1 Confesso que estou como a maior parte dos portugueses estarão: cansado dos sucessivos casos e casinhos do Governo de António Costa. Uns mais importantes do que outros — mesmo assim nada que suplante aquilo que é verdadeiramente essencial: a ausência de políticas públicas reformistas que tenham o desígnio de alcançar a média da riqueza e do poder de compra dos 27 países da União Europeia.

E não, os fogachos inconsequentes (por não serem constantes e estruturais) do crescimento do PIB não fazem com tal desígnio seja assumido.

Ficamos cansados dos inúmeros casos que marcaram a vida desta maioria absoluta desde março de 2022 e verdadeiramente enjoados dos sucessivos episódios da telenovela da Comissão Parlamentar de Inquérito da gestão da TAP — algo que os spin doctors do Governo anteciparam, e bem.

Contudo, há uma característica do primeiro-ministro que contamina (cada vez mais) o seu Executivo e que não pode ser desvalorizada, sob pena de a saúde da nossa democracia se degradar para níveis insustentáveis — e que passarão a constituir a nova bitola para os sucessores deste Governo.

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Refiro-me à forma como António Costa e os seus ministros recusam a prestação de contas mais elementar e praticam despudoradamente a opacidade. É a chamada arrogância da maioria absoluta.

2 Veja-se o caso da viagem da António Costa a Budapeste para ir ver a final da Liga Europa. É um casinho completamente dispensável que só existe em parte porque o primeiro-ministro se recusou a explicar ao Observador logo ao início o que tinha acontecido.

São perguntas básicas: por que razão o primeiro-ministro não colocou o jogo da final da Liga Europa na sua agenda pública? E por que razão não explicou logo ao Observador exatamente o que veio dizer esta segunda-feira, três dias depois da notícia ter sido publicada: o convite partiu da UEFA e só se sentou ao lado de Orban por razões protocolares?

Os seus camaradas e ex-camaradas socialistas (como Paulo Pedroso) começaram por ensaiar que Costa foi só dar um abraço a José Mourinho (treinador de uma das equipas finalistas).

Pelo caminho inventou-se pura e simplesmente que era necessário uma paragem técnica em Budapeste por falta de autonomia do Falcon para continuar a viagem até à Moldávia. O que é falso, basta consultar o site da Força Aérea.

E ainda teve de vir o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa em socorro de António Costa para dizer que não via qual era o mal, homenageando os bons velhos tempos em que o PM lhe segurava o guarda-chuva para o proteger da chuva de Paris.

Afinal, não era necessária nenhuma paragem técnica, o convite foi oficial e Costa só ficou ao lado de Orban (de quem obviamente não é próximo) porque foi obrigado pela UEFA. Aquele smile com os olhos revirados para cima vinha mesmo a propósito aqui.

3 Não se percebe como um político tão experiente e profissional como António Costa deixa que um casinho destes cresça durante três longos dias quando a explicação é tão simples como aquela apresentada esta segunda-feira.

Confesso, contudo, que acredito mais noutra explicação: a arrogância política de quem entende que está no conforto da maioria absoluta e não tem de dar explicações sobre o que faz com um Falcon propriedade e pago pelos contribuintes portugueses. O que é um pouco ridículo quando a viagem feita a convite da UEFA justifica claramente a utilização da aeronave, visto Costa estar a representar o Estado português.

Não sei se António Costa está em campanha para um cargo europeu mas lembro-me perfeitamente como um ministro do seu Governo me explicava o encanto do primeiro-ministro pelos holofotes da política europeia durante a presidência portuguesa em 2021.

Uma coisa é certa: António Costa tem uma relação próxima com Viktor Orban. Não sei se a proximidade nasce de uma atração política pelo perfil autoritário de Orban — a atração pelos “homens fortes”, como a psicologia política explica — mas certo é que Costa já deu sobejos exemplos dessa proximidade.

Como recordei aqui, Costa chegou a dizer que era um “exagero” classificar a Hungria e a Polónia como “autocracias” quando estes dois países se arriscavam a sanções por um risco claro de violação grave das regras do Estado de Direito e dos valores em que se baseia a União Europeia.

E quando Viktor Orban já tinha feito o seguinte (e acredite, caro leitor, é apenas uma breve e sucinta descrição de posição extraordinárias do primeiro-ministro húngaro; há muitos outros exemplos):

  • Orban promoveu uma retórica anti-semita contra o empresário George Soros, apenas porque o filantropo judeu de origem húngara discorda das suas políticas;
  • Garantiu aos romenos da Transilvânia que não queria que os húngaros se tornassem em “pessoas de raça mista”
  • Classificou o italiano Matteo Salvini como um “herói” pelas suas políticas anti-imigração, além de considerar os imigrantes “como bombas e ameaças biológicas”. As declarações entre aspas são de Orban, não de Salvini.
  • E que, the last but not the least, destruiu qualquer ideia de separação de poderes, controlando o poder judicial a seu gosto, e mandou fechar vários órgãos de comunicação social que ousaram escrutinar o seu Governo.

Refira-se, por último, que António Costa deu uma ajuda fundamental a Orban quando defendeu, aquando da discussão da definição de regras para atribuição de fundos europeus para o pós-covid, que o respeito pelas regras do Estado de Direito não devia ser critério para a distribuição dos fundos europeus.

4 Que não tenhamos grande dúvidas: um dos grandes amigos de Vladimir Putin na União Europeia, que beneficiou durante anos da venda de gás russo a preços de amigo (o que muito o ajudou a conseguir uma energia barata e o respetivo apoio popular) tem em António Costa um claro aliado no Conselho da União Europeia.

É por isso que não podemos deixar de constatar que a seguinte contradição: o António Costa que se queixa (e com razão) de ser vítima de racismo em Portugal, é o mesmo António Costa que se arma em grande pragmático e vai à bola com o anti-semita, racista e autoritário Viktor Orban.

Bem sabemos que os socialistas formais e informais do espaço público são muito seletivos nos seus ódios de estimação internacionais. Mas é preciso ser muito hipócrita para querer impor uma cerca em redor do Chega pelas suas posições xenófobas e racistas e ficar cego, surdo e mudo quando António Costa tem em Viktor Orban um grande aliado a nível europeu.

5 A arrogância da maioria absoluta que se viu no casinho do Falcon repete-se com muita regularidade desde março de 2022 — e parece que persistirá até ao final do mandato deste Governo.

Veja-se, por exemplo, como nenhum representante do Executivo esteve presente na inauguração do memorial de homenagem às 66 vítimas mortais e aos 253 feridos dos incêndios que deflagraram a 17 de junho de 2017 em Pedrógão Grande.

E como o próprio primeiro-ministro tentou responsabilizar no Twitter a Câmara Municipal de Pedrógão Grande (curiosamente, ou talvez não, uma autarquia que o PSD ganhou ao PS) pelo facto de a cerimónia não se ter realizado. O gabinete de Costa foi obrigado a apagar esse tweet e a substitui-lo por outro em que, afinal, faltava ainda um acordo entre o Governo, a Comunidade Intermunicipal da Região de Leiria e os familiares das vítimas.

Foi mais uma trapalhada que ficou resolvida, vá lá, com um pedido de desculpa da ministra Ana Abrunhosa.

6 A arrogância da maioria absoluta também se vê noutras situações em que o Governo nada diz sobre as soluções ou nada faz quando se impõe uma tomada de posição pública clara.

Olhemos para o caso da greve dos funcionários judiciais que dura desde fevereiro e que já terá obrigado ao adiamento ou anulação entre 40 mil a 45 mil diligências — um valor que demonstra como a máquina da administração da justiça está a ser seriamente afetada pelas sucessivas greves.

Ora, a ministra Catarina Sarmento e Castro (que poucos portugueses sabem quem é, tal é a sua ausência do espaço público) nunca se reuniu verdadeiramente com os sindicatos dos oficiais de justiça. E o próprio secretário de Estado da Justiça em quem a ministra delegou as negociações não fala com os sindicatos desde o final de março.

Isto quando está a decorrer até o dia 14 de julho o terceiro período de greve e a ministra da Justiça diz que apenas tentará resolver o problema no final do ano com uma nova proposta de estatuto para os oficiais de justiça. É, uma vez mais, o conforto da maioria absoluta a ditar as regras.

7 Último exemplo: o laxismo verdadeiramente preocupante do Ministério do Trabalho e da Segurança Social sobre o chamado caso B Sports — uma academia de futebol cujos responsáveis são suspeitos do crime de tráfico de pessoas no caso de 47 jovens, sendo 36 deles menores de idade.

Ora, a academia B Sports tem uma certificação como entidade formadora da Direção-Geral do Emprego e das Relações do Trabalho, sendo igualmente certo que B Sports usa o logo oficial do Governo e da República Portuguesa nos seus vídeos promocionais que mostra ao mundo.

E o que faz a entidade pública que certificou a academia de Mário Costa como entidade formadora? Nada, visto que garantiu à RTP que não via razões para fazer uma auditoria para perceber se a B Sports ainda cumpre as regras para a certificação.

Onde está a ministra Ana Mendes Godinho perante uma atitude tão laxista como esta? Isto não é motivo para que a ministra do Trabalho atue e ordene uma auditoria? Parece-me que sim…

Contudo, num Governo em que os ramos mortos persistem em dar provas de vida, tudo é possível. Até apoiar Viktor Orban na Europa e fazer de André Ventura em Portugal o inimigo público número 1.