“O povo gosta de Martinho da Vila”.
O epílogo prosaico é de Millôr Fernandes, o responsável pela contracapa de Batuque na Cozinha, segundo álbum do sambista. No texto, o célebre escritor e cartunista resiste a dissecar este fenómeno da canção brasileira, não defende uma tese plausível de condicionantes socioculturais, nem sequer identifica este sucesso como consequência das mutações recentes no certame carnavalesco. Millôr é breve, não tem dúvidas, quando se teoriza sobre este extraordinário sambista, a pretensão de quem escreve sobre música deve curvar-se perante a inegável popularidade:
“Uma pretensão chega, algumas vezes, ao supremo de querer ensinar o folclore ao povo. Pra mim, não entro nessa: a música se chama popular e basta. Popular (defino) é o que o povo gosta. O povo gosta de Martinho da Vila”.
Há 50 anos, o primeiro álbum de Martinho da Vila fazia de próprio mestre de cerimónias, no tira-teimas “Boa Noite” explica, é filho de filho de lavradores, e sem qualquer relação com a catrefada de baianos inspirados que pareciam brotar da calçada carioca. “Naquela época tinha surgido um grupo de baianos, Caetano, Gil, Gal, uma porção de gente, e as pessoas pensavam que era baiano”, diz-nos divertido Martinho da Vila, a relembrar o homónimo de 69 que é celebrado como o rastilho para as cinco décadas de carreira, mote para dois concertos em Portugal, no dia 10 de maio, Coliseu do Porto, e dia 12 em Lisboa, Coliseu dos Recreios. É certo como o balanço deste octogenário que nestes concertos podemos contar com canções do primeiro disco, seja o clássico de exaltação aos ilustres pobretanas, “Pequeno Burguês”, ou ainda outra que prima pelas dificuldades financeiras da malandragem, “Pra Que Dinheiro”, com a solução infalível que mesmo sem um chavo, “Depois que eu comprei uma viola/ Arranjo nega de qualquer lugar”.
A primeira canção do álbum, “Boa Noite”, prossegue nas apresentações, revela que Martinho nasceu em Duas Barras, interior do Rio de Janeiro, e foi criado na Serra dos Pretos Forros. “Pretos Forros significa pretos livres, alforriados que fizeram casas ali, era uma serra com um pouco de interior e favela”, ilustra, enquanto garante que, “apesar de gostar sempre de retornar aos lugares que viajo, a serra está muito mudada, parece um lugar estranho, não gosto de voltar”. Hoje, na Serra dos Pretos Forros, falta o ingrediente primordial que montou um grande carnaval na vida do jovem sambista: a escola de samba. “É”, confirma, “a Serra tinha a escola de samba Aprendizes da Boca do Mato, onde tudo começou, e o samba não estava na grande comunicação, não estava na rádio, o samba era a música dos guetos”.
O samba é música do morro, das favelas, dos desfavorecidos, é um ritmo harmónico desdobrável ao gosto de freguês, desde que seja sempre um revelador de verdade, de um instante efémero da vida em comunidade. Em “Canta canta, minha gente”, Martinho descreve as infindáveis possibilidades desta matéria prima, o samba de roda, samba-canção, rasgado, de breque, moderno, e quadrado, e no caso de Martinho da Vila:
“Quem canta seus males espanta
Lá em cima do morro
Ou sambando no asfalto
Eu canto o samba-enredo
Um sambinha lento e um partido-alto”
Samba-enredo, a espinha dorsal do Carnaval moderno, e o sambinha lento e partido-alto, que tornaram este compositor de 81 anos no ponto de contacto deste mundo disperso com os primórdios da canção brasileira, de gente que os concertos de Martinho da Vila não deixam esquecer, como Donga e João da Baiana.
“Na minha adolescência era a época da rádio, era Ângela Maria, era Cauby Peixoto, não se ouviam esses sambas antigos”, diz-nos, a clarificar que, “só depois é que descobri Pixinguinha, Donga e João da Baiana”. “Quando gravei ‘Pelo Telefone’, que foi o primeiro samba registado na história, as pessoas falaram, você fez uma música incrível, como se fosse minha”. “Pelo Telefone”, “Batuque na Cozinha”, ou “Patrão, prenda seu gado”, canções alegres de enxotar tristeza, de homens que fundaram uma identidade própria, negra, e brasileira. “Eu percebi que temos de fazer sempre uma coisa da memória, se deixarmos uma coisa para lá, essa coisa se apaga, comecei a meter em todos os meus discos alguma coisa de trás para trazer de volta”.
Assim como o resto do Brasil, Martinho trauteava “Feitiço da Vila”, a canção de exaltação a Vila Isabel, provavelmente até conhecia os versos, sobre esse bairro carioca que, “Tendo nome de princesa/ Transformou o samba/ Em um feitiço descente/ Que prende a gente”. Porém, antes do Martinho ser da Vila, desconhecia por completo que o autor deste hino chamava-se Noel Rosa, e muito menos que esta escola de samba lhe daria um segundo nome.
“Só fui ouvir Noel quando cheguei a Vila Isabel, aí é que estudei o grande sambista, e descobri que trouxe o samba do morro para a cidade”. Depois do exército, e tentar a vida como auxiliar químico industrial, agarrou-se à escola de samba como a salvação dos afazeres corriqueiros, de trabalho, mulher e filho e tralha e tal. “A Vila Isabel ascendeu ao grupo das grandes escolas e naquele tempo, toda a escola que sobe, acaba caindo de novo, e algumas escolas até acabavam. Então o presidente decidiu reforçar o time, me chamaram”, narra entusiasmado. “Eu cresci junto com a Vila Isabel, até fiquei Martinho da Vila”.
“A Vila Isabel inovou os desfiles. Na época as escolas de samba usavam somente duas cores, e a Vila Isabel, que é azul e branca, decidiu colorir as fantasias com outros tons. E também, os enredos eram todos sobre a história do Brasil que estava nos livros escolares. A Vila Isabel fez um tema inventado, ‘Carnaval de Ilusões’, que criou muita confusão, disseram que estava errado. As pessoas não aceitavam, apesar de ter sido um sucesso total”
Os tons alegres de “Carnaval de Ilusões” são outra presença maior no primeiro disco de Martinho da Vila, do compositor que se revela um bem-humorado colorista de muitas texturas, e em breve, apesar dos críticos, seria um protagonista dos carnavais seguintes. A capacidade de transmitir a milhões de pessoas o ambiente caseiro de patuscadas e batucadas, e até do tradicional vizinho que se estica nos convites (“Eu cheguei para o café/ E vou ficar para almoçar/ Se a dona da casa deixar, deixar, deixar”), é um trunfo que Martinho joga até hoje, com um humor certeiro (“Disritmia” e “Suco De Maracujá”) e uma delicadeza desarmante (“Mirra, Ouro, Incenso”).
Em 1974, dez anos após o Golpe Militar, o sambista rezou para a escola Vila Isabel “Renascer das Cinzas”, e sugeriu “Tribo dos Carajás (Aruanã-Açu)”, uma canção sobre a devassa dos povos indígenas, como provável candidato para o desfile de Carnaval. “Naquele tempo a censura começou a entrar na escola de samba e eles disseram a Vila Isabel que esse samba não devia ser cantado, que fala da morte de índio, da exterminação”, lamenta.
“Na época da ditadura o que causou a inserção da censura nas escolas de samba foi a escola Império Serrano que fez um desfile muito forte e emocionante, chamado os ‘Heróis da Liberdade’”. Nestes três dias de folia e brincadeira, até quarta-feira, está por revelar uma história de décadas de resistência, mesmo que a percepção comum nos diga que o Carnaval foi condizente com o governo militar. “Até os sambas com romance têm uma mensagem, uma reclamação, um lamento, isso é resistência”, defende. “Os sambistas fizeram as músicas mais resistentes, o pessoal que ficou muito falado que fazia música de resistência era porque eram de uma classe dominante, e apareciam na imprensa”.
A rebelião dos sambistas estava na sua intransigente crença na comunidade, na festa, na família, no fundo de quintal, como em “Casa de Bamba”, onde todo mundo bebe, todo mundo é samba.
“A escola de samba não é um Carnaval comum, é um Carnaval cultural, se olharmos os temas de qualquer ano, por mais intelectual ou menos que seja, pode encontrar uma informação que não conhecia. É uma pesquisa. Além disso, a escola de samba para a comunidade que atua é tudo, é o clube onde se diverte, onde acontece, aniversários e casamentos, e até os velórios”.
Samba é, afinal, todas as potencialidades da vida, e no caminho, uma incessante busca pela ancestralidade que passa de geração em geração pelas veias do violão, pelo pulsação do batuque, pelo sangue que escorre de África ao Brasil. Martinho da Vila tem esta conceção assente no seu percurso desde novo, urgência que o leva de encontro às canções de Donga e Noel Rosa, e atrás do ritmo mãe, para Angola, antes de Jorge Ben e Gilberto Gil seguirem as mesmas pisadas.
“Fui convidado por dois empresários portugueses para um show em Angola”, confirma sobre o concerto no N´Gola Cine, em Luanda, temporada de estudo para o álbum Origens, que seria, e é, um dos grandes álbuns de samba. “Essa viagem foi muito importante porque aqui no Brasil não se sabia nada de que estava acontecendo em África, não sabíamos das lutas de libertação, isso influenciou muito na minha consciencialização, tive o contacto direto com a música africana, e trouxe os primeiros instrumentos musicais africanos para o Brasil”.
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E Portugal, está no rumo desta viagem de auto-descoberta? “Muito, muito. Aqui falava-se que Portugal só tinha fado. Quando fui a Portugal descobri as marchas juninas, descobri as músicas folclóricas portuguesas e vi que tem uma bem parecida com o xoto brasileiro”. Esse espécie de xoto é “Dar e Receber”, gravado com Kátia Guerreiro, e no ano passado, no álbum Bandeira da Fé, está “Fado dos Perguntas”, inspirado pela recente emigração brasileira para Portugal.
“É muito importante para uma pessoa se conhecer, o autoconhecimento é fundamental. E o autoconhecimento começa pelas suas origens, de onde veio, a ancestralidade. Esta é a cultura base”, reflete o compositor e escritor, eterno concorrente à Academia Brasileira de Letras, ainda sem sorte. O que falta para Martinho da Vila se cumprir, que caminhos mais teremos de percorrer até encontrar uma identidade plena consciente da sua herança? “Sempre vai faltar mais, temos que buscar até na nossa própria cidade, sempre falta conhecer alguma coisa”. As canções de Martinho da Vila podem não ser suficientes para entender o nosso país irmão, mas é um caminho, podemos começar por aqui, conhecer melhor o sambista que o povo gosta.