[Esta entrevista foi publicada inicialmente a 2 de outubro de 2018. É agora republicada a propósito da morte de Madeleine Albright, a 23 de março de 2022]
Madeleine Albright tem autoridade para falar sobre o fascismo. Por um lado, tem muitos anos de experiência no palco da diplomacia mundial — primeiro como membro do Conselho Nacional de Segurança da Casa Branca, depois nas Nações Unidas e, finalmente, como primeira mulher a ocupar o cargo de Secretária de Estado dos EUA. Por outro lado, conheceu de perto o fascismo, ou não tivesse a invasão da Checoslováquia pelas tropas de Hitler forçado a sua família a exilar-se e alterado por completo a sua vida.
Contudo, foi apenas agora, aos 81 anos, que a antiga mulher-forte da diplomacia de Bill Clinton decidiu escrever o ensaio “Fascismo: Um Alerta” (Clube do Autor), lançado em Portugal esta quarta-feira. A ideia marinava há já algum tempo, estando o livro planeado ainda antes das eleições norte-americanas de 2016. A vitória de Donald Trump, porém, deu um novo ímpeto à obra: “Se pensarmos no fascismo como uma ferida do passado que estava quase cicatrizada, colocar Trump na Casa Branca foi como arrancar o penso e remexer na crosta“, sentencia Albright no início da obra.
O lançamento do livro surgiu como oportunidade para uma conversa por email com o Observador, sem entraves de temas, onde Albright expressa preocupação com os líderes que crê estarem “a mover-se em direção ao fascismo”. Mas a diplomata veterana não se fica por aí: aborda o papel da diplomacia no mundo atual, reflete sobre a Rússia de Putin e deixa duras críticas à administração Trump, bem como conselhos aos seus colegas do Partido Democrata.
Como Secretária de Estado, Albright liderou processos como a intervenção americana na crise dos Balcãs no final dos anos 90 e protagonizou momentos como a visita a Pyongyang para negociar pessoalmente com Kim Jong-il, ocupando um cargo de destaque até então vedado a mulheres nos Estados Unidos. Talvez por isso, hoje em dia não tem dúvidas em classificar o movimento #MeToo — ou qualquer outro que contribua para a “total igualdade” entre sexos — como merecedor de apoio. Mas, pese embora o retrato preocupante que traça do “avanço do fascismo”, a principal mensagem que Albright deixa é a de que é possível manter vivas a democracia e a defesa dos direitos humanos. “Não há nada de complicado em defender princípios democráticos. É só preciso fazê-lo”, afirma.
No seu livro “Fascismo: Um Alerta” afirma que a banalização do uso da palavra “fascista” como insulto retira força a um termo “que deveria ser poderoso”. Porque considera então que agora é a altura certa para fazer um alerta sobre o fascismo? O que é que há de menos banal no momento atual para falarmos de fascismo agora?
A questão que importa não é quando se discute o fascismo, mas em que contexto. Os adolescentes podem discordar disto, mas um pai ou mãe que lhes impõe restrições ao uso do telemóvel não é um fascista. Pelo contrário, um Governo que prende jornalistas e opositores políticos pode bem sê-lo. Não há nenhum momento que seja errado para fazermos oposição à repressão política.
Decidiu escrever sobre a subida ao poder de Mussolini e Hitler e depois focar-se em líderes mais recentes, como Chávez, Milosevic, Erdogan e Putin. Mas sublinha como a maioria deles não são fascistas per se, mas sim autoritários “à beira do fascismo”. Porquê falar sobre eles então?
Este livro é um alerta e um alerta, se chegar tarde demais, não vale de nada. Hoje em dia vejo muitos líderes que abusam dos princípios democráticos e que estão a mover-se em direção ao fascismo. Isso preocupa-me.
Escreve que “a América, o rochedo contra o qual o fascismo se esmagou no século passado, pode ter começado a resvalar”, ao mesmo tempo que assume que Donald Trump é “a sombra que paira sobre estas páginas”. Acredita que as instituições norte-americanas são fortes o suficiente para resistir ao homem que classifica como “o Presidente menos democrático” que os EUA já tiveram?
Os pesos e contrapesos do sistema americano podem limitar a capacidade desta administração provocar danos permanentes. Contudo, continuo a estar preocupada com os danos a curto-prazo que estão a ser infligidos aos tribunais, ao Congresso, à imprensa e ao processo eleitoral. Muita coisa depende de quanto tempo a situação atual irá persistir.
Apesar de tudo isto, Donald Trump foi eleito e menciona o papel que as “caixas de ressonância” em que muitos americanos estão presos tiveram neste processo. Acredita que a solução para os democratas derrotarem Trump está em trazer a política mais para o centro?
Sim, porque é no centro que estão os votos decisivos. Acredito que há muitos republicanos que estão disponíveis para votar num democrata, desde que o considerem um candidato responsável em assuntos-chave, como a economia e a segurança.
A tecnologia está, como afirma, parcialmente ligada à ascensão de movimentos populistas um pouco por todo o mundo. Mas não estamos demasiado focados nesta dimensão e a ignorar fatores como as políticas identitárias ou o ressentimento face às elites?
As democracias estão sob pressão, por inúmeros fatores, e muitos deles reforçam-se mutuamente. Por exemplo, uma mentira espalhada nas redes sociais pode agravar as tensões étnicas ou contribuir para um mal-entendido entre grupos religiosos. As novas tecnologias tornaram mais fácil àqueles que têm ressentimentos expressar a sua raiva e identificar outros que partilham as suas emoções voláteis.
Parece haver um consenso de que a “visão inspiradora” que surgiu depois do fim da Guerra Fria, como diz, desapareceu. Como é que os políticos democráticos podem hoje posicionar-se, num mundo onde os conflitos e as alianças são mais difusos do que nunca?
O valor da democracia não teve início com a Guerra Fria, nem acabou quando o Muro de Berlim caiu. Eu, por exemplo, continuo a sentir-me inspirada pela visão de pessoas que vivem em liberdade, escolhem os seus próprios líderes e ajudam a moldar as leis pelas quais são regidas. Não há nada de complicado em defender princípios democráticos. É só preciso fazê-lo.
Tem criticado as ideias de protecionismo e não-interferência que Trump defende até certo ponto, ao mesmo tempo que apoia a ideia dos EUA como “a nação indispensável”. Mas, tendo em conta eventos como a Guerra no Iraque, que provocaram muito ressentimento contra os americanos, não há alguma relevância no argumento dos que falam em demasiada intervenção norte-americana no mundo?
A Guerra do Iraque foi um erro, mas eu continuo a acreditar que o mundo beneficia quando os Estados Unidos trabalham em cooperação com outros países, em nome do bem comum. É por essa razão que fiquei muito desiludida quando a atual administração se retirou do acordo nuclear com o Irão e do Acordo de Paris, sobre as alterações climáticas, ambos alcançados durante a presidência de Barack Obama.
Olhando para a sua experiência como Secretária de Estado [1997-2001] e para como o mundo mudou desde então, faz sentido dizer que a diplomacia ainda é um instrumento eficaz? No livro fala das várias primeiras impressões que teve destes líderes quando os conheceu… A dimensão pessoal afeta muito a diplomacia?
A diplomacia continua a ser essencial, mas exige muito trabalho e muita preparação para ser eficaz. As relações pessoais podem ajudar a criar um ambiente favorável às conversações, mas não devem — e geralmente não o fazem — ser determinantes para o resultado final nas questões importantes.
Foi a primeira Secretária de Estado mulher nos EUA e tem defendido publicamente a necessidade de apoiar outras mulheres, como Hillary Clinton. Gostaria de saber qual é a sua opinião relativamente à recente discussão sobre a igualdade de género e o feminismo: um movimento como o #MeToo faz sentido em áreas como a política?
As mulheres merecem ser tratadas com dignidade em situações sociais e com total igualdade nos negócios, na política e perante a lei. Qualquer movimento que contribua para estes fins merece ser apoiado.
Refere-se a Vladimir Putin como um homem perigoso porque, à semelhança de Trump, é um líder cujas ações podem ser copiadas por outros. Considera que a situação na Rússia poderia ter sido diferente se o Ocidente tivesse tido outra atitude após a queda do Muro? E, atualmente, como é que os Estados podem lidar com a Rússia de Putin?
O Ocidente tentou ajudar a Rússia após a desintegração da União Soviética e tentou mostrar respeito pelos russos. Penso, contudo, que subvalorizámos as dificuldades de uma transição democrática. Nos anos 90, a qualidade de vida na Rússia deteriorou-se e a memória desse período contribuiu muito para a força de Putin. A par disto, não podemos sacrificar os direitos dos vizinhos da Rússia (como a Ucrânia ou os Estados do Báltico) para agradar ao Kremlin. Olhando daqui para a frente, penso que as tensões são inevitáveis, mas também há áreas onde os interesses da Rússia e do Ocidente coincidem e onde devemos ser capazes de colaborar.
Olhando para a Coreia do Norte, define o regime de Pyongyang como o único no mundo atual verdadeiramente fascista nos seus métodos. Visitou o país, conheceu o seu líder e lidou de perto com a elite, por isso gostaria muito de saber o que pensa sobre a cimeira de Trump e Kim Jong-un.
Os resultados, para já, são inconclusivos. A questão-chave neste momento é a mesma de quando eu visitei a Coreia do Norte, há quase 20 anos: está o Governo de Pyongyang disponível para fazer o que é necessário a fim de acabar com o seu isolamento internacional?
Crê que a frase de Mussolini que cita no livro, comparando a consolidação do poder ao depenar de uma galinha — uma pena de cada vez —, é a melhor forma de descrever como o fascismo se pode instalar? E, no caso de Donald Trump, ele já depenou algumas das penas ou afirmar isso é ir longe de mais?
A resposta à sua primeira pergunta é sim. Quanto à segunda, sim, Trump já depenou algumas dessas penas e dizer isso não é ir longe de mais.