Dias será contudo excecional porque era administradora também, e pela rapidez com o que o processo foi operacionalizado. Houve a necessidade de uma segunda reunião extraordinária do conselho de administração no dia seguinte à aprovação do acordo de rescisão para libertar a ex-quadro do período de 30 dias que teria de dar à casa, uma vez que tal seria incompatível com a nomeação para a AMT que foi aprovada no dia seguinte em Conselho de Ministros.
Não obstante, o próprio PS não conclui que existiram ilegalidades, assinalando que se levantam “muitas e fundadas dúvidas quanto à legalidade da indemnização”. Mas não tem dúvidas sobre “a falta de moralidade e ética”, nem sobre “o tratamento de favor e à via verde aberta para receber esta indemnização em tempo recorde”, com uma “rapidez alucinante” (contestada pela governante que diz que todo o processo demorou três semanas e 500 horas).
E, na comparação com Alexandra Reis, Pedro Coimbra considera até que este caso tem “maior gravidade” até pela falta, até agora, de consequências políticas. Cristina Pinto Dias continua no Governo e o ministro das Infraestruturas, Pinto Luz, defende a legalidade do processo. Para a secretária de Estado da Mobilidade, “ficou demonstrado que não foi beneficiada nem prejudicada” na saída da CP. Sobre a ética e a moral, Cristina Pinto Dias comentou: “A ética não está na proclamação de virtudes ou no discurso, está nas ações e no comportamento do dia a dia e no que fazemos para merecer a confiança dos outros”.