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“Os médicos (…) têm a cultura de durões. Dar a parte fraca não é algo que seja muito aceite naquilo que é a nossa cultura. Eu queria, e queria, e queria, e queria, e comecei a sentir que estava num ponto em que pareciam areias movediças: quando mais lutava, mais me enterrava; quanto mais queria, mais frustrado ficava.” |
As palavras são de Gustavo Carona, na entrevista (que pode ver aqui em formato vídeo ou ler aqui em formato texto) publicada em janeiro, inserida na série Labirinto, Conversas sobre Saúde Mental. Na altura, o médico contou à jornalista Sara Antunes de Oliveira como a suspeita de burnout e a dor crónica que lhe limitou a prática clínica se foram tornando, aos poucos, pesados fardos com que já não conseguia lidar. |
“O momento de viragem é quando percebo claramente que estou a fazer mal a mim próprio”, admitiu. |
Nem todos os médicos, porém, percebem isso. O intensivista percebeu e teve de encontrar outras estratégias – nomeadamente parar de trabalhar – para lidar com tudo o que tinha em mãos, como contou na entrevista. |
Não é fácil para quem ajuda a cuidar da saúde dos outros admitir que precisa de cuidar da sua própria saúde mental. O mesmo se passa noutras profissões, mas as que estão ligadas à medicina, está estudado, são mais propensas a esta forma de pensar – e a este estigma autoimposto. |
Há muita literatura científica sobre o tema, mas destaco dois artigos (em inglês), numa linguagem relativamente fácil para leigos em medicina como eu, que ajudam a explicar o fenómeno que faz dos médicos causa e solução para o problema do estigma profissional em temas de saúde mental: este assinado por K. J. Brower, professor do Departmento de Psiquiatria da Escola de Medicina da Universidade do Michigan, disponível no site do Centro Nacional de Informação Biotecnológica (EUA); e este da autoria de Swapnil S. Mehta e Matthew L. Edwards, investigadores da Universidade de Stanford, no American Journal of Psychiatry. |
A situação não começa, porém, quando os médicos fazem o famoso juramento de Hipócrates na conclusão do tão ambicionado e exigente curso de medicina, antes do acesso à profissão. Este preconceito e dificuldade em ultrapassar os desafios de saúde mental perante si próprios, os pares e os doentes começa bem antes. E é acentuado durante o percurso académico. |
“A percentagem de alunos [de medicina] que sentiam a sua saúde mental fragilizada é superior à média internacional”, diz o presidente da Associação de Estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (AEFMUL). “Enquanto nos outros países a média era 40 a 50 por cento, em Portugal era de 60 por cento.” Duarte Graça referia-se a este inquérito conduzido pela Associação Nacional de Estudantes de Medicina em 2020, que concluiu ainda que 73 por cento dos inquiridos sentiam que precisavam de ajuda e não a procuravam. |
As citações do presidente da AEFMUL fazem parte do artigo que publicámos na sexta-feira passada sobre o Espaço S, o serviço de Apoio Psicológico da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). A reportagem reflete a realidade de necessidade de apoio em saúde mental daquela escola de medicina, mas não andará muito longe do que se passa noutras instituições do género em Portugal. |
No caso concreto do Espaço S, a ideia nasceu em 2013, pela mão do psiquiatra – e então docente – Daniel Sampaio. “Era preciso criar um gabinete que garantisse alguma privacidade e reserva, para que os estudantes se sentissem à vontade para procurar ajuda”, disse o médico à jornalista Catarina Pires, que assina o texto (com fotografias de Tomás Silva). “Até porque gabinetes de apoio psicológico são fundamentais, [também] para tratar situações de assédio, sexual ou moral.” |
O que começou com recursos limitados do Hospital de Santa Maria e mais tarde com um psicólogo externo, é agora uma equipa de oito pessoas inserida no Gabinete de Apoio ao Estudante, que no ano letivo 2021/2022 acompanhou 155 alunos e contabilizou 1137 consultas. Ansiedade e depressão são os temas que levam mais pessoas a procurar o Espaço S, mas perturbações do comportamento alimentar, problemas de sono e dificuldade de gerir as exigências académicas e do dia a dia juntam-se a este cocktail. O número de estudantes que pede ajuda tem aumentado de ano para ano e a tendência futura, claro, é para continuar a crescer. |
Talvez a nossa reportagem contribua para isso também, mas o principal motivo é outro. Dois, na verdade, um direto e outro indireto. Se por um lado a pandemia, com os confinamentos, o isolamento e as aulas à distância vieram trazer dificuldades acrescidas a um curso que já é bastante difícil, sobretudo no caso de estudantes deslocados, por outro lado a literacia em saúde mental a que a emergência da Covid-19 obrigou serviu para destapar ainda mais um problema antigo. O que já era mau, ficou pior. Mas foi também motor para criar e melhorar uma série de soluções. |
O Espaço S, numa realidade local, é uma delas. Outra foi a linha de Apoio Psicológico do SNS 24 (808 24 24 24). Lançada no início da pandemia de Covid-19, completou três anos no passado dia 1 de abril, tendo recebido até então cerca de 210 mil chamadas. Dessas, mais de 14 mil foram realizadas por profissionais de saúde que precisaram de ajuda. |
A ansiedade, a depressão e a insónia estão os principais problemas que os médicos – os que conseguem falar sobre isto – habitualmente reportam. E, claro, burnout, tão comum em profissões ligadas ao “cuidar” e tantas vezes confundido com cansaço extremo ou exaustão, mas que, com todas as manifestações de isolamento, irritabilidade, desânimo e desconcentração, conduz a quadros clínicos verdadeiramente incapacitantes, como bem descreveu o psiquiatra Vítor Cotovio nesta entrevista da série “Sair do Labirinto”. |
Se juntarmos a isto a automedicação e o autoestigma por admitirem que têm um desafio de saúde mental que necessitam de enfrentar, podem estar reunidas as condições para um agravamento do problema. E para a redução da qualidade dos serviços prestados. |
É claro que, para isto, muito contribui a degradação das condições de trabalho (e a ausência de controlo sobre estas), as pressões de tempo, a desorganização de serviços e, por vezes, o desalinhamento de fatores tão importantes como a missão a que se propuseram, a realidade que encontram e a compensação que têm. |
Mas, por muitas voltas que demos, acabamos por desaguar sempre no preconceito em torno destes tema. Quer das pessoas que passam por isso quer das que estão à volta. |
Lembro-me de em 2019, numa entrevista a Júlio Machado Vaz, o médico me falar do seu próprio processo terapêutico na sequência de uma depressão. “Quando eu disse que tinha estado deprimido, houve colegas que me telefonaram. ‘Tu suicidaste-te profissionalmente. Quem é que vai querer pedir a ajuda de um psiquiatra que disse, a quem o quis ouvir, que tinha estado deprimido?’” A realidade, porém, não foi bem assim. “Quando as pessoas me dizem, em relação à ansiedade ou à depressão, ‘o senhor não imagina o que isto é’, eu respondo: ‘não preciso imaginar, eu sei o que isso é’.” |
O caminho para falar de temas de saúde mental com a mesma naturalidade com que abordamos outros desafios de saúde é longo e depende de muitos fatores. E muitas iniciativas. O Gabinete de Apoio Psicológico da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa é uma delas. O projeto Mental, do Observador, é outra. |
Dois meses depois do arranque do nosso projeto dedicado exclusivamente à Saúde Mental vão-se acumulando na homepage da iniciativa as reportagens que temos publicado. Pode ver em baixo as mais recentes, mas chamo a atenção para este vídeo, que lançámos ontem. No terceiro episódio da série “Do outro lado, histórias de quem trata a saúde mental”, Filipa Jardim da Silva fala da paciente com um diagnóstico de anorexia nervosa, em risco de vida, e da forma como esse caso lhe marcou a prática clínica para sempre. A partir de então, a a psicóloga passou a ouvir também “o que sente”.
“O caso do rapaz que jogava online 22 horas por dia” é o primeiro episódio da série. “A mulher que não conseguia sair de casa há dez anos” é o segundo. |
Entretanto, pode ler aqui as outras newsletters desta iniciativa. Se achar que alguma delas ou algum artigo que já publicámos pode ser útil a alguém, não hesite: partilhe. O combate ao preconceito começa em cada um de nós. |
Boas leituras. |