Discute-se atualmente uma mudança da velocidade máxima de 50km/h para 40km/h em determinadas vias de Lisboa. A resposta a esta questão não é óbvia e depende de vários fatores. Primeiro é preciso perceber que a rede viária tem sempre uma hierarquia subjacente, hierarquia essa que tem que estar bem patente nos planos da cidade. Há pelo menos vias arteriais, vias distribuidoras, e vias locais, sendo que a cidade pode trabalhar com mais níveis dependendo dos seus objetivos. Em Lisboa, já existem bairros de 30km/h, por exemplo. Em geral, a cada nível dessa hierarquia correspondem parâmetros diferentes de dimensionamento no que concerne pelo menos à velocidade máxima, número de vias e existência de via segregada para outros modos: vias BUS, vias cicláveis, etc. Procura-se eficiência, segurança e equidade no acesso à mobilidade e ao espaço público. A mudança de 50km/h para 40 km/h não tem que ser necessariamente um problema, já que poderia ser aplicada a vias específicas da rede criando um outro nível em que essa velocidade possa ser desejada para, por exemplo, resolver problemas de sinistralidade rodoviária ou para proteger a instalação de pistas cicláveis.

É claro que uma redução de velocidade conduz sempre a maior segurança sendo possível construir uma relação muito significativa entre velocidade e gravidade de uma colisão. Mas, como em tudo na vida, há sempre um trade-off entre risco e objetivos de uma determinada decisão. Para que não haja acidentes rodoviários com toda a certeza bastaria ficarmos todos em casa, aliás como vimos durante a pandemia. É por isso necessário ser efetuado um estudo específico de modelação da oferta e procura na rede viária da cidade para compreender que consequências traria esta medida quando aplicada aos referidos eixos selecionados. Não bastando para isso um estudo do tipo como o que vi referido no jornal económico, estudo esse que no meu entender faz uma análise económica incompleta de redução generalizada de velocidade na cidade, fazendo suposições irreais sobre a mobilidade. A saber:

  • A ocupação dos veículos é definida em 1.6 pessoas por veículo, que é o resultado apresentado no inquérito realizado pelo INE na Área Metropolitana de Lisboa. Um dos problemas com esta abordagem é que muitas dessas viagens são realizadas com crianças, pelo que o estudo está a atribuir-lhes um salário, quando lhes associa um valor do tempo baseado no salário médio (ver o seguinte ponto).
  • O valor do tempo é totalmente indexado ao salário. No entanto sabemos que o valor económico do tempo dentro de um veículo em viagem pendular depende do salário, mas também da experiência da viagem em si mesma. Raramente o salário médio é utilizado para o valor do tempo perdido até porque nem todo o tempo de viagem pode ser convertido em tempo de salário. Como exemplo: o valor do tempo médio numa viagem pendular nos Países Baixos anda à volta de 10 euros por hora, medido em inquéritos à população, mas o salário médio no país é de mais de 20 euros por hora. Portanto o salário é o dobro do valor do tempo. O valor do tempo só começa a ser muito elevado quando a viagem é efetuada durante o tempo de trabalho, isto é, quando a empresa está a pagar diretamente esse tempo ao trabalhador. No entanto essas viagens são em menor número quando comparadas com as viagens pendulares.
  • A distância das viagens é definida como 15 km. Mas essa é a distância média; se as médias fossem boas para fazer estudos de transportes, eu não trabalharia num Departamento com 30 professores a desenvolver modelos para apoio à decisão em tráfego e transportes. Esta é uma abordagem grosseira que não é recomendável dada a importância da questão da redução do limite de velocidade.
  • Os acidentes evitados não têm custos económicos. Nada é dito no referido estudo sobre o custo dos acidentes e das vidas humanas que se poderão poupar com a redução de velocidade em certos eixos da cidade. É necessário ter em conta que os valores de referência para a vida humana em análises custo-benefício em transportes são bastante altos na União Europeia. Esse valor está indexado, nomeadamente, à perda da produtividade do indivíduo que perde a vida no trânsito.

No entanto, o estudo tem razão quando menciona que, do ponto de vista do funcionamento de um motor, a maior eficiência não se encontra em velocidades de 40km/h, dependendo dos veículos esta pode estar entre os 50 km/h e os 80 km/h. Para suportar esta afirmação, correta, refere-se um outro estudo francês que relaciona velocidade com eficiência dos motores e correspondentes emissões. Contudo esses valores são alcançados em situação de circulação ideal e constante. Em ambiente urbano há outros fatores que desempenham um papel muito importante na capacidade viária (número de veículos por unidade de tempo que atravessam a secção transversal de uma estrada) e emissões como a estabilidade do fluxo, criação de afunilamentos (bottlenecks), e número de interseções com outras estradas e vias.

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Por fim resta-me explicar que, em transportes, uma medida nunca pode ser analisada apenas no contexto de um cenário estático de curto prazo sem discutir efeitos de médio e longo prazo. Há muito que percebemos, por exemplo, que dar prioridade ao automóvel para resolver problemas de congestionamento na maioria dos casos não os resolve, só os aumenta e agrava. Isso acontece porque o sistema de mobilidade e usos do solo é dinâmico levando as pessoas no médio e longo prazo a adaptarem-se à oferta que lhes é dada, mudando, por exemplo, de modo de transporte ou alterando a localização da sua residência. Ao reduzir-se a velocidade, é clara a prioridade que está a ser dada a outros modos de transporte, nomeadamente os modos ativos que estarão assim mais protegidos levando a uma mudança gradual, preferencialmente não radical, na repartição da procura pelos diferentes modos.

A conclusão de que “A decisão de reduzir os limites de velocidade em Lisboa, per si, terá um impacto negativo a nível ambiental, económico e social” referida no tal estudo é assim infundada já que a proposta necessita de análise muito mais aprofundada sobre todos os fatores referidos acima. Carlos Barbosa do ACP dizia – e eu não poderia estar mais de acordo com ele, pelo menos neste tema – que “Sem haver estudos, não se podem tomar medidas dessas.” O problema é a qualidade desses estudos. Julgo que a CML está agora preparada para responder a esta questão com resultados dos modelos de transportes que têm desenvolvido assim como dos dados que coletam em tempo real do sistema de tráfego. São esses, e apenas esses, resultados que é necessário incorporar numa análise económica da medida e não a utilização de valores médios retirados do seu contexto. Faltando, infelizmente, e já desde há muito tempo, um inquérito detalhado à mobilidade dos habitantes da região metropolitana de Lisboa para suportar melhores modelos de transporte.

É pena que as discussões sobre transportes em Portugal continuem reduzidas a um nível muito pouco rigoroso. Ninguém arrisca sugerir diâmetros de condutas na rede de canalização da água na cidade de Lisboa mas toda a gente tem uma opinião sobre a rede viária, como se não fossem necessários conhecimentos técnicos para planear e gerir redes de transportes. Alguma imprensa não ajuda. Recentemente na P3 do Público dizia-se de um estudante de Relações Internacionais há um ano a viver em Lisboa: “Antes de começar o projeto da Rede Madrugada [da CARRIS], já o seu portefólio era bastante composto, tendo redesenhado, por exemplo, o mapa do Metro de Lisboa. Foi por isso que quando chegou à capital, em Setembro de 2021, já tinha todas as estações de metro na cabeça”.  A ideia de que a rede de metro pode ser desenhada como um hobby é tão errada quanto perigosa, porque pode ser que num futuro próximo já só nos restem amadores para planear redes de transporte em Portugal, por melhor que sejam as suas intenções e “olho para os transportes públicos”.

Quanto ao tema da redução da velocidade, o Livre diz que agora é a Câmara que tem que estudar o problema. E por mais que eu esteja interessado em ver os resultados de tal estudo parece-me que esta é uma forma perniciosa de ver a política. A assembleia impõe políticas em relação às quais não sabe o verdadeiro resultado mas é o executivo camarário que as tem que justificar. Corremos o risco da maior câmara do país ser governada por decretos produzidos a partir da assembleia municipal. Enfim, entendam-se.

Gonçalo Homem de Almeida Correia é doutorado em transportes pela Universidade Técnica de Lisboa (Instituto Superior Técnico) e agregado em sistemas de transportes pela Universidade de Coimbra. Tem uma carreira universitária de mais de 12 anos sendo atualmente Professor na Universidade Técnica de Delft, Países Baixos, e Professor convidado na Universidade de Beijing Jiaotong em Pequim, China, nos seus programas de engenharia e planeamento de transportes.