Mais 400 mil pessoas jogam todas as semanas na lotaria instantânea e, dessas, 60 mil fazem-no todos os dias. Esta é uma das conclusões do relatório feito por uma equipa multidisciplinar da Universidade do Minho para o Conselho Económico Social (CES) sobre a chamada raspadinha, o jogo social com mais expressão explorado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Segundo o estudo, 3.09% dos adultos estão em risco de desenvolver problemas de jogo concluindo que os problemas com raspadinhas podem afetar 1,21% da população adulta, o que corresponde a cerca de 100.000 adultos em Portugal. Neste universo, cerca de 30.000 pessoas apresentam sinais de perturbação de jogo patológico.
Esta primeira fase do estudo “Quem paga a raspadinha” confirma a existência de uma relação inversa entre o nível de rendimento e a probabilidade de jogar. É nas classes de rendimento entre os 665 os 999 euros por mês que existem mais jogadores da raspadinha, cerca de 31,5% da amostra. Já os rendimentos abaixo dos 400 euros representam cerca de 10%. Se juntarmos os rendimentos até 664 euros por mês — uma barreira que está abaixo do salário mínimo nacional — estes representam 23,7% dos jogadores identificados. O que significa que 55% dos jogadores ganha menos de mil euros por mês.
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E quanto mais baixo é o rendimento maior é a probabilidade de jogar nas raspadinha quando comparado com rendimentos mais elevados. Essa probabilidade em quem ganha até 400 euros é 50% mais alta do que quem ganha 1.500 euros.
Considerando que este jogo é a principal fonte de receitas da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa — cuja missão atribuída pelo Governo é usar este financiamento público para dar a assistência aos mais vulneráveis — um dos autores do estudo não tem dúvidas de que a raspadinha funciona como um imposto regressivo que levanta questões de natureza ética. “Temos os pobres a financiar os mais pobres”, afirma Luís Aguiar-Conraria, um dos economistas da Universidade do Minho que faz parte da equipa que está trabalhar para o CES.
Em declarações ao Observador, Conraria destaca ainda a motivação referida pela esmagadora maioria dos jogadores frequentes — cerca de 83% dos que o fazem todos os dias respondem que o fazem para ganhar dinheiro.
“Não perguntamos quanto ganhavam, mas perguntamos porque jogavam e demos vários motivos. E o grande motivo dos que jogam com muita frequência é jogar para ganhar dinheiro. Claramente estão enganados, estão a trabalhar mal com as probabilidades. Nestes jogos, por definição, perde-se dinheiro”.
A primeira fase do estudo, que é apresentado esta terça-feira, fez o primeiro diagnóstico de qual é o perfil destes jogadores na população portuguesa e quais as respetivas característica socio-económicas. Extrapolando as respostas válidas para o universo do último censos de 2021, o documento admite que 60 mil jogam todos os dias, o que representa cerca de 0,7% da população. 380 mil jogam todas as semanas — 4,39% da população — e 310 mil por mês — 3,56%.
Despesa anual em jogadores frequentes chega aos 226 euros
De uma amostra inicial de mais de 3.000 entrevistados, o inquérito considerou 2.500 respostas válidas, mas nem todas as categorias têm esse número de respostas porque vários inquiridos desistiram de responder a meio. Numa das perguntas em que se nota essa diferença é na que quer saber qual é o gasto médio anual dos jogadores. Os dados recolhidos no inquérito apontam para menos de 40 euros (38 euros anuais), o que contrasta com as estimativas feitas pela própria Santa Casa, as quais apontam para um gasto médio de 150 euros por ano.
“Na realidade, gasta-se quatro vezes mais do que o nosso inquérito consegue apurar”. Conraria invoca a explicação dada pelo colega psiquiatra (Pedro Morgado) de que as pessoas mais compulsivas são as que não devem conseguir chegar ao fim do inquérito. E diz que pediu esses dados à empresa que fez o inquérito e que foi possível constatar em quem respondeu até essa pergunta do gasto (e depois desistiu sem concluir o inquérito, o que não permitiu usar a resposta do valor) que há uma “diferença brutal. Nessas pessoas a media de despesa é de 226 euros por ano, seis vezes mais, é absurdo e explica em parte o que nos está a escapar na amostra”.
Mesmo apanhando apenas uma “fração da realidade”, o diagnóstico permitiu confirmar o perfil do jogador frequente que Aguiar-Conraria descreve como sendo mais velho — “são os únicos que jogam claramente acima da média nacional e que puxam a média para cima” — tendo baixas qualificações — ensino básico e secundário e ocupando profissões não qualificadas do setor do comércio e serviços (funcionários de cabeleireiros, empregados de restaurantes e polícias, são exemplos avançados) com um destaque que surpreendeu o economista para a profissão de operário, aquilo que em inglês é classificado como “blue collar workers”. Os dados sugerem que este jogador é mais mulher do que homem, mas ainda não há certezas absolutas.
Outros resultados que vão ser desenvolvidos na segunda fase do estudo é a correlação identificada entre o consumo em excesso de álcool e tabaco com a frequência do jogo. “É claro que as pessoas que declaram beber quatro ou mais vezes por dia têm um padrão de jogo muito superior ao dos outros”. O economista assinala também como novidade a parte médica. “Temos dados que mostram que as pessoas com maior probabilidade de neuroticismo (instabilidade emocional) e com maior tendência para a depressão estão a jogar mais.
Restringir, não. Menos publicidade e prémios diferidos
Essas pistas serão exploradas na segunda fase do estudo que se irá focar no universo identificado de jogadores com entrevistas presenciais nos locais de recolha deste tipo de apostas e fazer um diagnóstico mais afinado sobre as pessoas que sofrem de alguma perturbação de jogo. O “que temos para já são tendências e pistas para explorar”. A terceira fase, a mais médica, irá incidir sobre pessoas a quem foi diagnosticada uma prática de jogo patológica associada a uma adição muito forte e às quais serão feitas ressonâncias magnéticas para comparar os resultados com as ressonâncias feitas com outros doentes com outros tipos de adição como a droga, para avaliar os mecanismos cerebrais que atuam cada tipo de dependência.
Os dados até agora recolhidos e dos casos descritos na literatura internacional de estudos sobre a lotaria instantânea parecem sugerir que em Portugal há casos mais graves de adição, admite ainda. Mas do ponto de vista pessoal, Luís Aguiar-Conraria assume que não é favorável a qual tipo de limitação no acesso a este jogo.
“Eu que sou a favor das drogas leves, não vou ser a favor da proibição deste tipo de jogo. Acho é que o Estado tem de se comportar como sendo uma coisa negativa. Uma coisa é proibir o uso do tabaco, outra coisa é fazer publicidade ao tabaco”. E dá como exemplo, o lançamento da raspadinha do património promovida pelo Estado em 2021 e que acabou por ser retirada.
Para além de ações pedagógicas junto dos jogadores, para lhes mostrar como funcionam as probabilidades, admite outras ações como a inibição voluntária de jogar, como acontece já hoje nos casinos, e o diferimento do pagamento do prémio para evitar que quem ganhe 10 euros não os possa receber logo. “Vemos que quem ganha 10 euros, compra logo cinco raspadinhas”.