O PS está disponível para tolerar a degradação das instituições democráticas enquanto isso lhe seja conveniente. Dito assim, a coisa adquire um certo dramatismo. Mas é essa a leitura sem rodeios das declarações que se ouviram no congresso dos socialistas sobre corrupção, transparência e prestação de contas dos titulares de cargos políticos. António Costa garantiu que o PS esteve (e está) “na primeira linha do combate à corrupção”. Eduardo Ferro Rodrigues assegurou que “o combate à corrupção está no ADN do PS”. E Carlos César colocou o PS na vanguarda do combate pela transparência, porque esta “é dos mais valiosos contributos para a democracia”. Sim, é indigesto escutar o PS apresentar-se como paladino da lei, da ética e da transparência. E, à excepção das dezenas que foram almoçar com José Sócrates, ninguém acreditará minimamente nestas declarações – até porque elas são facilmente desmentidas pelos factos. Mas, por mais indigestas ou absurdas que sejam as declarações, ninguém no PS estará certamente louco. O problema é aliás esse: estas declarações concertadas indiciam uma táctica de comunicação. E inquieta constatar que, em vez de lidar com os factos e respeitar as instituições democráticas, o PS optou por gerar uma cortina de fumo de spins mediáticos e lavagem da realidade.
Essa lavagem, à boa maneira dos populismos pós-verdade, terá óbvias vantagens eleitorais para o PS. É que o PS é o partido português mais entranhado em corrupção ao mais alto nível da governação do Estado, sobretudo através de Sócrates (mas não só). Corrupção que só ganhou a escala que ganhou porque, no PS, todos fecharam os olhos e alegaram desconhecimento – e agora é cada vez mais óbvio que sempre souberam. Além disso, como semanalmente o país é lembrado, o PS lida mal com o escrutínio público, rejeita a transparência, opta pelo não-esclarecimento, qualifica as suas ilegalidades de “lapsos” e confunde ética republicana com o cumprimento da lei. Não é que nos outros partidos sejam todos santos, longe disso, mas o PS não tem rival neste campeonato obscuro: no que diz respeito aos valores republicanos e ao combate à corrupção, o currículo do PS é cadastro. E quanto mais o debate político fugir dessa evidência, melhor para os socialistas.
Mas, se esta lavagem da realidade tem vantagens para o PS, ela é prejudicial à república. Ao colocar o ónus nas reformas legislativas, como fez Carlos César, o PS está a apontar o dedo às leis e não a si próprio. Ora, o problema não está nas leis, está dentro dos partidos. E, pelo seu historial, está muito dentro do PS.
Quer isto dizer que as leis não podem ser melhoradas? Claro que podem. Mas a questão é que as que existem já não são cumpridas, pelo que dificilmente novas leis seriam solução para quem não cumpre a lei. Veja-se, por exemplo, o caso do ministro Siza Vieira, que encerrou o assunto quanto à sua incompatibilidade de funções alegando desconhecimento da lei. Mais: há muitas áreas cinzentas que a lei (por natureza geral) não antevê ou que, prevendo, nunca poderá especificar detalhadamente. Ou seja, na medida em que nem tudo o que é legal é ético, a avaliação ética dos nossos representantes políticos não pode estar só dependente da lei, e tem de se apoiar também num código de valores – fundamental para estabelecer um elo de confiança no funcionamento da república entre os cidadãos e os titulares de cargos políticos.
Consequentemente, se há algo a reformar em relação à transparência e à corrupção, esse algo começa em dois sítios. Primeiro, nos partidos, através de critérios mais exigentes e de escrutínio interno mais apertado – a esse nível, por exemplo, uma iniciativa elementar (embora humilde) é a expulsão dos militantes condenados por corrupção, recentemente defendida pela líder da JSD. Segundo, há que reforçar o poder das instituições políticas, tais como o Tribunal Constitucional, que devem arbitrar o comportamento ético dos políticos e salvaguardar a saúde da república (agindo e punindo os prevaricadores com perda de mandato). A esse nível, é preocupante que tantos erros passem ao lado do escrutínio dos juízes, fazendo das declarações ao Tribunal Constitucional uma formalidade e não um instrumento de escrutínio – que, na prática, fica reduzido à investigação jornalística.
Ora, não é por aí que o PS está a caminhar: perante a degradação das instituições políticas, o PS não coloca maior exigência interna no partido, nem avalia a atribuição de mais poderes às instituições políticas de escrutínio. Eis, portanto, o aviso que saiu do congresso socialista: acreditar que as iniciativas legislativas do PS em defesa da transparência democrática visam defender a república é cair na cantiga do bandido. Na verdade, ao pretender reformar as leis sobre transparência democrática enquanto viola todos os códigos éticos de uma república, o PS só se está a defender a si próprio. Como? Perpetuando o entendimento (errado) de que lei e ética são a mesma coisa. O mínimo exigível é que os restantes partidos e o Presidente da República não caiam no erro de se deixarem embalar.