Não realizarei um ato de contrição por defender aquilo em que acredito.

A publicação da carta “A clareza que defendemos”, no jornal Público, no passado dia 10, suscitou reações um tanto excessivas de ambos os lados da trincheira política – umas mais surpreendentes do que outras. Subscrita por 54 cidadãos ligados, de uma forma ou de outra, ao espaço da direita democrática, propõe uma rejeição da amálgama entre as forças populistas e os partidos conservadores ou liberais da Europa e da América. Fala de Trump não ser Reagan, do autoritarismo de Orban não ter lugar no PPE e do revisionismo anti-constitucional do Vox, em Espanha.

Não tem uma só referência à situação e aos partidos nacionais.

Assinei essa carta, porque as suas 287 palavras me pareceram evidentes, mas essenciais; breves, mas certeiras; com urgência de consequência, mas de princípios firmados. Assinei-a, porque aquilo que diz é aquilo que tenho dito: que a direita democrática se deve demarcar firmemente de uma direita que se propõe destronar ou contornar as instituições que a direita democrática ajudou a fundar. A ambiguidade de que a acusaram talvez tenha a ver com o elevado número de signatários, donos de justas sensibilidades na sua multitude. O timing do seu surgimento, num país que viverá o próximo ano em campanha eleitoral, encontraria incómodo em qualquer data. E as tomadas de posição, se válidas na sua crença, ultrapassam o tempo com que convivem.

Pareceu-me – e parece-me – ser esse o caso.

A esquerda, todavia, não se despiu do oportunismo que a vem caracterizando e focou a iniciativa no novo governo dos Açores, que será viabilizado no parlamento regional pelo Chega, como se o texto se dedicasse a atacar André Ventura ou se opusesse ao fim do domínio socialista no arquipélago. Palmas para os doutores. Perante uma defesa conjunta da democracia no Ocidente, apoiada por jornalistas, historiadores, escritores e políticos, os senhores resumiram-na a uma região autónoma e a um partido de deputado único, convenientemente alinhados com o discurso de António Costa.

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Um nadinha redutor, não foi?

Contrariamente à esquerda hoje em vigor, esta rejeição de extremismos não é circunstancial. Aos que lhe responderam insinuando uma “falsa equivalência” entre o Chega e a esquerda radical a que o PS se aliou há cinco anos, desenganem-se. O ponto não é o que aproxima ou assemelha André Ventura e o PCP ou o BE. O ponto é o que nos separa de ambos. O exercício de retórica a que comentadores como Pedro Adão e Silva se dedicaram esta semana – criando a ideia de que para rejeitar o Chega se tem de aceitar o Bloco – esquece um dado óbvio: rejeitar duas coisas não as torna iguais ou idênticas.

À direita, lamentavelmente, a resposta escalou em choque e escárnio.

Se alguma esquerda desconfia da posição por suspeita ideológica e superioridade moral, alguma direita caiu na tentação de teorias conspirativas e ataques pessoais. Gente que sempre combateu a hegemonia da esquerda, com sacrifício pessoal e profissional, ser tomada por “serviçal” de criaturas como Carlos César foi de uma injustiça e inconsciência sem nome. Gente desprendida, que vive da escrita e da atividade intelectual, como Henrique Raposo, Francisco José Viegas ou Miguel Monjardino, ser acusada de branquear o Partido Socialista por questões de “interesse” e “protagonismo” é capaz de ter sido o momento mais asqueroso que testemunhei no nosso circuito mediático.

A partilha de fotografias que juntam figuras de direita e de esquerda, como que lançando suspeitas de cumplicidade, representa um gesto pidesco, em que imagens descontextualizadas são dadas como prova de delito político. A insinuação de que uma amizade pessoal compromete alguém partidariamente é também de uma pequeneza dificilmente igualável. Comparar o legado da AD, que cimentou a direita democrática no regime democrático, a um partido jurado em destruir esse regime não é menos do que trair a sua memória.

Mas tudo isto, tristemente, reúne o condão de emprestar corpo e razão a um texto que clarificou tanto no que explicitou, como no que depois causou.

E para citar a pátria: às armas.