“E sem dar conta do caminho que traçava, deu-se a si mesmo, o destino que mais temia – FIM”.

Ora, começar pelo fim não é o mesmo que concluir com um início. No relato de uma história, terminar com o seu início é privá-la do privilégio de se principiar, contudo começar pelo seu fim poderá ser o catalisador para as necessárias correções de trajetória “em vida irmão, em vida”.

Recém-chegada de um ano a viver em Montevideo, Uruguai – a segunda capital mais meridional do mundo – regresso enriquecida por uma série de mudanças de perspetiva, as quais desejo (convicta e ativamente) que perdurem.

Tudo começou com um cruzar de oceano – estando a 9746 km de casa – e com a descoberta de um mapa desenhado em 1943 pelo pintor Uruguaio, Joaquim Torres Garcia. Retratando a América do Sul invertida, com o polo sul no ápice orientada a sul, propunha uma configuração do mapa mundo, que dentro do nosso eurocentrismo chamaríamos de “um mundo de pernas para o ar”, com uma reminiscência onírica da “Alice no País das Maravilhas”. Acompanhou-me também uma bússola atípica, orientada ao polo sul, desafiando a norma eurocêntrica de um norte magnético predominante.

No meio da panóplia de propostas de distintas perspetivas, fui também confrontada com a polarização social crescente na região – simbolizada pela ascensão à presidência argentina de Javier Milei, um anarco-liberal; pela exclusão de hinchas (adeptos) da equipa adversária, em jogos de futebol clássicos (Nacional vs. Peñarol), perante as constantes ameaças de morte e agressões; assim como pelo abrandamento das conversas de parrilla (uma magnifica forma de churrasco ao modo uruguaio), espaço premiado por acesos debates políticos e futebolísticos, onde o cidadão uruguaio discutia animadamente com parceiros de posição ideológica distinta, sem por isso entrar em colisão com ele ou pôr em causa a sua amizade.

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Num mundo atualmente marcado por um crescente tribalismo nas esferas políticas, sociais, filosóficas e religiosas, dou por mim a refletir sobre a urgência de pluralidade nas relações pessoais. A batalha contra a polarização não se inicia nos altos olimpos políticos, mas sim no cerne da democracia: o povo, nós mesmos.

A premissa deste artigo é então a seguinte: a luta contra a polarização é principiada, não apenas pelo dever cívico de eleger representantes políticos, mas principalmente pela escolha das companhias que diariamente nos cercam: ecos de nossas próprias vozes ou vozes dissonantes que nos trazem novas visões?

O facto é que a falta de exposição a perspectivas diferentes não só empobrece o nosso entendimento sobre o mundo, alimentando por sua vez a polarização, como em última instância pode levar ao isolamento social, uma condição muitas vezes letal para o tecido social. A homogeneidade nos círculos sociais restringe o diálogo e a compreensão mútua, uma vez que, quando só interagimos com aqueles que partilham as nossas visões, criamos uma câmara de eco que reforça as nossas crenças e preconceitos, enquanto silencia vozes divergentes. Este fenômeno, conhecido como “filtro de bolha” – um estado de isolamento intelectual e reforço ideológico – não somente estagna o nosso crescimento pessoal, como fomenta a polarização, transformando diferenças em abismos e anulando a empatia e o entendimento.

A História, felizmente, brinda-nos com exemplos de amizades que romperam fronteiras ideológicas: Ruth Bader Ginsburg e Antonin Scalia, juristas de espectros opostos, mas ligados por uma amizade e paixão pela ópera; Nelson Mandela, um ícone da luta contra o apartheid, e Frederik Willem de Klerk, o último presidente do apartheid na África do Sul, uma relação que evoluiu de adversários políticos para uma de respeito mútuo, essencial para a transição pacífica do país; Gandhi e Lord Mountbatten, que apesar de estarem em lados opostos na luta pela independência da Índia, mantinham um respeito mútuo que ajudou a guiar o país para um futuro pacífico. George Bernard Shaw de G.K. Chesterton, ambas figuras da literatura inglesa dos finais do século XIX e inícios do século XX, com profundas divergências políticas, sendo Shaw um socialista comprometido e Chesterton um apoiante do distributismo; com crenças religiosas distintas, sendo Shaw (descrevendo-o de forma simplista) agnóstico e Chesterton, um católico convertido. Shaw e Chesterton divergiam nas suas visões relativas ao progresso e modernidade, assim como nas suas opiniões literárias e estéticas, contudo, mantinham uma amizade marcada por debates frequentemente repletos de humor e admiração mútua. Diz-se que quando Chesterton faleceu, Shaw comentou: “O mundo não está suficientemente grato a Chesterton”.

Estas amizades são testemunhas do poder transformador que as relações humanas podem ter, permitindo-nos ver além das nossas bolhas ideológicas. São as amizades que humanizam “o outro”, desfazendo adversidades ideológicas e incentivando a reconsideração de premissas, fundamentais na edificação de uma sociedade menos dividida.

Neste alvorecer de ano, proponho-nos, colectivamente, um desafio: o de procurarmos ativamente amizades fora dos nossos círculos convencionais; o de imergirmos individual e coletivamente num processo essencial de desconstrução da polarização, visando uma sociedade mais integrada e menos propensa ao isolamento social.

Enquanto a homogeneidade nos círculos sociais nos pode trazer conforto, a diversidade nas nossas amizades não é somente enriquecedora; é essencial para a saúde da sociedade. Por meio de conexões improváveis, erguem-se pontes sobre ideologias e fomenta-se uma cultura de tolerância e empatia. Em suma, a multiplicidade das amizades transcende um mero privilégio – é um requisito vital para o bem-estar comunitário.

Concluo assim, ajustando a sentença inicial deste ensaio: Viver isolado, sem esperança de um futuro além dos confins do próprio imaginário, é condenar-se a si mesmo, à crônica de uma morte anunciada.