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João Pedro Morais/Observador

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Ricardo Neves-Neves: "Se fosse bom ator não me tinha perdido com a escrita, que me dá cabo da cabeça"

Foi ator durante dez anos, mas diz que não era bom. Agora, é um dos dramaturgos e encenadores mais férteis da cena portuguesa. Dia 6 de fevereiro, no São Luiz, estreia "A Reconquista de Olivenza".

Diz que dá uma abada a qualquer um no “Street Fighter”, versão Super Nintendo. Portanto, jogadores, façam fila. É talvez por isso que Chun-Li surge algures no caos musical que é “A Reconquista de Olivenza”, nova criação do Teatro do Eléctrico, com encenação de Ricardo Neves-Neves e música original de Filipe Raposo – nesta que é a segunda colaboração da dupla, depois de “Banda Sonora” (São Luiz, 2018). Mas há mais. É que neste espectáculo – mais um exercício de “e se” absurdo cumprido por Neves-Neves – o mito do Milagre de Ourique, fundador de Portugal, é revirado e quem aparece no sonho de D. Afonso Henriques não é Deus, mas o dragão da série de animação “Dragonball”. A questão de Olivença só é para aqui chamada porque é lá que se encontra uma das sete bolas de cristal. Perceberam? Pois. É imaginar que Portugal ainda era uma monarquia cheio de coisas que nunca chegaram a ser. Ou, como o próprio diz, um “faz de conta”.

O seu imaginário meio louco e referencial deve ter surgido na quinta da família, em Quarteira (onde nasceu e cresceu até ter vindo estudar para a Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa), onde uma cadela sua apanhava laranjas diretamente da árvore e onde chegou a brincar com ossadas, confundindo-as com pedras brancas. Estudou piano desde os 6 anos, época em que conheceu pela primeira vez o que era isso do público. Mas foi num grupo amador da sua terra que descobriu esta vocação. Já em Lisboa, foi ator profissional durante dez anos, mas achava que não era versátil e decidiu-se a passar mais tempo a escrever e a encenar. Foi aí que fundou o Teatro do Eléctrico, estrutura que lidera, lugar de liberdade. Gosta de caminhar e ouvir música. E o pior é que durante algum tempo achou que era a única pessoa que andava a ouvir Billie Eilish. O mundo tratou de lhe explicar que não era bem assim.

O título deste espectáculo é meio aldrabão, não é? Isto não é bem sobre a questão de Olivença…
Não é de todo sobre a questão de Olivença. Aqui a coisa é: neste faz de conta, neste exercício constante de “e se esta fosse a nossa realidade”, se assim fosse este seria um espectáculo sobre Olivença, só que a questão de Olivença nesta realidade não seria pela posse da terra, mas pela posse daquele objeto que é a bola de cristal, esta seria a verdadeira questão de Olivença. É sempre um exercício de faz de conta.

Bastante radical: há uma Margem Soviética do lado oposto a Lisboa, há o dragão do “Dragonball”…
Sim, a minha posição política a defender os meus espectáculos é só a vontade de fazer espectáculos e de defender o teatro, e não de defender temáticas ou causas. O teatro também serve para isso, mas deve em primeiro lugar despertar uma vontade artística. Sou uma pessoa e há acontecimentos que mexem comigo para o bem e para o mal, mas nem todos me despertam um pensamento artístico. Este exercício de criar outra realidade faz-me lembrar uma entrevista que o Mário Soares deu uma vez na televisão em que dizia: “E se, depois do 25 de Abril, Portugal fosse, a par dos países da União Soviética, da Alemanha de Leste, de Cuba, China, mais um país comunista? A Europa hoje seria muito diferente”. Ou seja, aqui para nós é mais uma coisa ao estilo como é que seria Portugal se o Rei D. Carlos não tivesse sido assassinado em 1908 e o seu filho, em 1910, por receio, não tivesse saído do país e ido para o exílio em Inglaterra? Talvez se estes dois acontecimentos não tivessem acontecido teríamos uma monarquia, se sim, como é que seria essa monarquia?

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João Pedro Morais/Observador

No fundo, é uma espécie de reescrita da história de Portugal. E que me parece que se liga muito com o seu interesse pelas teorias da conspiração.
Sim, acho que as teorias da conspiração se ligam muito à arte. Essas teorias não são mais que inventar uma lógica nova para as coisas. Como é que se cria, a partir de referências que se conhecem bem e até se dominam, uma nova explicação para um acontecimento? Pode estar aí uma nova explicação para a ida do novo aeroporto para o Montijo. Não é porque o turismo rebentou e o aeroporto precisa de se expandir, não são essas as razões, é porque essa rainha, desse suposto Portugal monárquico, fez esse negócio com o tal líder da Margem Soviética a troco de uma arma de guerra, que são aquelas zarabatanas com sobrancelhas do Álvaro Cunhal.

Porque é que gosta tanto desses desvios? Acha que o mundo como é tende a ser aborrecido? Ou seria mais divertido se o Quinto Império se cumprisse por um dragão que tinha bolas de cristal espalhadas em vários sítios?
Acho que o final não é tanto o que me interessa. Ou seja, não me interessa refletir sobre o que é que é encontrar as sete bolas, interessa-me fazer o caminho, interessa-me chegar ao primeiro dia de ensaios e dizer aos atores: “Isto foi o que inventei para nós, isto é o jogo e agora vamos estar a jogar durante dois meses”. É essa noção de jogo, é quase uma mágoa dizermos “trabalhar” em vez do spielen, do alemão, ou em vez do jouer, do francês, ou do play inglês. Caramba, porque é que a gente não usa também o jogo? E escrever para mim é estar a criar as regras do jogo, de uma coisa que depois vamos estar a jogar, aquilo que me interessa é ir jogando um jogo diferente. Às vezes o conteúdo…

…é indiferente?
Não, claro que tenho que gostar do conteúdo e ele tem que me dizer alguma coisa e com ele também consigo dizer algumas coisas, mas é o jogo que mais interessa.

E antes disso? Ou seja, antes de serem criadas as regras tem que haver impulsos, vontades, tem que existir um mapa referencial, certo? Ou o Bubu, do “Dragonball”, é lider do Exército Real Português apenas porque dá jeito?
Acaba por ser um exercício de associação de ideias. Quando comecei a ler a História de Portugal, comecei a perceber que as coisas se resolviam através de batalhas.

Sim, o Ricardo até tem um espectáculo chamado “A Batalha de Não Sei Quê”.
Exatamente. Não sei bem se foi aí, mas no verão passado estava em Malta, na cidade de La Valetta, e eles utilizam umas bandeiras medievais para decorar a cidade na altura das festas e aquelas bandeiras levaram-me para esta noção de batalha, de luta, e depois pensei: como não consigo meter cavalos em cena e a malta a lutar de espada e a cortar a cabeça uns aos outros. Aí apareceram-me logo os jogos que jogava quando tinha 10 anos, o “Street Fighter”, por exemplo, não há ninguém que jogue melhor, dou uma abada a quem quiser.

Tem a certeza?
Não há hipótese, na Super Nintendo ninguém me ganha, garanto.

E não é daqueles que carrega em todas as teclas ao mesmo tempo, sem saber o que está a fazer?
Carrego em todas as teclas ao mesmo tempo, mas a saber o que estou a fazer.

"Sem ir ao teatro, sem ver os atores a sair, aquilo fica numa zona muito distante, mesmo que seja psicologicamente. Só para aí aos 14 ou 15 anos é que percebi que isto podia ser uma profissão."

Se algum campeão mundial de “Street Fighter” estiver a ler esta entrevista aqui fica o desafio. E em relação ao “Dragonball”, via quando era mais novo?
Sim, via bastante. E depois começou a vir uma coisa de cada vez, não sei, o Bubu como chefe do Exército Português… não sei, há sempre coisas meio ridículas a acontecer… e agora com esta coisa que se passou na Amadora com aquela rapariga espancada com a filha a ver… E a quantidade de pessoas que eu vi no Facebook a defender aquilo e a utilizar a palavra “autoridade”. Não acredito em relações que não são recíprocas, se eu não tenho autoridade sobre ninguém, também não consigo reconhecer ninguém que tenha autoridade sobre mim. Às vezes a polícia, o exército, parece que estão a fazer uma figura um bocado ridícula e não queria colocar uma pessoa forte a representar essas pessoas. Queria uma figura mais tonta. E achei que o Bubu era a pessoa ideal para liderar o exército. São coisas assim, que vão aparecendo uma atrás da outra.

O espectáculo toca, de alguma maneira, o período histórico da expansão marítima portuguesa, tema que tem sido pensado e debatido mais vivamente nas últimas décadas. É, obviamente, um período que continua a motivar algumas questões. Não tem receio que o espectáculo possa ser visto como uma ode a este tempo?
Em todas as zonas delicadas eu coloco um trovão. Ouve-se um trovão em vários sítios, por exemplo, quando a rainha diz que vai reconquista Olivença ouve-se um trovão, quando a rainha diz “e agora o mar volta a pertencer-nos” ouve-se um trovão. E depois do trovão vem aquela coisa mais doméstica do “ai está a chover? Tenho que ir tirar a roupa da corda”. Então essa foi a forma de ter as duas zonas, foi a forma que encontrei para ter essa zona em que muita gente encara como um orgulho, que faz parte da nossa história e da nossa cultural, a relação de um português com o mar e com a noção da geografia, essa coisa da abertura do português não se criou aqui, acho que se criou além-mar, não só pelas descobertas, as descobertas foram feitas sobretudo pelo comércio e qual é a grande qualidade de um comerciante? A simpatia. Isto corre-nos nas veias, mesmo que ninguém nos explique isto. Até esta coisa de uma certa subserviência perante o estrangeiro, nós comerciantes queremos agradar ao estrangeiro.

Mas essa ideia da exploração comercial deu lugar, em muitos locais, a ocupação de território e colonização dos povos que lá residiam. Isso é muito concreto.
Sim, claro, bem sei.

A certa altura fala-se da Rainha de Portugal e dos Algarves. E nessa zona fala-se de Quarteira, onde o Ricardo nasceu, sobretudo através de um pescador com queda para o álcool. É essa a memória que tem de Quarteira?
Quarteira está ainda hoje muito presente na minha vida, portanto não se trata bem de uma memória, os meus pais vivem lá e eu não passo mais de um mês e meio sem lá ir. A questão de irmos até lá, mais uma vez neste exercício do “e se”, a expedição portuguesa está em Beja e quer ir até Ceuta. Não me fez sentido voltar a Lisboa para apanhar esse barco e depois pensei: “Bom, vão para o Algarve, vão para Sagres”. Mas depois comecei a pensar que no século XXI o local mais seguro de ter um barco estacionado por acaso é a minha terra, que é Vilamoura, é a maior marina da Europa, ou já foi até há pouco tempo, não tem aqueles ventos e rochedos de Sagres e, por isso, não fazia sentido o Galeão Real estar lá. Em 2017, fizemos um espectáculo chamado “A Freguesia”, que era um feito a partir de vários testemunhos de habitantes de Quarteira e esse é um deles. É uma pessoa que existe, que fala daquela maneira, não é uma caricatura, nem uma coisa inventada.

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Continuando por Quarteira, como é que foi a sua infância?
Agora toda a gente teve uma infância maravilhosa, como diz o Jorge Silva Melo, agora ouvimos as pessoas falar e parece que toda a gente cresceu maravilhosamente. Mas de facto tive uma boa infância e tive uma sorte que acho que faz parte de mim que é ter crescido entre o rural e o urbano, entre a praia e o campo. Cresci numa quinta que fica na zona interior de Quarteira, que faz fronteira com o concelho de Albufeira, que é uma quinta que está na minha família há várias gerações, onde nasci e vivi até aos seis anos e onde ia semanalmente mesmo depois de já não viver lá. Passava lá muito tempo. Tenho aquela questão de ligação com a terra, de ir apanhar a melancia, de ir com os cães apanhar laranjas, tinha uma cadela que comia laranjas diretamente da árvore, que era fantástico, de ir até à ribeira molhar os pés, essas coisas. E de brincar com ossadas.

Como?
Sim, porque aquela quinta fica num antigo cemitério romano e eu brincava com umas pedras brancas e só anos depois é que fiz a ligação.

E ao mesmo tempo tinha a possibilidade de, nesse dia, ir à praia.
Exatamente. A minha escola era em Quarteira, estava sempre na praia, desde os 6 anos que ia sozinho para a praia e depois o meu pai ia-me buscar à hora de almoço e à hora de jantar. Às vezes conhecia pessoas, outras encontrava-me com amigos, mas muitas vezes estava sozinho, sempre numa zona em que aquilo não era nem uma aldeia, nem uma grande cidade, portanto quando vim para Lisboa não senti choque nenhum, senti mais uma lufada de ar fresco em termos culturais, lá havia um cinema que agora é um supermercado. E é uma cidade que tem 20 mil habitantes, mas que no verão chega a ter 100 mil e onde sentes um movimento tão grande como na baixa lisboeta. E isso foi um privilégio, sem dúvida, crescer nessas duas realidades, e, ao mesmo tempo, passar aquelas noites de verão a levar com picadelas de mosquito no meio da horta com os amigos e as lanternas pelas laranjeiras, eu a cair nas estrumeiras, a esconder-me nas oliveiras, brincar com as galinhas, isso faz parte de mim. E pronto, sou filho único, aprendi a brincar sozinho, apesar de ter amigos, claro, mas sobretudo no inverno lembro-me de estar muitas vezes sozinho e de inventar muitas coisas.

Então vem daí.
Vem daí, provavelmente.

Quando é que o teatro aparece, no meio desses pomares?
Ora bem, nasci em 85, o contacto com o teatro lá durante os anos 90 é nulo, não existia, estamos a falar de um teatro que estava sempre fechado, que abria muito pontualmente para espectáculos muito discretos, então não havia esse contacto, o contacto que tinha era o cinema e a televisão. No entanto, o meu pai toca piano e aos três anos começou-me a ensinar umas coisinhas. Aos seis fui para uma escola de piano, onde fazíamos apresentações públicas, portanto o meu primeiro contacto com o público vem daí. Íamos tocar a hotéis e assim, era muito miúdo e muito gordinho. Mas há aí uma zona em que, apesar de sentir uma grande atração entre texto e personagem, obviamente na altura não pensava assim, mas tinha essa atração. Mas ser ator, fazer teatro, estava tão distante de mim quanto a astronomia.

Era mais a música?
Não, era o facto de não conhecer nenhum artista. Sem ir ao teatro, sem ver os atores a sair, aquilo fica numa zona muito distante, mesmo que seja psicologicamente. Só para aí aos 14 ou 15 anos é que percebi que isto podia ser uma profissão. E foi precisamente aí que comecei a inscrever-me em pequenas formações, integrei um grupo amador no Algarve, onde fiz os dois primeiros espectáculos como ator e onde também fiz duas encenações.

"Fui muito feliz enquanto aluno no Conservatório, era sempre o pior aluno, mas estava sempre muito feliz, porque a minha formação era nenhuma, o meu conhecimento era abaixo de zero e então tudo era muito interessante, mesmo coisas que se calhar hoje, com a distância, já não acharia tão interessantes."

Isso tudo com 15 anos?
Com 15, 16 como ator, sim. E as encenações, a primeira com 18, a segunda talvez já com 19.

E já estava em Lisboa?
Estava, sim. Mas houve um ano em que tive um horário incrível em que tinha aulas segunda à tarde, terça, quarta e quinta, então conseguia ir para baixo e ensaiar quinta, sexta, sábado, domingo e fazia viagem para Lisboa na segunda de manhã. Então era perfeitamente compatível estar a fazer as duas coisas. E depois é assim, falamos de um grupo amador onde chegava a ter 80 pessoas, 50 pessoas, eram sempre uns grupos muito grandes com atores e cantores. E ainda tive a sorte de ter dois profissionais, que é uma coisa relativamente comum no Algarve, reformados que vão para o Algarve. No grupo havia o Matos Maia, antigo jornalista, fundador da Rádio Clube Português e era o encenador. E o diretor do grupo era o António Alvarinho, que foi cantor no São Carlos. Ambos foram para o Algarve quando se reformaram. Portanto, tínhamo-nos a dirigir dois profissionais reformados, mas que na verdade nos ensinaram muita coisa e aquilo chegava a ter um nível muito interessante.

Mas antes disso, como é que achou que isto podia ser uma profissão?
Não sei, deve ter existido algum clique, alguma informação, qualquer coisa que vi, se há formação é porque posso ser profissional.

Mas não tinha contacto.
Tirando os teatrinhos de escola, não tinha contacto nenhum. Deve ter sido uma decisão muito rápida.

Começa a estudar na Escola Superior de teatro e Cinema com 18 anos, é isso?
Sim, entrei como terceiro a contar do fim, fiz as provas muito desgraçado, porque tinha acabado de partir o pé, nem sei como é que entrei. Mas lembro-me de estar muito perturbado com as muletas, a fazer as provas. Fui muito feliz enquanto aluno no Conservatório, era sempre o pior aluno, mas estava sempre muito feliz, porque a minha formação era nenhuma, o meu conhecimento era abaixo de zero e então tudo era muito interessante, mesmo coisas que se calhar hoje, com a distância, já não acharia tão interessantes.

Mas na altura bateu-lhe.
Sem dúvida, foi um abrir de olhos extraordinário, foi uma escola muito importante para mim. Há pessoas que acham que o Conservatório está um bocadinho aquém das expectativas, mas para mim foi uma altura muito feliz. E a vinda para Lisboa foi uma coisa extraordinária, porque com tão pouco contacto com teatro e cinema… Na altura ainda era comum as temporadas semanais serem de terça a domingo. Então ia de terça a domingo ao teatro.

Ainda bem que o disse que é sempre um tema bom para ficar registado numa entrevista.
Ah pois, o Teatro Nacional era de terça a domingo, sempre. E como também via muito pouco tempo cinema no Algarve, o Monumental, o Saldanha Residence, o Nimas, o Ávila, o King, o Fonte Nova, o Turim, faziam sessões que começavam às onze da manhã, pelo menos ao fim-de-semana. Começava a ver cinema às onze da manhã, via a sessão depois da hora de almoço, ia ao teatro e se ainda tivesse energia ia à sessão da meia-noite. Portanto, via sempre três ou quatro filmes por dia ao fim-de-semana e os espectáculos.

Foram anos de absorção.
Completa absorção. E de felicidade absoluta. Lembro-me do ano em que fui a primeira vez ao Festival de Almada, aquela coisa de ver três espectáculos num dia… foi uma sensação incrível, onde me senti mais feliz foi a primeira vez que fui ao Festival de Almada e a primeira vez que fui ao Festival d’Avignon. Andava em êxtase. Estar ali, com aquela gente.

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Fazia sentido.
Completamente. E aí chega aquela dificuldade de explicar para que serve o teatro, também tenho dificuldade em sentir porque é que fui tão feliz a assistir a teatro de uma forma tão convulsiva, monstruosa quase. Não sei dizer bem porquê.

Há pouco dizia que estudou piano. Isso durou até quando?
Até uns anos antes de vir para Lisboa.

Foi sempre piano?
Sim, sempre. Quando comecei a inscrever-me em workshops e assim, deixei de ir às aulas. O estudo da música não aconteceu para lá dessas aulas, que eram quase uma ocupação de tempos livres, não era uma coisa profissional.

Ainda assim é uma coisa que lhe ficou. A sua forma de fazer teatro tem sempre uma grande componente musical.
Exatamente, gosto de escrever coisas para serem cantadas, gosto de investigar músicas, gosto de trabalhar a ópera. Não sei se tem que ver com a formação, se não a tivesse talvez gostasse na mesma… Não sei. É claro que há uma familiaridade quando tenho o Filipe Raposo a trabalhar a música, ou o Cesário Costa a dirigir a orquestra, há ali qualquer coisa que me é familiar.

Depois do Conservatório, por onde andou, como é que se foi construindo esse caminho até à formação do Teatro do Eléctrico.
Terminei o Conservatório em 2006 e nesse ano comecei logo a trabalhar com o Bruno Bravo e com os Primeiros Sintomas, onde estive dez anos como ator e em simultâneo com o Teatroesfera. Deu para conciliar as duas companhias porque os Primeiros Sintomas tinham uma equipa mais ou menos recorrente, de mães recentes, que de manhã deixavam os filhos na creche e, portanto, ensaiava-se de manhã. E o Teatroesfera era uma companhia onde se ensaiava à noite. Ficava nos Primeiros Sintomas até às quatro da tarde e a partir das seis estava no Teatroesfera. Então fiquei nas duas companhias talvez entre 2006 e 2012. E fiz alguns trabalhos pontuais noutros sítios, passei pelos Artistas Unidos, onde entrei como actor n’A Morte de Danton.

Esse grande texto.
Mesmo. E depois encenei lá um espectáculo. Fiz várias coisas, dobragens, locuções, pontualmente novelas, animações.

Mas, entretanto, essa coisa de ser ator meio que se esfumou.
Acabei o Conservatório em 2006, mas em 2005 escrevi “O Regresso de Natasha”, que é a minha primeira peça. Ser ator era a minha atividade principal, escrevia e encenava nos tempos livres, até que houve um género de gráfico em que a certa altura era equivalente o trabalho de ator em proporção com a encenação e a escrita. Não faço nada como ator desde a reposição de “Entraria nesta sala…”, que é um texto meu com encenação da Sandra Faleiro, em Abril de 2016. Nunca mais fiz nada.

Está posto de lado?
Olho de maneira diferente. Tenho muitas saudades de fazer determinadas coisas, tenho saudades de fazer aquelas personagens secundárias divertidas, as personagens secundárias dos tontos, dos espertalhões, as personagens mais giras são sempre os melhores amigos da personagem principal. Agora, já não tenho a vontade de assumir o desafio de fazer um Hamlet. Seria uma tortura para mim, não sou bom ator, na medida em que não sou versátil, não tenho o domínio do corpo e da voz para vir a ser um bom ator. Tenho sentido de humor para ser um ator porreiro de comédia e fazer muita parvoíce, aí sinto-me à vontade.

Isso é uma questão de exigência própria, então.
Não, é uma questão de eu saber que não consigo atingir, a não ser em algumas zonas, a exigência de um encenador. Sei que não tenho a capacidade.

Custa-lhe.
É uma vergonha. E é algo que é muito difícil de assumir.

Ainda assim foi ator durante muito tempo.
Durante dez anos fui ator profissional. Fiz para aí 50 espectáculos.

Ou seja, não havia de ser assim tão mau.
Não, mas eu também nunca fiz o Hamlet, percebes? Não fazia esse tipo de coisa.

"Vou de casa até aos ensaios a pé, vivo no Marquês e vou a pé até ao Lumiar. E acho que há uma percentagem da encenação, mesmo que sejam 20%, que faço nesse caminho, os atores até me gozam porque vou dando notas por SMS nesse trajeto."

Mas era porque não o colocavam lá?
Nem se chegava a colocar a hipótese. Mas nisso era muito transparente. A Cristina Carvalhal convidou-me há uns tempos para fazer um espectáculo e eu primeiro disse que sim e depois disse que não conseguia mesmo. Mas disse-lhe logo: “Olha, meu amor, tu sabes que eu sou muito fraquinho, não sabes?”. Logo aí coloco a pessoa à vontade para voltar atrás com o convite.

E o Teatro do Eléctrico?
Surge por uma vontade de ter um espaço próprio, não são as quatro paredes, um espaço psicológico, um sítio que sinta que também é meu, onde consiga fazer uma proposta artística e não estar sempre a receber propostas artísticas. Nós estamos sempre a sonhar, qualquer pessoa está sempre a sonhar, qualquer pessoa está-se sempre a projetar, e quando ouvia músicas e elas me davam uma determinada imagem, eu nunca estava nessa imagem, portanto no sonho nunca sou ator, sou quem dirige aquela imagem, para outros atores, e nunca estou na imagem porque nunca consigo fazer uma fotocópia para dar ao ator, é por isso que tenho que ir todos os dias para a sala de ensaios fazer passar essa imagem. Acho que é isso, no sonho nunca estou lá.

E o facto de ter consciência dessa limitação fá-lo ser melhor encenador, ou se fosse um ator espantoso seria igual?
Se eu fosse um ator espantoso se calhar não me tinha perdido com a escrita, que é uma coisa que me dá cabo da cabeça.

Entremos então numa zona mais leve. O que é que gosta de fazer nos raros tempos livres que tem?
Gosto muito de ler. E típico algarvio: ir à praia é qualquer coisa de obrigatório, estar no Algarve e não estar na praia é quase claustrofóbico. Gosto muito de andar e de ouvir música enquanto ando. Agora vou de casa até aos ensaios a pé, vivo no Marquês e vou a pé até ao Lumiar. E acho que há uma percentagem da encenação, mesmo que sejam 20%, que faço nesse caminho, os atores até me gozam porque vou dando notas por SMS nesse trajeto, acho que há uma justificação muito fácil: as endorfinas que se libertam, tanto que parte do texto também foi escrito na passadeira do ginásio, as endorfinas são mesmo úteis, tal como o sugar rush, escrever e comer um quilo e meio de bolo é uma coisa que tem resultados. É mesmo como uma moca, porque às vezes vou ler e só escrevi porcaria…

Obrigado pela dica.
Depois há uma zona em que não sou muito diferente de qualquer pessoa. Não sou muito de sair à noite, acho que tem um bocadinho a ver com o meu trabalho, tenho sempre umas 25 pessoas à minha volta, então quando chega a altura de sair prefiro ir só com duas ou três.

Claro, até porque depois para dividir uber é uma chatice.
É mesmo. Viajo imenso, às vezes sozinho, outras acompanhado. Ultimamente tem sido mais sozinho e até tenho facilidade em conversar com desconhecidos. E é engraçado, oiço muita música mas nunca registo o nome de quem a canta. Faço aquela coisa de andar sempre à procura e passei pelo ridículo de achar que era a única pessoa do mundo que conhecia aquela… ainda agora não sei o nome dela. Aquela canção, “Bad Guy”?

É a Billie Eilish.
Exatamente. Pensei: “que música tão engraçada”. Estava toda a gente no planeta a ouvir aquilo e eu achava que era o único. Cheguei a mandar isto ao Filipe Raposo, para ele ver o que achava para uma parte do espectáculo. E ele disse só “granda pinta”, mas acabou a conversa aí. Até que depois comecei a vê-la nos cartazes, a aparecer em todo o lado, em bandas sonoras de filmes e pronto, pelos vistos, não era o único. Tenho esta coisa, lido com a música de acordo com aquilo que oiço e não com uma referência que tenho, porque nesse sentido até sou muito ignorante. Não faço ideia do que se anda a ouvir.

Tem dificuldades em decorar nomes.
Também, sim, mas por outro lado é uma coisa de interesse, o nome em si não me puxa interesse. E então ando sempre num género de zapping pelo Spotify. Mas antes, quando havia o eMule para fazer os downloads, escrevia: “Sky” e fazia downloads de todas as músicas que tinham o nome “Sky”. Demorava era um mês e meio a fazer a transferência, mas era assim.

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