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Quando a garota não prometeu “dar tudo no CCB”, ela estava a ser muito séria no seu esforço, apresentando um alinhamento de 25 canções com vários convidados e várias formas trovadorescas de cantar o amor, o escárnio e o maldizer
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Quando a garota não prometeu “dar tudo no CCB”, ela estava a ser muito séria no seu esforço, apresentando um alinhamento de 25 canções com vários convidados e várias formas trovadorescas de cantar o amor, o escárnio e o maldizer

Marisa Cardoso

Quando a garota não prometeu “dar tudo no CCB”, ela estava a ser muito séria no seu esforço, apresentando um alinhamento de 25 canções com vários convidados e várias formas trovadorescas de cantar o amor, o escárnio e o maldizer

Marisa Cardoso

"Mais do que um concerto, este é um chão de memória": a garota não e a canção sem final no CCB

Rodeando-se de convidados, a garota não celebrou no CCB o primeiro de dois concertos epitáfios da digressão do álbum 2 de Abril. À casa cheia lisboeta, seguir-se-á outra esgotada no Porto, no dia 9.

É dia 2 de dezembro de 2023. O Centro Cultural de Belém faz-se cheio para ver a garota que viveu até aos 26 anos no bairro setubalense 2 de Abril. Bairro, cuja foto é projetada, onde não há centros culturais como este e onde os Gipsy Kings se misturam com os versos de Freed From Desire e o ruído das obras infinitas e as buzinas dos carros e o kuduro e o fado e o latido dos cães.

Das colunas da sala saem barulhos que se envolvem como condimentos de um refogado apurado, ervas e especiarias soltando a sua quimera ao fogão, cozinhando possibilidades de vida que se cumprem ou que vão morrendo ali mesmo, como “sombras humanas” que são. Naquele bairro, ouvimos em voz-off a tal garota, as mães são bastiões de cada casa, mães que foram filhas e que serão mães de futuras mães, como no poema de Adília Lopes. As crianças brincam lá fora, fintando seringas abandonadas no chão e competindo pelas bicicletas que são escassas. “Faltava muita coisa, mas éramos tantos”. Sejamos todos bem-recebidos no mundo onde se fez Cátia Mazari Oliveira.

“Mais do que um concerto, quero que este seja um chão de memória. O chão dos nossos bairros onde nos iniciámos, onde começámos a desenhar a nossa coluna vertebral, o que queremos ser e o que viemos cá fazer. Se aceitamos e quanto, se recusamos e quando.” Assim se apresentou a garota não à plateia, naquele que foi o penúltimo concerto da digressão de 2 de Abril, álbum lançado em 2022 e que já leva ano e meio de estrada, mais de uma centena de estrados pisados.

Ouvimos o seu pedido depois de a cantora e compositora de 40 anos o ter datilografado numa máquina de escrever, a um canto do palco. Foram essas teclas, durante vários anos, que a salvaram de dores fundas, como a perda da irmã para a heroína e da mãe para a estrutura do SNS “que o governo valoriza menos do que devia”.

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No início estávamos longe de imaginar que o concerto anunciado como tendo uma hora e meia de duração viria, afinal, a alongar-se por três horas

Marisa Cardoso

O martelar das teclas confunde-se, a certo ponto, com o trabalhar de uma máquina de costura, aquela onde Cátia vira a mãe debruçar-se horas a fio para garantir que nada lá em casa faltava. “My love has got no money”, mas tem convicções fortes. Em 2 de Abril nunca escasseou a “democracia, a dignidade e os direitos fundamentais dos cidadãos”.

Terminada a introdução, desaparece a foto do bairro e ficam apenas umas quantas aparelhagens e rádios dos anos 90 ao dependuro no cenário. Sérgio Mendes, na guitarra, e Diogo Sousa, na bateria, entram de mansinho e de mansinho entra também a Canção sem final, a que diz que decretar o fim da arte é como decretar o fim da chuva.

Nesta altura estávamos longe de imaginar que o concerto anunciado como tendo uma hora e meia de duração viria, afinal, a alongar-se por três horas. Estávamos também longe de saber que quando a garota não…

(escrito mesmo assim, em minúsculas, porque as suas palavras fazem-se maiúsculas sem gritaria, a cada verso cantado com precisão e beleza poética)

…quando a garota não prometeu “dar tudo no CCB”, ela estava a ser muito séria no seu esforço, apresentando um alinhamento de 25 canções com vários convidados e várias formas trovadorescas de cantar o amor, o escárnio e o maldizer.

Fê-lo vestindo a mesma roupa que usara há praticamente quatro anos, na sua estreia no CCB. Na altura, tinha o pequeno auditório para ela. Hoje tinha o grande, esgotado há muitos meses. Embora não sendo mulher supersticiosa, confessou-nos, não deixou de pintar as unhas com o mesmo vermelho de então e de trazer para palco, já no final do concerto, a mesma cartolina preta que levantara nessa atuação de fevereiro de 2020: “Liberdade / querida Liberdade / o nosso chão tem sonhos e vontade”, liam-se os versos retirados da Canção a Zé Mário Branco, evocado numa entrevista de arquivo da RTP em que o ouvimos clamar por campo para a felicidade.

Os seus trejeitos e rimas, as suas lutas e desabafos são do presente. Ela canta o seu tempo, a sua geração desamparada num mar de recibos verdes ("80.nada"), a sororidade que dá colo aos dias em que dói tudo ("Dia do teu casamento"), a fratura exposta da habitação ("O que é que fica"), as mulheres que morrem de feminicídio.

“Ser feliz dá imenso trabalho”, tal como a sorte, lembrando o poema-discurso da garota não na gala de outubro dos Globos de Ouro da SIC, quando recebeu a estatueta de Melhor Intérprete. Os frutos desse trabalho mostraram-se maduros no palco do CCB, entre vários aplausos, discursos e histórias por trás das canções e para lá das canções.

Quem ali esteve não ouviu nenhum inédito. A viagem fez-se entre 2019, com Rua das Marimbas, nº 7, e o último álbum, 2 de Abril, com alguns parêntesis pelo meio. Aquele não era o momento de antever o que aí virá (há um ano, Cátia dizia-nos que estava a preparar um novo álbum), mas sim o momento de a garota não se partilhar com o público e reivindicar justamente o seu lugar entre os maiores do cancioneiro português. A premiação nos Globos de Ouro da SIC e a recente distinção da SPA, na categoria de Melhor Trabalho de Música Popular, são consequências naturais desse caminho.

Cátia Oliveira é herdeira de José Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco e Fausto sem que essa herança a pese ou restrinja. Os seus trejeitos e rimas, as suas lutas e desabafos são do presente. Ela canta o seu tempo, a sua geração desamparada num mar de recibos verdes (80.nada), a sororidade que dá colo aos dias em que dói tudo (Dia do teu casamento), a fratura exposta da habitação (Não sei o que é que fica), as mulheres que morrem de feminicídio:

Elsa, Lucília, Marta, Sílvia, Sara, Assunção, Madalena, Alda, Cassia, Maria, Sónia, Conceição, Sandra, Celestina, Cláudia

Assim são os seus nomes, projetados a letras brancas, gordas, sobre um fundo preto, durante a interpretação de “Mulher batida”. É preciso que a Constituição, a Bíblia da democracia (a única Bíblia para aqui chamada) se cumpra para que mais vidas não sejam ceifadas em vão, alerta a cantautora de Setúbal, terra de “sotaque lixado”, como uma vez notou numa entrevista ao Posto Emissor (Blitz/Expresso). A liberdade é um barco à vela / e o amor não é uma prisão.

Francisca Camelo, Sérgio Godinho, Luca Argel e Sandra Baptista: os convidados de a garota não no CCB

Marisa Cardoso

Esta foi uma das duas canções que contou com Sandra Baptista (A Naifa, Sitiados) em palco, a primeira de vários convidados da noite. Chegou em Mundo do Avesso, com um acordeão na mão, trocando-o por um baixo em Mulher Batida. Veio depois a menção a Sérgio Godinho e os olhos arregalaram-se esperando ver a paz, o pão, a habitação a entrar por aquele palco adentro, relembrando o momento em que garota e mestre se encontraram no ciclo Conta-me Uma Canção, em fevereiro deste ano. Mas Sérgio, explicou Cátia, tinha ficado em casa a arrumar a gaveta das meias e restava-lhe a ela interpretar sozinha Irmãos de Sangue

Dez temas depois, perceberíamos que tínhamos sido enganados. Mas antes dessa revelação, ainda havia um par de canções de amor que se queriam manifestar. Química, que chamou Renato Sousa e Iúri Oliveira para a guitarra e percussões, respetivamente, foi a primeira a anunciar-se. O amor é a coisa mais bela do mundo, dir-nos-ia Cátia, mas até no amor há entradas em falso, como a que se deu neste tema. Ainda nem a primeira estrofe tinha chegado ao fim e já era preciso recomeçar.

A Canção, uma “canção de amor meio torcida”, daquelas que dá para terminar relações, quebrou a química, mas felizmente Cátia Oliveira tinha uma versão da “melhor música de amor escrita em Portugal” para nos consolar. Porque Me Olhas Assim, a escrita escultória de Fausto moldando-se na melodiosa voz d’a garota não.

Não demorou muito para que Adamastor arrumasse de vez com o romantismo, essa canção que se transformou num videoclipe de impressionante sensibilidade artística e no qual o Jardim das Delícias Terrenas de Bosch dialoga com a figura feminina da obra de Vermeer e com o olhar crítico de a garota não.

Três horas depois, estava tudo dito e o futuro em aberto para dizer muito mais. Enquanto houver uma folha em branco entalada numa máquina de escrever ou uma guitarra que se deixe calcar pelos dedos desta garota.

Estava assim findado o capítulo amoroso, era hora de subir para o Prédio Mais Alto — e não é que ela subiu mesmo a uma plataforma elevada, concretizando um desejo antigo? A tela, onde antes aparecera o éden e o inferno de Bosch e a senhora a beber chá de Vermeer (neste caso, uma senhora negra), levantava-se para mostrar o Ensemble de Cordas da Academia de Música de Espinho e o arranjo orquestral desenhado numa colaboração celebrada há uns meses.

Já depois de O que é que fica (ainda pensámos que Xullaji pudesse aparecer, mas de Prétu só vimos uma projeção), chegou Luca Argel, com quem a garota não gravou Países que ninguém invade, no final de 2022. Juntos, protagonizaram um dos momentos mais apoteóticos da noite: um medley luso-brasileiro.

Começou com Coisas Bunitas, de Sara Tavares, homenagem feita através da canção que sussurra amor cheio de sabor ao ouvido, como sempre foi o amor de Sara Tavares. A partir daí, foi uma Roda Viva que intercalou as palavras de Chico Buarque com Allen Halloween (No Love), Jorge Palma (Na Terra dos Sonhos), Sam The Kid (Poetas de Karaoke), Da Weasel (Pregos) e finalmente Sérgio Godinho. A paz, o pão, habitação, saúde, educação deram as boas-vindas ao eterno escritor de canções, que ali entrou num passo curto e decidido para uma ovação de pé. Que força essa, amigo.

Sérgio, sorridente e bem-disposto, comentou que preferia ter marcado aquela entrada com um copo de vinho e não um copo de água, como o que lhe levaram no final de Liberdade. Talvez o quisesse ter feito para brindar à mulher “cuja qualidade se impõe” e é “muito importante” para todos os músicos, como fez questão de elogiar Cátia. Ela, por seu lado, falou do fascínio que tem sido ler o “homem por detrás do homem” desde que se conheceram no início do ano, esse homem que já nos deu tantas canções quantas cerejas dá uma cerejeira a cada estação, rosas uma roseira, palavras um poeta.

Cátia Oliveira chamou todos a palco, os visíveis e os invisíveis desta digressão, para fazer a derradeira vénia coletiva

Marisa Cardoso

A admiração mútua foi selada com Dilúvio: Cátia olhando para Sérgio Godinho como se ele fosse ao mesmo tempo Bob Dylan, Sérgio olhando para a garota não como se ela fosse ao mesmo tempo Rita. Findou-se o tema, mais uma ovação, fecharam-se as cortinas e no fim só restámos nós.

Estaria tudo bem se o concerto terminasse desta forma, mas a garota não, que bem antes de entrar em palco pôs a tocar uma playlist com o nome “Setúbal não é só choco frito”, ainda tinha mais umas coisas para nos cantar. Ela ainda nos queria dizer que havia dias em que acordava angustiada e não sabia o que fazer com tanta estrada (A grande máquina) ou que é urgente o amor, citando o poema de Eugénio de Andrade (Urgentemente) tornado esconjura de A sede do Xega. “Convidei o André Ventura, mas ele não quis vir”, brincou, para depois sublinhar que ele não viria mesmo, sossegando quem improvavelmente temesse tal bizarria.

Não apareceu ele, mas apareceu Francisca Camelo, vinda do Porto, declamando em Tantos Desencontros o seu manual de instruções de como cair: O truque é não criar danos / Mas aterrar perto do chão o suficiente / Para que fique a dúvida. Saber cair é uma ciência e tudo em Francisca, diz a garota, é poesia.

Que mulher é essa e 422, a “música de amor” escrita para denunciar os lucros extraordinários da Galp, fecharam o alinhamento (a par da tal que é para Zé Mário Branco e de uma interpretação última de Dilúvio, desta feita a solo, sem Sérgio Godinho). Não houve encore e ninguém o reivindicou. Cátia Oliveira chamou todos a palco, os visíveis e os invisíveis desta digressão, para fazer a derradeira vénia coletiva. Três horas depois, estava tudo dito e o futuro em aberto para dizer muito mais. Enquanto houver uma folha em branco entalada numa máquina de escrever ou uma guitarra que se deixe calcar pelos dedos desta garota, haverá sempre uma boca (e uma cartolina) que brada: Liberdade / querida Liberdade / o nosso chão tem sonhos e vontade.

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