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O verão da Catalunha filmado por Carla Simón é uma terra de sonhos difíceis

Estreia-se agora entre nós "Alcarràs": a história de uma família que, o quotidiano de uma comunidade agrícola e um anseio de vida. Entrevistámos a realizadora, que ganhou o Urso de Ouro em Berlim.

Na segunda longa-metragem, “Alcarràs”, Carla Simón parece deixar fluir tudo o que de bom existia no seu trabalho anterior. Tudo isso e muito mais, aquilo que vem de novo. A realizadora catalã começou a dar nas vistas com as suas curtas. A primeira longa-metragem, “Verão 1993”, de 2017, assegurou-lhe prémios em vários festivais e, sobretudo, uma forma única de comunicar aquilo que muitas vezes rejeitamos falar. O mesmo se pode dizer de “Alcarràs”, vencedor do Urso de Berlim na edição do festival deste ano. É um filme sobre agricultura, sobre uma família à beira da rutura ou como quebramos quando nos tiram rapidamente o tapete do chão.

A ação decorre numa pequena localidade na Catalunha, a mesma que dá título ao filme. Acompanhamos uma família à qual é tirada a terra: os pessegueiros serão destruídos para a construção de painéis solares. Mas isto é aquilo que “Alcarràs” é à superfície. Por dentro, é um filme intenso, louco, verdadeiro, sobre as relações familiares e, em última análise, sobre um homem que não quer reconhecer que perdeu a esperança.

Carla Simón filmou com atores não profissionais esta segunda longa-metragem. Conquista alguma realidade ao fazê-lo assim mas, sobretudo, dinâmicas que ajudam o espectador a estar envolvido e perceber todos os processos e urgências que correm no quotidiano daquela família. Colhem-se os pêssegos, faz-se o dinheiro que se pode, sem olhar para o futuro? Ou assume-se que aquilo que estás prestes a acontecer e olha-se para outro lado? A resposta vive-se, experiencia-se em cada cena de “Alcarràs”. E assim se vivem os últimos dias de uma ideia de família – e do seu negócio – que existiu até então. E ao vermos o filme é como se conhecêssemos esta família há muito.

[o trailer de “Alcarràs”:]

Pelo que li, a sua família tem uma propriedade em Alcarràs. Ainda têm pessegueiros?
Sim, é verdade. E ainda temos pessegueiros!

Partindo do ponto de vista familiar, como vê a evolução desta ideia de agricultura como negócio de família?
Cada ano é mais difícil para uma pequena família viver da colheita. O preço da fruta é cada vez mais baixo e, pior, incerto: não sabem quanto irão receber por cada quilo que apanham. Isto era diferente até há uns anos, porque a fruta costumava dar muito rendimento nesta área. Obviamente que a agricultura não irá desaparecer, porque precisamos dela, mas o modo de fazer agricultura está a mudar muito. Hoje é preciso ser-se um grande agricultor para sobreviver da agricultura. É preciso produzir muito para compensar o investimento e sobreviver. Esta ideia de fazer agricultura, em cooperativas, com bocadinhos de terra, já não é sustentável, como costumava ser. Essa é a grande diferença para mim. Há muitos anos, quando eu era nova e ia a Alcarràs para visitar os meus tios, a colheita corria sempre bem e eles faziam imenso dinheiro. E isso agora mudou, por causa do mercado, dos preços e o absurdo da globalização… e como não compramos os produtos locais, da área onde vives. Compramos pêssegos de outros sítios e os nossos vão para outros sítios. Há muito dinheiro gasto neste tipo de operação. É absurdo, é complicado de mudar. Por exemplo, na cooperativa dos meus tios, eles enviam fruta para o resto da Europa e muitas vezes não comemos aquela fruta. É algo que deveríamos mudar. E é uma pena que este tipo de agricultura de cooperativa esteja a desaparecer, porque muitos agricultores vivem da terra e começam a desistir e até encaminhar os filhos para outras atividades. Para mim é uma pena, porque este tipo de agricultura é uma forma de cuidar do terreno, da nossa terra. Quando sabemos que a vamos deixar  para a família, tratamos dela. Mas se é uma grande companhia a explorá-la, isso nem sempre acontece de uma forma respeitável. Contudo, tenho um pouco de esperança que as coisas mudem.

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Porque decidiu manter esta história tão próxima da sua vivência familiar?
A razão principal foi a morte do meu avô, quando estava a escrever o meu primeiro filme, “Verão 1993”. Pela primeira vez pensei no que aconteceria se aqueles pessegueiros desaparecessem. Este terreno que visitamos regularmente, onde nos divertimos, com tantas memórias familiares. Percebi que isso estava a acontecer com outras famílias, não é o caso da minha, porque os meus tios e primos continuam a trabalhar a terra. Mas ao ver isso à volta, fez-me pensar que seria algo interessante de explorar e que estava a acontecer com muitas famílias. Não cresci em Alcarràs, mas noutra aldeia pequena, nas montanhas, também na Catalunha. Alcarràs era o sítio para onde ia de férias, no verão ou no Natal. E porque era tão diferente da minha aldeia, sempre achei que era muito cinematográfica, por causa da paisagem, daquelas planícies. O céu é lindo, a luz inacreditável e a natureza é muito diferente da minha aldeia. Costumamos dizer que esta zona é o faroeste catalão. Sempre tive vontade de fazer algo nesta zona.

"Era importante ter pessoas que tinham uma ligação real com a terra. Que percebessem o mundo que estávamos a retratar. E quando filmamos um agricultor, conseguimos ver como eles se mexem, como apanham fruta, como conduzem. Há algo nos seus corpos que era importante que fosse real."

Porque manteve os pessegueiros na história?
Porque têm de ser colhidos numa altura específica. Assim criaria alguma tensão no filme, porque a família recebe a notícia de que tem de abandonar a terra, mas têm de colher a fruta e têm de a colher naquele momento. Isso cria tensão, entre o que vão fazer num futuro próximo e o que têm de fazer de imediato, que é colher a fruta. O que acaba por ser importante para o Quimet, que não está a encarar a realidade, apenas pensa em trabalhar. Não acontece com toda a fruta, mas acontece com os pessegueiros.

Mencionou o protagonista, Quimet. Como é que, pessoalmente, o vê?
Inspirei-me nos meus tios e no pai do Arnau Vilaró [co-argumentista], a família dele também tem terrenos em Alcarràs. Percebemos que ele seria o protagonista, um homem de 45 anos, mas seria mais confortável para mim – que não sou um homem de 45 anos – fazer um filme à volta de um grupo de personagens. Mas era importante ter um homem muito masculino, e que isso fosse importante: ele não é um feminista [risos]. Mas queria um ator que o interpretasse, que mostrasse alguma ternura, porque o Quimet está constantemente chateado, sempre a queixar-se… está numa fase de profunda tristeza, e está a negar essa tristeza. Ele não está a aceitar o que está a acontecer. É muito teimoso, é um homem trabalhador… como muitos homens são nesta região. Era importante mostrar a sua fragilidade, mostrar que pode ser ternurento com as crianças, era importante que chorasse num determinado momento: porque há a ideia de que estes homem não choram, mas choram. Foi interessante entrar nessa viagem com o ator [Jordi Pujol Dolcet], que não é profissional, porque ele costumava ser um agricultor, já não é, também teve de abandonar a sua terra. Ele percebia o Quimet muito bem. Foi interessante, quando trabalhámos a cena a do chorar, ele disse que não chorava a anos e que, ao fazê-lo, sentiu-se muito bem.

Day 2 - Malaga Film Festival 2022

"Este é o melhor prémio que ganho com os filmes, ter a oportunidade de fazer os filmes como quero: porque cada filme tem a sua maneira de ser feito"

WireImage

Porque escolheu trabalhar com atores não profissionais?
Era importante ter pessoas que tinham uma ligação real com a terra. Que percebessem o mundo que estávamos a retratar. E quando filmamos um agricultor, conseguimos ver como eles se mexem, como apanham fruta, como conduzem. Há algo nos seus corpos que era importante que fosse real. Só há uma atriz profissional, a minha irmã, que interpreta a Gloria. Ela também me ajudou imenso no processo de escolha dos atores. A escolha teve a ver com a procura de realismo.

Recebeu conselhos?
Sim, claro. Demorámos um ano a escolher os atores. Vimos muita gente… fomos a todas as aldeias, festas, às cooperativas, escolas. Estivemos com quase nove mil pessoas, mas não encontrámos nenhuma família. Queria encontrar algo como um pai e um filho. Mas não aconteceu. Ou seja, tivemos de construir esta família. E tivemos de passar algum tempo juntos, para criar as relações, improvisar momentos que poderiam ter acontecido antes da história de “Alcarràs”. Fizemos isto para construir a sua relação e tornar credível que eram pais e filhos, avô e neta, irmãos, ou primos. Ao fazer isto deram-me algumas ideias, não a nível de guião, mas deram-me ideias em como dizer as coisas, porque eles falam num dialeto muito específico de catalão. E isto liga à outra pergunta, não há muitos atores que falem esse dialeto. Eu trabalho de uma forma em que sigo o guião mas gosto de dar liberdade nos diálogos, por isso para mim foi importante que se conseguissem exprimir de uma forma livre.

"Não preciso de muito dinheiro para fazer os meus filmes, mas preciso de dinheiro porque demoro tempo. E demoro tempo porque gosto de cozinhar tudo lentamente, preparar tudo, perco tempo com os atores, a procurar os locais para filmar. Gosto de passar tempo em cada pormenor do filme."

Há um momento no filme, que torna óbvio que este tipo de agricultura não é sustentável [durante o protesto]. A culpa, subentende-se, é sobretudo do consumidor, de todos nós, por procurarmos o mais barato. Espera que “Alcarràs” alerte os consumidores para este problema?
A resposta é sim, mas não era a nossa intenção. Não fizemos o filme a pensar que queríamos convencer as pessoas a ir comprar os pêssegos da zona onde vivem. Mas era uma ideia que estava lá. Quando estávamos a trabalhar no filme, estávamos mais concentrados nas relações familiares, gosto mais de trabalhar nas emoções, relações. Esse lado mais político estava lá, mas não era onde tínhamos a atenção. Contudo, quando acabámos de montar o filme, percebemos que esse lado político tinha força, aconteceu de uma forma muito natural. Por isso, é uma mensagem que passa. A partir da intimidade de uma família, pode-se dizer muito sobre uma situação, com uma intenção política.

A pandemia afetou a produção do filme?
Era suposto termos filmado no verão de 2020. Em março de 2020 estávamos a começar os ensaios. Foi super frustrante parar nesse momento, porque é um momento bonito, em que as ideias fluem, estávamos super prontos. Há toda esta energia criativa que de repente para. Era para ser umas semanas, mas depois era mais tempo… a dada altura tivemos de tomar uma decisão, porque tínhamos de filmar durante o verão. Tivemos de adiar as filmagens por um ano, até voltarmos a ter pêssegos. Foi duro, porque estávamos prontos para começar e tivemos de parar. Aproveitei essa pausa para pensar noutro filme e em janeiro/fevereiro de 2021 voltei a abrir este dossier. Há muita gente que me pergunta se teria sido diferente se o tivesse filmado em 2020. Não seria o mesmo. Claro que quando começámos a filmar, após alguns dias, alguém apanhou covid e tivemos de parar, o que foi dramático. E quando estávamos a terminar a montagem, também eu apanhei covid e tive de terminar online, com o meu montador. Felizmente, conseguimos escolher os atores antes da pandemia. Se não tivéssemos feito isso, teria sido muito difícil.

"A partir da intimidade de uma família, pode-se dizer muito sobre uma situação, com uma intenção política", diz-nos a realizadora

Antes da sua primeira longa-metragem, passou vários anos a realizar curtas. Porque demorou tanto tempo a passar para um formato mais longo?
Para mim foi natural. Realizei a minha primeira curta em 2009 [“Women”], era muito experimental, quando estava na Califórnia, numa espécie de Erasmus. Quando voltei, ganhei uma bolsa para estudar na London Film School, aí realizei muitas curtas. Aí foi onde aprendi algo sobre cinema. Em 2014, quando terminei os estudos, comecei a escrever o “Verão 1993”, que filmámos em 2016. Tinha trinta anos, foi quando fez sentido para mim contar esta história. As minhas curtas foram muito úteis para criar um caminho para a minha primeira longa-metragem, porque está tudo ligado. Uma das minhas curtas, “Lipstick”, deu-me a ideia para o “Verão 1993”, é sobre dois irmãos que descobrem a avó morta, e percebi que esse tema, de encarar a morte, era muito interessante para mim.

Ambas as suas longa-metragens têm gozado de sucesso, tanto crítico como a nível de prémios. Acha que isso lhe tem garantido a liberdade para fazer o que quer quando filma?
Sim! Quando fiz o “Verão 1993” tive uma atitude semelhante na direção de atores. E fazer isso, demora tempo. O facto de ter corrido tão bem, deu-me a possibilidade de ter tempo para o processo de escolha de atores para o “Alcarràs”. Não preciso de muito dinheiro para fazer os meus filmes, mas preciso de dinheiro porque demoro tempo. E demoro tempo porque gosto de cozinhar tudo lentamente, preparar tudo, perco tempo com os atores, a procurar os locais para filmar. Gosto de passar tempo em cada pormenor do filme, vejo a realização como artesanato. E o sucesso tem-me garantido fazer isto, porque sei que esta não é a maneira como se fazem as coisas agora: é tudo produzido rapidamente, parece mais importante produzir muito, e não o que é produzido. Não tenho muitas histórias para contar, mas tenho algumas que quero mesmo contar, e prefiro fazer de forma lenta, com tempo. O sucesso garantiu-me isso, ganhar o respeito para fazer as coisas como quero. Não tenho de me adaptar à indústria, posso fazer à minha maneira. Espero que continue assim. Este é o melhor prémio que ganho com os filmes, ter a oportunidade de fazer os filmes como quero: porque cada filme tem a sua maneira de ser feito.

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