Estava sozinho, num hotel, quando teve os primeiros sintomas: um formigueiro nas mãos e nos pés, o coração a bater muito rápido, a aflição de quem tem quase a certeza de que está a morrer. Só melhorou com um ansiolítico, mas quis fazer todos os exames físicos para ter a certeza de que não era um problema cardíaco.
Ator, rosto conhecido no Brasil e em Portugal, muito por causa das novelas, Marcelo Serrado fez terapia, ganhou novos hábitos de vida e esteve medicado para controlar as crises de pânico e ansiedade. Quando sentiu que já estava bem, parou de tomar os medicamentos, de um dia para o outro. “Um erro”, diz. Há três meses, acabado de entrar num avião para uma viagem de nove horas, aconteceu tudo outra vez.
Nesta entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, agora incluída no projeto Mental, conta que só depois do primeiro episódio percebeu que há muitas pessoas com o mesmo problema, apesar de alguns acharem que é só “frescura”. Na conversa, gravada na Biblioteca de Alcântara – José Dias Coelho, explica que tenta olhar para a ansiedade e o pânico como uma espécie de entidade, com quem pode dialogar: “A crise vem, eu sei que ela está vindo, converso com ela: ‘Espera, fica aí do teu lado. Não vem aqui não’.”
Um vídeo que partilhou nas redes sociais e um programa do “Fantástico” acabaram por transformá-lo num orador sobre o tema. E percebeu que partilhar a sua história com outros também o ajuda. Como aqui em Lisboa, onde o ator esteve com o espectáculo “SINATRA A WANDO e outras Bossas”: “Estava andando pela rua e uma senhora disse-me: ‘Posso te dar um abraço? E dizer que você não está sozinho’.”
[Veja aqui a entrevista completa a Marcelo Serrado]
Consegue recordar-se do momento em que viu os primeiros sinais de que alguma coisa não estava bem consigo?
Consigo. 2020, estava num hotel no Rio de Janeiro e comecei a sentir… é uma sensação física, não é? No meu caso, começou com os pés formigando, as mãos formigando, o coração acelerou e, como não sabia o que era, achei que ia ter um enfarte, alguma coisa do coração. E isso começou a piorar. Porque, na verdade, a mente vai-te traindo, vai colocando só coisas ruins, pensamentos ruins.
Pensou: isto é um enfarte, vou morrer.
Vou morrer, ninguém vai me ajudar, vou ficar sozinho.
Estava sozinho?
Estava sozinho.
E estava a fazer alguma coisa, estava enervado, preocupado com alguma coisa?
Estava trabalhando muito, estava preocupado, talvez, com algumas coisas. Mas liguei para a minha mulher e ela não atendia, porque ela estava em casa, eu estava trabalhando. E consegui ligar para os parentes da minha mulher, para o pai dela e para a mãe, a minha sogra.
No meio dessa crise?
Sim, no meio dessa crise, duas da manhã, mais ou menos. Só que, nesse tempo, do local em que eu estava até a casa deles, a cabeça foi meio zonza, meio desfalecendo. Cheguei lá, ela olhou para mim e falou: “Você está branco.” Eu pensei: “Piorei.” Porque quando a pessoa fala “você está branco” é pior. Ela ligou para o médico — eu falei “liga para o meu médico porque não estou bem” — e o médico percebeu pelos sintomas que era alguma coisa ligada à mente, não ao físico.
Só por essa conversa pelo telefone?
Sim. Mandou tomar um ansiolítico, deu-me um remédio e eu apaguei. No dia seguinte, fui descobrir o que era. Falei: “Tem alguma coisa errada comigo” e fiz todos os exames. Nada. Zero corpo, tudo bem.
Foi fazer os exames porque não ficou convencido e queria ter mesmo a certeza?
Isso foi a primeira vez. É bom ficar claro que isso foi na época da pandemia, lá para dezembro de 2020. Tinha muitos amigos morrendo, a coisa estava meio turva. Então existe essa preocupação também da vida, não é? Porque a pandemia criou um corte na vida do ser humano, antes e depois. Acho que, daqui a 100 anos, como falaram da peste negra, da peste bubónica na Europa, as pessoas vão falar da pandemia, uma geração que passou pela pandemia. E nós estamos aqui, sobrevivemos a isso. E aí fui descobrir o que era, fui investigar o que era. Através de terapia, descobri que era uma coisa da minha mente.
Nesse processo de tentar perceber o que é, começa a fazer exames físicos, para perceber se é alguma coisa do coração?
Coração, exames de cabeça, todos os exames que você pode imaginar.
E quando todos eles dão negativo?
“Meu Deus, o que é que eu faço?”
Quem é que lhe diz “isto é capaz de ser um problema de saúde mental”?
Eu fazia já terapia e o terapeuta falou “vai fazer uma terapia mais profunda sobre isso”. Aí comecei a ler muita coisa sobre o assunto. Vi que o Jim Carrey, humorista, tinha isso. O Gabriel Medina, que é um surfista brasileiro, teve isso. A Simone Biles teve isso. Fazendo um paralelo agora, eu estava no Rock in Rio, no Brasil, e vi o cantor dos Imagine Dragons. E ele falou que queria agradecer à terapeuta dele por ele hoje estar bem. Então, você vê que eu me conectei com essas pessoas de uma certa maneira.
Já tinha feito terapia antes?
Sim, já fazia terapia.
Porquê? Normalmente as pessoas acham que só se vai a um terapeuta quando se tem um problema para resolver.
Não, já fazia terapia há muitos anos. Só que sempre fui saudável, fazia exercício, trabalhei sempre muito. E aí comecei a fazer uma terapia muito interessante, chamada Tip Clínicas, que vem de Belo Horizonte, no estado do Rio. Você senta numa cadeira, a pessoa fica te induzindo a voltar ao passado. Não é regressão. E comecei a descobrir várias coisas do meu passado e que me conectaram com o que eu tive. Porém, também fui a um psiquiatra, fui tomar remédios.
Porque é que sentiu necessidade de ir a um psiquiatra também?
Porque eu precisava de saber se era uma coisa química também, falta de serotonina, precisava de remédios.
Sentiu que só a terapia não ia funcionar?
Não ia me ajudar.
E não teve em nenhum momento aquele estigma que existe muito de “só vai a um psiquiatra quem é maluco”?
Mas isso não existe…
Existe, na cabeça de muitas pessoas…
Um estudo diz que 30% da população mundial sofre de algum problema psíquico ou vai sofrer. Principalmente com as redes sociais. O que é que acontece com o relato que eu fiz desta experiência? Aqui mesmo, em Portugal, estava andando pela rua e uma senhora disse-me: “Preciso de tirar uma foto com você. Posso te dar um abraço? E dizer que você não está sozinho.” Então, eu me conectei. Vi que não estou sozinho nisso. Tem gente, muita gente que passa por isso.
Voltemos ao psiquiatra. É-lhe feito um diagnóstico?
Foi um diagnóstico de crise de pânico e ansiedade. “Ok, como é que se trata isto?” Com remédios — o homem fez os remédios para nos ajudar, para termos uma vida boa. Mas também fui me alimentar melhor, fui fazer mais exercício físico, fui trabalhar a mente, meditar — hoje medito todos os dias —, fui fazer coisas que pudessem me ajudar. E li um livro que me ajudou muito, chamado Poder do Subconsciente, de Joseph Murphy. É um livro que fala sobre tratar isso, não como um fantasma, mas como, por exemplo: a crise vem, eu sei que ela está vindo, converso com ela: “Espera, fica aí do teu lado. Não vem aqui não.”
Consegue antecipar quando ela vai acontecer?
Consigo antecipar. E passa-se tempo, tomei dois anos de remédios, não tive mais nada. Um ano, parei de tomar remédios e falei “estou curado, estou bem”.
Parou de tomar com a indicação do médico para parar de tomar?
Não, não falei com ele.
Sem fazer o desmame, sem deixar devagarinho?
Não, não fui fazer o desmame. Falei: “Eu estou bem.” Um erro. Realmente, eu estava bem cartesiano nisso. Parei, simplesmente parei.
Sentia que estava bem? Não tinha crises?
Não tinha crises.
E não voltou a ter desde aquela primeira?
Não. Tive um pouco de ansiedade, um dia, mas aí eu me acalmei, respirei.
Já tinha visto o que podia acontecer e como podia ficar aflito, com aquele ataque de pânico. Isso condicionou de alguma forma a sua vida, naqueles primeiros tempos?
Estava o tempo todo preocupado. Pensava: “Meu Deus, será que vem a coisa aí? Será que vai acontecer de novo?”
E falava com pessoas sobre isso?
Sim, falava com as pessoas, conversava muito com as pessoas. Detalhe: como tive a primeira crise num hotel, durante uns seis meses, de toda a vez que ia para um hotel, achava que ia ter uma crise. Toda vez que ia para um hotel, falava “meu Deus, vou ter alguma coisa”.
E fazia o quê? Ia sozinho na mesma?
Tomava um remédio, um ansiolítico, para me acalmar. Mas procurei não ir muito a hotéis nessa época.
E afetou mais o seu trabalho ou a sua família?
Mais na minha família. No meu trabalho, nunca deixei isso acontecer, mas, de uma certa maneira, afeta o trabalho porque você fica também preocupado que algo vá acontecer no trabalho.
Então decidiu parar de tomar os medicamentos.
Decidi parar. Estava bem, parei. Há três meses, fui fazer uma viagem à Disney. Tinha acabado de sair de uma novela, um filme, uma série, muito trabalho. Viajei com a família, era um momento de descanso com a família, tranquilo, vida feliz. “Família Margarina”, como se diz no Brasil. Como no filme A Noviça Rebelde [Música no Coração], todos felizes, cantando. A família foi na frente, eu fui noutro lugar do avião. Detalhe: eu não tenho medo de andar de avião, nunca tive. Entrei no avião e senti-me mal. Só que eu sabia o que era: pés gelados, mãos geladas…
Exatamente da mesma maneira?
A mesma coisa: formigamento, coração acelerado. Aí eu falei: “Faltam mais nove horas de viagem.” Era Rio – Orlando. “E agora?”
Entrou e sentou-se já assim?
Não, uma hora depois.
Já não havia hipótese de sair.
Não tinha como. A minha mãe já fez um avião parar para sair, ali não dava. E aí eu falei: “O que é que eu tenho de fazer?” Não tinha remédio nenhum comigo. Porque eu estava bem, não é? Parei, nunca mais tive.
Nem de SOS, de emergência?
Nada, nada. O que é que eu faço?
E não tinha ninguém da sua família ao seu lado?
Não, a família estava na frente. A minha mulher, com os meus filhos, tudo. E eu atrás, numa saída de emergência. Estava eu, uma cadeira vazia e um senhor do meu lado, vestido de branco, cabelo branco. Eu falei: “É Deus, não é?” [risos] Um senhor de branco, vestido de branco… E aí lembrei-me do livro. Primeiro, comecei a rezar. Rezar, rezar, rezar. Me apeguei muito na fé. Cobri os meus pés com um pano porque estavam frios, cobri as minhas mãos, respirei e nada. A minha mente só me traindo: “O avião vai cair, daqui a pouco vou estar com um desfibrilhador, pessoas me acudindo.” E tem uma história engraçada: nisso tem um passageiro que está lendo um livro. Ele abre o livro e está escrito “Como cuidar da sua cabeça”, saúde mental. Eu falei: “Isso é um sinal!” Perguntei: “Você tem um comprimido aí? Ele falou “você está mal?” “É, estou.” Peguei o remédio dele e deitei fora. Não sabia se o remédio era bom ou não. Enfim, desespero, não é? Fui à casa de banho — você quer urinar muito nesses momentos. Voltei. Fiquei inquieto. O passageiro do lado, “Deus”, era a presença de Deus aqui, do meu lado. E comecei a conversar com ele, lembrei-me de distrair a mente, desfocar de mim. Porque é um matrix, aquela coisa que vai entrando dentro de você e, de repente, toma conta de tudo. Pensei: “Isso vai me tomar e vai ser um caos.” Vi que a situação estava começando a piorar internamente e conversei comigo mesmo.
O que é isso de começar a piorar internamente?
É uma onda que vai subindo e subindo. É uma onda que é um monstro. Isso dura 15 minutos no corpo, eu sei disso, só que tem gente que se joga da janela, tem gente que não aguenta. Às vezes você vai ao hospital e os médicos dizem que não tem nada, mandam embora, “não tem nada de mal, está tendo uma crise de pânico”. Algumas pessoas minimizam isso. Eu já ouvi muito também: “Frescura, frescura.” Vá você ter uma frescura dessas! Então, comecei a falar com o tal homem, “Deus”. Fiquei três horas falando da minha vida, contei a minha história toda, da minha família. Ele contou um pouco também. Fui malandro, não é? Faltavam duas horas para o avião chegar e pensei: “Opa, me dei bem.” Então, consegui passar o problema. Nisso, chego à minha mulher lá na frente: “Você tem um comprimido aí?” Ela perguntou: “Está mal?” Falei: “Estou meio mal.” E as crianças dormindo no colo dela. “Não acorda eles, vamos assustar as crianças.” O papai está mal, imagina! O papai é herói, não é? E aí ela falou “tenho” e me deu o remédio. Eu não tomei, pus no bolso. Porém, só o ato de o pôr no bolso…
Saber que o tinha ali.
O SOS estava comigo. Ufa! Pousou o avião, cheguei para o “Deus” e disse “quero te agradecer, você salvou a minha vida, eu tive uma crise de pânico”. E ele: “Rapaz, não percebi nada, você é bom ator mesmo!” Esse homem me salvou. Cheguei à Disney, 10 dias na Disney com a família, fomos à montanha-russa e eu: “Gente, vai na montanha-russa sozinho, que eu não estou preparado.”
Mas não foi ao médico lá em Orlando?
Liguei para o médico. Ele falou: “Se acalma, curte aí, esquece.” Beleza. Fiquei com isso na cabeça. Tinha parado de tomar os remédios, não tinha de tomar, estava bem. Nisso, passei 10 dias. Aí é que é o turning point. 10 dias na Disney, beleza, aquela situação toda. Voltei para o Brasil. Miami – Rio. Cheguei em Miami e pensei: “Meu Deus, vou ter de embarcar de novo.” Sabia que isso podia acontecer. Quando fui embarcar, cheguei para a minha mulher, avião embarcando, e disse “não vou”. Ela: “Como assim?” Eu: “Não vou.” Ela: “Você está brincando. Os seus filhos estão aqui.” Meu filho pequeno: “Papai, o que houve, papai?” Chamei ela para o lado e ela viu o olhar do meu desespero, começou a chorar: “Você não vai. Fique em Miami. Eu venho te buscar.”
Porque ela viu em si que estava transtornado?
Transtornado. E que eu não ia conseguir.
Nesse momento, estão no aeroporto, o que é que sentia? Tinha medo de ter medo?
O medo de ter medo. Eu leio uma coisa que é assim: não ter medo de ter medo. Hoje essa frase para mim é contundente. Faço, hoje em dia, mindfulness, que tem uma frase que diz “não ter medo de ter medo”. Então, não tenho medo de ter medo. Hoje em dia, não tenho. Porém, naquele momento tinha. A minha loucura era tanta que pensei em pegar um carro, descer pela América Central, México, Guatemala, Costa Rica, Venezuela, Colômbia, de Colômbia pego um voo de quatro horas e chego ao Brasil. Beleza, tranquilo. Eu ia demorar o quê? Seis meses para chegar ao Brasil? Pensei: “Estou completamente louco.” Nessa altura, eu já tinha publicado na internet um vídeo sobre o que tinha acontecido comigo. Foram 6 mil comentários, 250 mil visualizações, Ivete Sangalo comentando. Um vídeo falando “gente, cuidem da sua mente”. E o vídeo explodiu no Brasil. E comecei a ler essas mensagens no aeroporto.
Foi buscar esse vídeo às suas redes para ver as mensagens?
Falei para as pessoas cuidarem da mente, com o que tinha acontecido comigo. Aí comecei a ler aquelas mensagens todas e aquilo me acalmou, foi me acalmando: “Eu não estou sozinho, olha quanta gente passa por isso.” Liguei para o meu médico, meu médico ligou para o psiquiatra, o psiquiatra não atendia. Liguei para um psiquiatra novo e ele me mandou dois vídeos falando sobre o que era isso no corpo humano, como é que se dava isso no corpo humano, quimicamente. Vi os vídeos e falei: “Tranquilo.” E ele falou: “Você vai pegar um voo em escala, Miami – Panamá, de dia; Depois Panamá – Recife. Tomei o SOS, quatro gotinhas. Cheguei ao Panamá, tomei mais três. Então fui meio dopado, tranquilo. Cheguei ao Brasil, tive uma crise de choro quando cheguei. Cheguei ao seio da família, não é? Aí fui me tratar, fui para BH, fiquei uma semana lá fazendo tratamento psiquiátrico. E vi a quantidade enorme de gente famosa, Lady Gaga, falando que tinha problema.
Que tratamento psiquiátrico foi esse?
Foi exatamente esse. De um passado, voltando ao passado, vendo a minha infância.
Mas foi assim uma coisa intensiva durante uma semana?
Não, você fica sentado numa cadeira, tipo cadeira de primeira classe de avião. Uma pessoa do teu lado, ela te coloca uma venda. Pode entrar na internet lá, botar TIP Clínicas. Sensacional. E lá eu descobri coisas, foi um deep. Também fui fazer yoga, fui fazer meditação, fui tentar alguma fé — alguma coisa que me prendesse numa fé.
E voltou à medicação que tinha parado?
Voltei a medicação. Hoje em dia estou medicado. Depois eu peguei vários aviões. Teve um avião caiu no Brasil. Eu apanhei esse avião duas semanas depois. Ia uma mulher ao meu lado e fui eu que a acalmei, “está tudo certo”.
Porque o seu medo não era dos aviões.
O meu medo não era do avião. Vim para Portugal e isso foi uma questão. “Meu Deus, Rio – Lisboa são nove horas.” Pensei: vejo um filme de três horas, já estou chegando em Lisboa. Quando entrei no avião para Lisboa, falei: “Opa, olha, está tudo bem.” Vi as pessoas chegando… Você sabe que está ali, não é? Há uma coisa que está ali. Vi um filme — não vou pôr um filme tipo The Monsters, Halloween, um filme de terror. Pus uma comédia romântica, coisas leves. Quando tive a primeira crise, fiquei vendo Peppa Pig [A Porquinha Peppa], aquele desenho animado. Hoje vejo aquele porco rosa e tenho vontade de o matar. [risos] Se você tiver um ataque de pânico, não veja Peppa Pig. [risos]
Então, está numa fase em que tem tudo controlado?
Tudo controlado. Porém, respeito a ansiedade. É quase como uma entidade. Enrico Caruso, que era um cantor de ópera de 1910, italiano, muito famoso — no livro, o Joseph Murphy diz isso —, teve uma crise de pânico quando foi cantar para duas mil pessoas. Não conseguiu cantar, voltou para o camarim dele. De repente, olhou no espelho e falou com a crise como se fosse uma entidade, um fantasma, alguém. E eu faço um pouco isso. Eu sei que ela está ali, então eu converso com ela: “Não, você não vem, não vou deixar.” E respiro também. Tem uma respiração muito importante aqui pelo diafragma. A gente respira por aqui. Se você atira a respiração para o diafragma, ela vai te acalmando.
E essas técnicas foi aprendendo nas várias áreas que explorou para ajudar, a meditação, o yoga?
Fiz uma busca intensa. Bom, cheguei ao Brasil, o Fantástico me ligou. O Fantástico é um dos programas com mais repercussão no Brasil, na Rede Globo. E eu falei sobre o acontecido. Como um alerta de saúde mental, uma pessoa famosa, uma família. “Marcelo Serrado tem isso? Imagina!”
Existe em Portugal um estigma associado à saúde mental, e a ideia de que a doença mental só acontece às pessoas fracas. Também existe no Brasil?
Sim, total, acho que no mundo todo. O fracasso, a pessoa que está mal… Gente, o Bourdain, que tinha o programa da CNN. A Lady Gaga toma remédios e olha o sucesso que ela tem. Jim Carrey, Gabriel Medina, um dos maiores surfistas do mundo, Simone Biles. Vendo essas pessoas todas, isso me confortou. Então, cheguei ao Brasil, o Fantástico fez essa matéria. Aí, tomou uma repercussão muito grande. E recebi um telefonema dos Recursos Humanos de uma empresa: “Você quer fazer uma palestra sobre isso?” Respondi que não, não sei falar sobre isso. Aí falei com o meu psicólogo. E ele: “Fala, vai ajudar muita gente se conectando com as pessoas.” E hoje em dia a minha vida mudou. Eu sou uma pessoa que fala sobre isso. Vou fazer um documentário na Amazon sobre a minha jornada, sobre o que aconteceu comigo. E falo, faço inúmeras palestras sobre isso no Brasil. Não de cura, porque isto não tem cura. É uma manutenção, você convive com isso. Eu não queria ter isso. Não procurei isso, aconteceu comigo. Se você perguntar para o cantor dos Imagine Dragons, ele não queria ter isso. A gente não quer ter isso. Porém, existe um porquê de você ter isso. Eu tenho um zumbido no ouvido constante, por causa de uma crise de pânico que tive lá atrás. Há algumas sequelas daquilo que eu tive. Mas estou aqui, estou vivo, estou respirando, tenho saúde, estou indo aqui fazer um show em Lisboa, vou para o Rio de Janeiro, chego, já vou fazer a minha peça de teatro, filmar. Estou trabalhando. Porém, agora tento fazer uma coisa de cada vez.
Isso foi o que mudou na sua vida?
Foi.
Começou a ter mais cuidado com a quantidade de coisas que estava a fazer?
Sim. Por exemplo: estou aqui em Lisboa e ontem uns amigos meus diziam “vamos para um lugar, vamos para outro lugar”. E eu falei: “Não, vamos ficar só aqui. Depois a gente vai para outro lugar.” Antigamente eu ia para tudo quanto era lugar. O telemóvel, por exemplo: agora durmo e deixo isso na casa de banho. Tirei a televisão do meu quarto, a televisão tem uma coisa magnética. O quarto é o seu casulo, você precisa de entender que vai dormir, tem de desligar. Então, mudei algumas coisas na minha vida.
Há pouco falava sobre aquela crise no avião, os seus filhos estavam a dormir, disse à sua mulher para não os acordar porque não queria que eles o vissem nessa posição em que medida é que a existência deles e a preocupação com não mostrar o pai em dificuldades também contou para a sua necessidade de falar sobre o assunto e de resolver o seu problema?
Bastante, Hoje em dia, eles sabem. É notório. Eles: “Pai, está tudo bem? Você está bem?” Eu falo: “Estou ótimo, filho. O pai teve uma crise de ansiedade.” Então, eles já sabem o que é isso, eu contei. Até porque saiu em tudo quanto é lugar, não é? Fiquei um pouco preocupado com o estigma depois. “O Marcelo… será que vou chamá-lo para trabalhar? Teve uma crise…”
Passou-lhe pela cabeça essa ideia?
Sim, mas não…
Não aconteceu? Não sentiu em algum momento que, quando foi contratado para um trabalho, alguém lhe perguntou “mas está tudo bem?”?
Não sei se houve alguma coisa nas minhas costas que aconteceu, mas creio que não. Acho que coloquei tudo de uma maneira tão leve e tão positiva, não como uma tragédia. É trágico, pode ser trágico, mas tentei pôr de maneira a mostrar “estou aqui”. As pessoas viram-me no Rock in Rio, em vários lugares. Eu estou saindo, não estou dentro do quarto — o que poderia acontecer também.
Não está assim, mas está atento.
Estou atento.
Tem alguma técnica para identificar as situações, os momentos, ou aquele início em que “o monstro” está a chegar?
O monstro não tem vindo, isso me dá uma calma. Tenho uma certa preocupação se o monstro vier, como é que vou lidar com ele. No outro dia, jantando com a minha mulher na praia no Leme, no Rio de Janeiro, eu falei: “Vamos sair daqui, não estou bem.” Fomos andar na orla, fomos ver o mar e passou. Ela também já sabe.
Por isso é que também é importante envolver a família, para a família poder ajudar?
Sim. Quando eu ia naquelas montanhas russas enormes na Disney, aquilo é uma loucura. A dada altura, o meu filho pediu “vai pai, vamos na outra.” Eu falei: “Vai a mamãe.” A mãe já tinha ido a 200. “Não, vamos com o papai.” Eu falei: “Deixa o papai aqui.” [risos]
Em Portugal é um dos países da União Europeia com mais casos de doença mental. E há uma grande dificuldade de as pessoas terem ajuda, porque os serviços públicos não funcionam como deviam funcionar. Essa dificuldade também existe no Brasil?
Acho que o SUS agora está ajudando já na saúde mental. E acho que existe uma lei agora brasileira que você não pode demitir a pessoa que tem um problema de saúde mental. Isso é muito bom nas empresas, porque antigamente era: “Está louco, está meio maluco.” Agora não pode. Os recursos humanos das empresas estão abraçando essas pessoas. Isso é muito legal.
Há dois Marcelos diferentes antes e depois destes episódios?
Estou mais atento com o outro, com o próximo. Estou mais condescendente com o ser que está à minha volta. Estou mais ligado na frase de “não ter medo de ter medo”. Não tenho medo de ter medo. Se tiver medo, tudo bem, respeito isso. E me apego na fé, também, alguma fé. Rezo e oro para que tudo dê certo. Ontem estava numa entrevista aqui em Lisboa com a Júlia Pinheiro, no programa da Júlia, e ela me perguntou: “O que é o sucesso para você?” Sucesso é isso: estou aqui com você, falando, respirando, aqui em Lisboa, trabalhando, estar com a minha família, com os amigos. A nossa vida é uma correria, tenho uma vida muito corrida, de trabalho e família e tudo. Então, procurei tirar um pouco o foco de estar sempre a galgar alguma coisa. Para quê?
Agradecimento: Rede de Bibliotecas de Lisboa
“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento que agora faz parte do Mental, a secção do Observador dedicada a temas da Saúde Mental. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças. Pode ler aqui as entrevistas anteriores:
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Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
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