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Quando, na tarde deste domingo, o bispo Rui Valério presidir no Mosteiro dos Jerónimos à missa solene que marca o início formal das suas funções como novo patriarca de Lisboa, vai deixar de ser um dos bispos mais discretos do país para se tornar naquela que é, possivelmente, a figura mais mediática da Igreja Católica em Portugal — ainda que, do ponto de vista formal, o patriarcado de Lisboa seja apenas uma entre as 21 dioceses católicas do país.
Durante os últimos cinco anos, Rui Valério foi o bispo das Forças Armadas e de Segurança, função na qual foi responsável pelo acompanhamento espiritual dos militares portugueses e que o levou a viajar a lugares como a República Centro-Africana e o Afeganistão para visitar as tropas nacionais em missão no estrangeiro. Foi esse o cargo mais visível que assumiu — mas o percurso de vida de Rui Valério, a partir deste fim-de-semana Rui I, 18.º patriarca de Lisboa, mostra muito mais do que a dedicação à vida militar.
Nascido na década de 1960 a 20 quilómetros de Fátima, Valério tem uma devoção especial a Nossa Senhora de Fátima (que evoca no seu brasão) e nunca abdicou de uma vida simples. Membro da Congregação dos Missionários Monfortinos, Rui Valério estudou Filosofia e Teologia, tornando-se um intelectual de reconhecida qualidade, sem nunca perder o contacto com a vida quotidiana de cada crente: foi pároco no Alentejo profundo e nas periferias de Lisboa.
Rui Valério, bispo das Forças Armadas, nomeado patriarca de Lisboa
Durante a sua missão como pároco na Póvoa de Santo Adrião, fez questão de, à maneira do Papa Francisco, sair com frequência da igreja para percorrer os caminhos dos bairros sociais mais empobrecidos da periferia da capital. Já como bispo, continuou sempre a viver num apartamento partilhado naquela freguesia, juntamente com outros padres monfortinos, a lavar a loiça e a ajudar no que era preciso na paróquia, celebrando missas, batizados, casamentos e funerais. Só esta semana, com a proximidade da tomada de posse, teve de se mudar para a Casa Patriarcal de Lisboa.
Ao Observador, o padre Carlos Fernandes, que conheceu Rui Valério com 11 anos e que se manteve seu amigo durante toda a vida — estiveram juntos em Fátima, Roma, Castro Verde e Póvoa de Santo Adrião —, traça um perfil do bispo, que diz ter noção da dificuldade da missão que vai enfrentar, e confidencia um desabafo recente de Rui Valério: não quer que lhe falte o tempo para visitar as paróquias, para conviver com os diocesanos e para acompanhar os padres.
O amor à filosofia, à teologia e ao futebol
Rui Manuel Sousa Valério nasceu na véspera de Natal de 1964, na freguesia de Urqueira, em Ourém, na diocese de Leiria-Fátima — a 20 quilómetros do Santuário de Fátima, a capital do catolicismo português. Desde criança, a espiritualidade mariana teve um lugar fundamental na vida de Rui Valério. Numa entrevista à Rádio Renascença em 2019, contou que a sua avó materna tinha estado presente na Cova da Iria no dia 13 de outubro de 1917, no dia da última aparição de Nossa Senhora aos pastorinhos Jacinta, Francisco e Lúcia — em que teria ocorrido o célebre milagre do Sol. A proximidade com que a avó lhe falava de Fátima era tal que o pequeno Rui chegou a acreditar que Nossa Senhora fazia parte da sua família.
A fé de Rui Valério reforçou-se ainda na infância, quando uma queimadura grave o obrigou a estar internado durante cinco meses num hospital em Coimbra, onde foi operado várias vezes. “Entretinha-me muito a pensar na Senhora de Fátima e rezava o terço”, lembrou à Renascença. Foi nessa fase da vida que Rui Valério começou a compreender o lugar central da fé na sua vida. Mais tarde, com 11 anos, depois do verão de 1976, foi estudar para a cidade de Fátima, para o seminário gerido pelos padres Monfortinos, uma congregação fundada em França no século XVIII por São Luís Maria Grignion de Montfort. Foi lá que conheceu Carlos Fernandes, hoje também padre, que se tornaria num dos seus amigos de toda a vida.
“Naquela altura, quem proporcionava o ensino básico e secundário eram os seminários, por falta de uma rede escolar”, lembra hoje ao Observador o padre Carlos Fernandes. “Era outro contexto social. Na altura, havia muita gente que optava pela ida para o seminário para poder estudar.” Alguns outros rapazes de Urqueira também tinham sido enviados pelos pais para o seminário, o que ajudou a família de Rui Valério a tomar a mesma decisão.
Rui e Carlos têm três anos de diferença; quando se conheceram, o primeiro tinha 11 anos e o segundo 14. Hoje, Carlos lembra o amigo mais novo como “um aluno muito aplicado e muito estudioso”, mas também um “amante do desporto” desde a infância. “Ainda hoje mantém a prática desportiva”, diz sobre o amigo bispo, a quem reconhecia, já desde o tempo do seminário menor, “uma disponibilidade imensa para ajudar naquilo que fosse preciso”.
De acordo com o padre Carlos Fernandes, não se pode dizer que Rui Valério já estivesse convicto da sua vocação sacerdotal durante o tempo do seminário menor. O próprio, falando à Renascença, lembrou que nessa fase da infância não estava a pensar em tornar-se padre: “Tinha uma predisposição para a fé, mas não pensava logo em ser padre.” Essa certeza chegou mais tarde, quando, no final do ensino secundário, o jovem Rui Valério, com 19 anos, foi enviado para Santeramo in Colle, na província de Bari, no sul de Itália, para fazer o noviciado na Congregação dos Missionários Monfortinos. Foi no contexto da vida com os monfortinos que começou a apaixonar-se pela vida religiosa: “Houve três coisas que me tocaram logo profundamente: Nossa Senhora; a missão (que me punha a sonhar) e, por fim, a vida comunitária e de proximidade.” Um ano depois, em 1985, mudou-se para Roma, para estudar Filosofia na Universidade Pontifícia Lateranense.
Na capital italiana, voltou a encontrar-se com Carlos Fernandes, que também já tinha passado pelo noviciado e seguia três anos à frente de Rui Valério nos estudos universitários. Apesar de não frequentarem a mesma universidade, viviam juntos no mesmo seminário monfortino. Em Roma, Rui Valério continuou “sempre a estudar, com mais amor pela Filosofia e pela Teologia”.
“Ainda hoje ele tem um discurso teológico bastante forte. Lê muito, principalmente os teólogos, quer manter-se sempre atualizado”, recorda o amigo sacerdote. A leitura era, aliás, a grande ocupação de tempos livres de Rui Valério durante os tempos de seminário. Mas não era a única: além dos estudos, que consumiam a maior parte do tempo dos seminaristas e que Rui Valério “levava a peito”, o jovem era assíduo nos jogos de futebol do seminário. Depois de completar o bacharelato em Filosofia na Universidade Lateranense, Rui Valério completou a licenciatura em Teologia Dogmática na Universidade Gregoriana.
Terminados os primeiros estudos em Roma, Rui Valério regressou a Portugal, à casa dos monfortinos em Fátima, onde voltou a reunir-se com o colega Carlos Fernandes, que também já tinha regressado de Roma. Em outubro de 1990, fez os seus votos perpétuos na congregação dos monfortinos; em 23 de março de 1991, foi ordenado sacerdote em Fátima.
A vida militar e as paróquias no Alentejo e Lisboa
A primeira missão que Rui Valério recebeu enquanto jovem padre, com 27 anos, foi a de capelão do antigo Hospital da Marinha, situado no Campo de Santa Clara, em Lisboa. A missão fez parte do serviço militar obrigatório que Valério teve de cumprir. “Após a ordenação, aqueles que não tinham passado à reserva faziam o serviço militar”, explica o padre Carlos Fernandes, lembrando que os sacerdotes cumpriam o serviço como capelães.
A experiência na Marinha foi curta, mas marcaria profundamente a vida de Rui Valério — que, mais tarde, voltaria a ver o seu caminho cruzar-se intimamente com a realidade militar.
Em 1993, terminado o serviço militar, rumou ao Baixo Alentejo. Na altura, as paróquias do concelho de Castro Verde, na diocese de Beja, estavam entregues aos Missionários Monfortinos — é, aliás, frequente que os bispos peçam ajuda a diferentes ordens e congregações religiosas para fazer face à escassez de padres diocesanos, confiando-lhes o cuidado de determinadas paróquias. No caso dos Missionários Monfortinos, a prática é a de trabalhar em equipa — e era preciso ajuda na missão que estava responsável pelas várias paróquias de Castro Verde, onde também já trabalhava o padre Carlos Fernandes.
“Ele fez um trabalho enorme, na visita às escolas primárias e com uma grande atividade social”, recorda agora o sacerdote. Mas aquela primeira experiência paroquial também foi curta. Dois anos depois, em 1995, foi estudar para a Bélgica, no Centre International Montfortain, onde durante um ano realizou uma pós-graduação em Espiritualidade Missionária.
Em 1996, voltou a Portugal e começou um doutoramento em Teologia na Universidade Católica Portuguesa. Pretendia realizar uma tese sobre a “Cristologia Sapiencial e Sabedoria Cristológica em S. Luís de Montfort”, mas acabou por não conseguir terminá-la, já que logo em 1996 recebeu uma nova missão paroquial. Dessa vez, num lugar completamente diferente do Baixo Alentejo que tinha conhecido: a periferia urbana de Lisboa, concretamente na paróquia de Póvoa de Santo Adrião, também confiada aos Missionários Monfortinos. Por coincidência, ou talvez devido à reduzida dimensão da congregação (hoje, são apenas 14 os padres monfortinos em Portugal), voltou a encontrar-se ali com o padre Carlos Fernandes.
Rui Valério foi vigário paroquial da Póvoa de Santo Adrião durante seis anos, entre 1996 e 2001. Ali, naquela freguesia do concelho de Odivelas, às portas da cidade de Lisboa, cruzou-se com uma realidade distinta da ruralidade do Alentejo. “É praticamente uma paróquia dormitório”, explica o padre Carlos Fernandes, que é o atual pároco. O trabalho pastoral concentrava-se nos fins-de-semana e nas noites dos dias de semana, o que permitia aos padres monfortinos da paróquia aceitarem outras missões.
Devido à gestão dos parcos recursos da Congregação dos Padres Monfortinos, Rui Valério ainda regressaria à missão de Castro Verde como pároco durante sete anos, entre 2001 e 2007 — onde, de acordo com uma nota biográfica oficial, se dedicou “particularmente aos jovens e à lecionação da disciplina de Educação Moral Religiosa Católica nas escolas do primeiro ciclo”.
Em 2008, porém, voltaria à vida militar. Regressado à região da Grande Lisboa, recebeu o desafio de se tornar capelão da Escola Naval. “E ele aceitou. A vida militar sempre o marcou um bocado e sempre gostou da Marinha”, lembra o amigo. Durante quatro anos, entre 2008 e 2011, o padre Rui Valério dedicou-se à missão militar — uma experiência que seria fundamental para, alguns anos depois, lhe ser confiada a missão de bispo das Forças Armadas e de Segurança.
No final daquela segunda passagem pelas Forças Armadas, Rui Valério foi novamente enviado para a comunidade dos monfortinos responsável pela paróquia da Póvoa de Santo Adrião. Durante oito anos, foi pároco daquela comunidade suburbana — uma das fases mais significativas da sua vida eclesiástica.
O padre “todo-o-terreno” que percorria os bairros sociais
Entre 2011 e 2018, o padre Rui Valério teve a difícil missão de ser o pastor daquela “paróquia dormitório” da periferia de Lisboa: a maioria dos paroquianos estudava ou trabalhava em Lisboa e só ia ali mesmo para dormir. Por outro lado, o facto de a paróquia estar há vários anos entregue aos Missionários Monfortinos contribui para que se tenha ali criado um sentimento de comunidade entre os paroquianos e o grupo de três ou quatro religiosos encarregue da paróquia.
“A Póvoa de Santo Adrião tem uma população bastante heterogénea. Foi um crescimento caótico a seguir ao 25 de Abril, com o regresso de muita gente da ex-colónias. Ainda hoje, vêm muitos emigrantes daqueles países. Havia muita gente a viver em bairros de lata, como o Bairro do Barruncho. Entretanto, a maioria das pessoas hoje já foram realojadas, mas há uma vertente, a vertente sul, que encosta para Lisboa — Ameixoeira e Lumiar — e que sempre foi uma zona socialmente bastante crítica, bastante pobre, desfavorecida”, conta o padre Carlos Fernandes.
Entre os habitantes daqueles bairros, o sentimento predominante sempre foi o do abandono. Enquanto pároco da Póvoa de Santo Adrião, Rui Valério procurou mudar essa realidade. “Uma das coisas que ele fez foi a proximidade. Visitava regularmente estes bairros e era apreciado pelo trabalho que fazia”, recorda o colega monfortino. Apesar da falta de tempo, Rui Valério não abdicava da presença física naquele lugar onde os próprios habitantes já se tinham habituado a um convívio apenas distante com a Igreja. Na Páscoa, fazia questão de passar pelos bairros sociais com a Visita Pascal — uma tradição portuguesa que na área urbana de Lisboa tem caído em desuso.
“Falava com as pessoas. Ia ter com as periferias. Procurou ir ao encontro dessas pessoas, bastante sofridas ao longo da vida com problemas sociais”, lembra Carlos Fernandes, que não hesita em classificar Rui Valério como um pastor à medida dos apelos do Papa Francisco para que a Igreja saia do conforto da sacristia e vá em busca das periferias humanas. “É um homem todo-o-terreno, vai correr na rua e as pessoas conhecem-no perfeitamente”, diz o sacerdote. “Está muito ligado à Póvoa, onde as pessoas gostam dele”, sublinha, acrescentando que o trabalho pastoral de Rui Valério no Bairro do Barruncho permitiu dar nova esperança a muitos jovens do bairro.
Na primeira mensagem que destinou aos diocesanos de Lisboa após a sua nomeação como patriarca, Rui Valério destacou a importância do carácter missionário das suas funções. “Assumiremos como prática o gesto próprio do Bom Pastor que deixou as noventa e nove ovelhas para ir à procura da que se perdera. Para Jesus Cristo, não é lícito deixar ninguém para trás”, escreveu Valério. “Assim, no horizonte de vida e ação da nossa Igreja está bem presente quanto afirmava São Paulo VI acerca da Igreja ter de ser missionária sob pena de não ser e, analogamente, o Papa Francisco, ainda mais concreto, que sem jovens a Igreja simplesmente morre. Para os jovens e com os jovens, somos chamados a ser Igreja missionária e em saída, levando no coração o ardor de chegar a todos.”
“Na presença do Senhor, de quem recebeu o maravilhoso dom da esperança e da vida nova e o mandato missionário de o levar aos recantos mais escondidos da interioridade de cada um de nós, bem como aos quatro cantos do mundo inteiro, a Igreja de Lisboa estará à altura da confiança que Cristo Jesus uma vez mais lhe confiou”, acrescentou o bispo e missionário.
O bispo que continuou a partilhar casa e a lavar a loiça
Em 2018, o padre Rui Valério foi surpreendido pela decisão do Papa Francisco de o nomear bispo. A morte repentina do antigo bispo do Porto, António Francisco dos Santos, em setembro de 2017, tinha obrigado a rotações na Conferência Episcopal Portuguesa: o antigo bispo das Forças Armadas e de Segurança, Manuel Linda, foi enviado para o Porto, deixando aquele lugar vago. Rui Valério foi o escolhido para assumir a função — mas, quando recebeu o telefonema da nunciatura apostólica, tremeu de medo e achou que fosse outro o motivo da chamada.
“Quando o núncio me chamou pensei que tinha sido por outra razão. Nesse fim de semana, na paróquia, os jovens tinham feito um teatro e uma das personagens era o bispo de Lisboa. Pensei que me tinham chamado por isso”, contou à Renascença. Afinal, eram boas notícias.
O facto de já ter tido duas experiências como capelão militar ajudou a que fosse escolhido para a diocese das Forças Armadas e Segurança. Mas, como lembra o padre Carlos Fernandes, a principal razão foi o facto de Rui Valério ser “intelectualmente bastante capacitado”, sendo conhecidas as suas “capacidades humanas, espirituais, intelectuais e pastorais”. Ao mesmo tempo, em 2016 Rui Valério tinha sido um dos 1.071 padres que o Papa Francisco tinha nomeado “missionários da misericórdia” — ou seja, a quem tinha conferido, durante o Ano Santo da Misericórdia, a faculdade de absolver pecados reservados à Sé Apostólica, e que tinha convocado a anunciar a misericórdia de Deus em todos os lugares do mundo.
Ainda assim, a nomeação foi uma surpresa. “Circulava o nome, mas foi uma surpresa. A congregação dos monfortinos em Portugal é muito pequena, somos poucos, quase sem implantação no território”, sustenta o sacerdote.
Rui Valério foi o primeiro monfortino a ser elevado a bispo em Portugal: foi ordenado bispo em novembro de 2018 pelo patriarca de Lisboa, Manuel Clemente. Mas Carlos Fernandes garante que a elevação a bispo nunca lhe subiu à cabeça. Pelo contrário: já como bispo, pediu para continuar a residir no apartamento dos monfortinos na Póvoa de Santo Adrião, juntamente com outros três sacerdotes: Carlos Fernandes, que assumiu a liderança da paróquia, e os outros missionários monfortinos que trabalham naquela missão.
“Sempre pediu para ficar, dizia que gostaria de ficar na comunidade”, explica o amigo padre. Isso foi possível devido às características particulares da diocese das Forças Armadas e de Segurança, que não tem um território definido: o bispo tem sob a sua jurisdição os capelães militares de todo o país, viajando com frequência para visitar diferentes unidades militares portuguesas no território nacional e no estrangeiro. Manteve a residência na comunidade onde tinha trabalhado durante mais de uma década e continuou a celebrar frequentemente a missa na paróquia.
“Ainda ontem celebrou a missa do dia aqui, como fez tantas vezes”, disse o padre Carlos Fernandes, falando ao Observador esta sexta-feira, na véspera de Rui Valério tomar posse como patriarca de Lisboa. “É uma comunidade bastante aberta e ele faz parte da casa.” Quando o padre Carlos precisava de se ausentar da paróquia, era o amigo bispo que, podendo, ajudava a cumprir as tarefas da paróquia, incluindo missas regulares, batismos, casamentos e funerais. “Tinha quase uma vida de pároco.”
Nessas celebrações com a comunidade da Póvoa de Santo Adrião, o bispo Rui Valério costumava partilhar as histórias das suas viagens pelo mundo para visitar os militares portugueses. “Ele foi várias vezes à República Centro-Africana, e agora à Roménia no contexto da guerra na Ucrânia. E ele desabafava, pedia às pessoas para rezarem pelas pessoas, pela miséria que ele encontrava, sobretudo em África. Contava história e memórias da presença da Igreja nesses países.”
Durante cinco anos, Rui Valério foi bispo das Forças Armadas e de Segurança de Portugal — uma missão que as Forças Armadas avaliam muito positivamente. Em declarações ao Observador no dia em que foi conhecida a nomeação de Valério como patriarca de Lisboa, o chefe de gabinete do Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, major-general Rui Ferreira, sintetizou com três palavras a ideia que os militares guardam do bispo: “Espiritualidade, humanidade e proatividade.”
“A espiritualidade tem muito a ver com o conferir um sentido humano às missões”, disse Rui Ferreira. “Além do profissionalismo, sentiu que era necessário cultivar e manter vivo o lado humano. É algo importante, de tal forma que pediu ao almirante que aquelas missões passassem a ser acompanhadas por capelães. E passámos a integrar capelães militares naquelas forças”, acrescentou, sublinhando que, para o bispo, era fundamental que, mesmo num cenário hostil, fosse mantido “o lado ético e moral” da missão.
O militar destacou também a “superior inteligência” e o “carisma” de Rui Valério, caracterizado “por uma simplicidade como pessoa”, mas também pela qualidade das suas intervenções, minuciosamente preparadas, “mas ao mesmo tempo com uma simplicidade desarmante”.
Apesar de ser amplamente considerado como uma personalidade de grande nível intelectual, Rui Valério nunca abandonou a simplicidade. “Nunca mudou”, diz o padre Carlos Fernandes, admitindo que poderá ser difícil para alguns aceitar “um patriarca a conviver e, se for preciso, até a lavar os pratos” — como, garante, Rui Valério continuou sempre a fazer enquanto partilhou o apartamento com os colegas na Póvoa de Santo Adrião. Esta sexta-feira, segundo Carlos Fernandes, Rui Valério já estava a mudar-se para a Casa Patriarcal de Lisboa, onde vai ter de passar a residir. Há dias, desabafava com o amigo: “Só espero ter tempo para visitar as paróquias e para me encontrar com o clero.”
“Ele está consciente de que não é uma missão nada fácil”, diz Carlos Fernandes. “De facto, teremos um patriarca que foi pároco durante muitos anos em contextos bem diferentes. No Alentejo profundo, na malha urbana e periférica de Lisboa. Leva uma experiência de pároco, o que não acontecia assim com tantos bispos. Ele encarna e compreende a problemática das paróquias, os problemas que enfrentam no dia-a-dia. Quer ser um bispo próximo.”
Reflexão sobre celibato e mulheres mais presentes nos cargos de poder
Se, até aqui, Rui Valério tinha permanecido relativamente discreto nas suas funções de bispo das Forças Armadas e de Segurança, como patriarca terá de se habituar a um nível muito maior de exposição pública. Embora no sentido estrito o patriarca de Lisboa seja apenas o arcebispo da diocese de Lisboa, não tendo qualquer cargo de liderança na Igreja Católica em Portugal nem sendo o chefe dos outros bispos portugueses, o que é certo é que a história e a tradição da Igreja em Portugal têm dado um lugar de especial destaque ao clérigo que ocupa este cargo.
Na verdade, a diocese de Lisboa recebeu o título de patriarcado no século XVIII depois de o rei João V ter enviado militares para defender os Estados papais dos ataques do Império Otomano. Como pagamento desta ajuda prestada por um rei que se queria afirmar no contexto europeu, o Papa Clemente XI atribuiu o título de patriarcado a Lisboa, bem como uma série de regalias relacionadas, essencialmente, com vestes litúrgicas, ritos e brasões.
Ao longo das décadas, o título de patriarca ajudou o bispo de Lisboa a consolidar a sua influência política em Portugal. A proximidade entre o cardeal Manuel Cerejeira (que foi patriarca de Lisboa durante mais de 40 anos) e o regime de Salazar contribuiu igualmente para a associação entre o poder político e a autoridade eclesiástica. Ao mesmo tempo, vários patriarcas de Lisboa foram presidentes da Conferência Episcopal Portuguesa — o que conduziu à ideia, errada, de que o patriarca de Lisboa é o chefe da Igreja portuguesa. Neste momento, por exemplo, o presidente da CEP é o bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas.
A própria Igreja, durante muito tempo, alimentou a confusão em torno da ideia de que o bispo de Lisboa tem algum tipo de precedência sobre os bispos das outras dioceses do país: só no ano passado é que a tradicional mensagem de Natal da Igreja na RTP deixou de ser feita pelo patriarca de Lisboa e passou a ser feita pelo presidente da Conferência Episcopal. Ainda assim, o lugar de patriarca de Lisboa continua a ser visto como o mais importante cargo eclesiástico em Portugal — e o facto de todos os patriarcas serem, por tradição, criados cardeais tem ajudado a consolidar esta ideia do patriarca de Lisboa enquanto autêntico “príncipe da Igreja”. No entanto, apesar do título e da pompa e circunstância com que o patriarcado de Lisboa é tratado, em grande parte por ser a diocese da capital do país, a verdade é que é apenas uma entre as 21 dioceses portuguesas.
A chegada de um bispo com o perfil de Rui Valério — conhecido quer pela sua capacidade intelectual quer pela simplicidade da vida quotidiana — poderá ajudar a reformar a própria instituição do patriarcado.
Pela frente, o bispo terá necessariamente o desafio de dar resposta à crise dos abusos sexuais de menores, que continua a ser um tema quente na Igreja Católica em Portugal — e especialmente no patriarcado de Lisboa, onde Manuel Clemente se viu envolvido em várias polémicas relativamente ao modo como, no passado, teria gerido denúncias e suspeitas. Rui Valério foi bispo das Forças Armadas e de Segurança, a única diocese onde, por razões óbvias, não houve casos de abusos de menores — e, por isso, o novo patriarca de Lisboa não foi posto à prova neste assunto, como aconteceu com os restantes bispos.
Em 2021, quando o Observador questionou todos os bispos portugueses sobre se consideravam que deveria haver uma investigação independente à realidade dos abusos de menores em Portugal, Rui Valério foi uma das figuras a defender de modo mais vigoroso a criação de uma comissão. “Desde há alguns anos, tem sido cada vez mais claro que a transparência, a verdade e a responsabilidade são vetores fundamentais para, por um lado, acolher, apoiar e acompanhar as vítimas inocentes de abusos e, por outro lado, agir com a radicalidade indispensável sobre quem os perpetrou”, disse, na altura, ao Observador.
Antes disso, numa outra entrevista ao Observador, já tinha condenado de forma veemente os abusos sexuais. “É uma situação que nos envergonha, e a mim particularmente, por todas as razões e por mais uma. Desde o momento em que eu sei que a Igreja, os homens e as mulheres da Igreja, existem exatamente para suavizar, para responder, para ajudar o ser humano na esperança da sua vida, para os auxiliar, para reduzir o sofrimento, quando me é dito que a Igreja é a causa de sofrimento de alguém, isso é uma vergonha que me entristece e me deixa vermelho”, afirmou.
Sobre outros temas fraturantes dentro da Igreja Católica, incluindo a possibilidade de acabar com o celibato obrigatório dos padres ou o reforço dos poderes das mulheres na hierarquia, Rui Valério também se mostrava alinhado com os esforços do Papa Francisco no sentido de modernizar a Igreja.
Falando sobre o Sínodo da Amazónia, no qual foi discutida a possibilidade de ordenar homens casados naquela região do mundo para fazer frente à escassez de sacerdotes, Rui Valério sustentou que a obrigatoriedade do celibato “é uma questão para a própria Igreja, começando por uma reflexão interna que tem de realizar”, respondendo simultaneamente aos “requisitos que garantam a plenitude da disponibilidade” e aos apelos dos “novos tempos”.
Na mesma entrevista, Rui Valério posicionou-se favoravelmente a uma maior presença das mulheres nos cargos de poder da Igreja. “Ao longo da história, a mulher tem tido um papel capital. Nos primeiros séculos da Igreja, até ao século III, século IV, havia mulheres que tinham o sacramento do diaconado. Eu gostava de que isso pudesse voltar a acontecer”, disse o bispo. “Hoje em dia há muitas comunidades que são dirigidas por mulheres, muito embora a elas ainda não se faculte o sacramento do sacerdócio. Mas a realidade é que muitas comunidades são garantidas e são presididas por mulheres, fazem celebrações da palavra, dão-nos um exemplo maravilhoso. Estamos em caminho. A meta cada vez mais se aproxima e eu estou confiante de que provavelmente a reflexão dentro do seio da Igreja vai continuar.”
Rui Valério toma posse este sábado como patriarca de Lisboa, pelas 11h, na Sé Patriarcal de Lisboa. No domingo, pelas 16h, realiza-se a missa que marca a entrada solene de Rui Valério no patriarcado, no Mosteiro dos Jerónimos.