No seu enorme discurso sobre o Estado da União, há uma semana, Ursula von Der Leyen fez duas propostas aparentemente generosas que são um erro: tomar decisões por maioria, em vez de unanimidade, sobre política externa e combater o racismo tornando crimes europeus os crimes de ódio e o discurso de ódio. Ambas podem parecer ideias justas, mas não são boas ideias.

Uma das maiores tentações de Bruxelas ou, melhor dizendo, em Bruxelas (querendo com isto distinguir a Comissão Europeia e o Parlamento Europeu do Conselho,que reúne lá, mas tem as cabeças nas capitais), reside em acreditar que cabe à “Europa” resolver os vários males do mundo, começando pelos males na Europa. E que, se necessário for, deve fazê-lo contra a vontade dos Estados-membros. É uma tentação compreensível, mas não é esse o objectivo da União Europeia (UE).

Quanto mais a União Europeia se imagina como uma potência, a par com os Estados Unidos da América e a China, mais aparece quem acredite que os Estados, os 27 sócios da União, são um empecilho que é necessário domesticar. É verdade que são muitas vezes um empecilho. A questão está em saber se é missão da UE domesticá-los. E em que circunstâncias.

A política externa é um dos elementos fundamentais do conceito de Estado. Não é só uma questão de exercer soberania – o que já não seria pouco. É, com frequência, uma questão existencial na medida em que a relação com os vizinhos e o lugar no mundo fazem parte da História e do que define os países. Abdicar de proteger os seus interesses neste domínio equivaleria a admitir desistir de existir.

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Para ser claro: no dia em que a política externa europeia para a Turquia for definida contra os interesses da Grécia ou de Chipre, estar na UE deixa de ser uma vantagem para ser um risco para esses países. A solução, portanto, passa por aceitar que certos países têm mais interesse em certas regiões e vão exercer o seu veto, e que a cooperação entre alguns, como no caso do Mediterrâneo, serve para coordenar e pôr a cooperar interesses divergentes sem os violentar.

Com a outra ideia, propor um plano europeu contra o racismo que inclua a “extensão da lista de crimes europeus aos crimes de ódio e aos discursos de ódio”, a presidente da Comissão quis agradar a quem participou nas recentes manifestações antirracistas pela Europa fora. Parece uma atitude justa, generosa e atenta ao que o povo pede. Mas é um fora de jogo.

Para justificar a iniciativa, Ursula von der Leyen foi buscar o terrível episódio passado no Wisconsin, EUA, em que um homem (eventualmente suspeito de tentativa de violação, é certo, mas isso não altera nada) foi baleado pela polícia com sete tiros. A cor da sua pele deu o compreensível tom racista aos disparos pelas costas. E é aqui que o problema da ideia generosa se revela. A presidente da Comissão partiu de um caso concreto passado na América para ilustrar o que queria dizer (e não foi o de George Floyd, que até tinha espoletado as manifestações). Porque não há racismo na Europa? Ou porque distinguir um caso equivalente ia ser o começo da divisão?

É óbvio que há racismo e racistas na Europa (o que é muito diferente de dizer, com ligeireza, que os europeus ou os portugueses são racistas. Em geral? Todos? Da mesma maneira?). Seja como for, o que é duvidoso é que combatê-lo ganhe alguma coisa em dar-lhe dimensão europeia. No que é que isso resulta, além de ser proclamatório?

O racismo nos portugueses tem alvos e contornos bem diferentes do que se passa na Lituânia. O anti-semitismo em França ou na Alemanha tem uma história e contextos que pedem intervenções bem distintas do que será necessário, digamos, na Irlanda ou na Holanda. E por aí fora.

Fica, evidentemente, bem à presidente da Comissão querer combater o racismo e a xenofobia. Mas dizer que vai tornar crimes europeus os crimes de ódio, além de ser um imbróglio jurídico e político fazê-lo (a lista de “crimes europeus” é curta e circunscrita), é inútil, na melhor das hipóteses, porque os Estados já o fazem. E se não fazem, há formas de os condenar. Ou perigoso, na pior hipótese, se isso significar que a União Europeia vai vigiar o que dizem os cidadãos e o que fazem as polícias e os procuradores.

Não é por acaso, que o Direito Penal é matéria que os Estados reservam para si, com raríssimas e justificadas excepções quando está em causa o que é trans-europeu ou algo especialmente grave. A definição (da quase totalidade) dos crimes e de como são punidos tem contexto. Os casos, a pressão social, os valores da comunidade e por aí fora. A menos que, lá está, houvesse uma criminalidade racista organizada e pan-europeia. Mas não é o caso.

Pelo contrário, a decisão da Comissão de bloquear fundos europeus para umas autarquias polacas que se declararam zonas LGBTI Free fez todo o sentido. Se excluem ilegalmente cidadãos europeus, não podem receber fundos da Europa.

Há, por fim, um problema de fundo com todas estas iniciativas. Começam com a boa ideia de cooperar e coordenar, mas têm tendência para desaguar na tese da inevitabilidade de ainda mais europeização. Um exemplo disso é a União Económica e Monetária (UEM) e a política orçamental dos Estados-membros.

Wolfgang Münchau é um dos jornalistas que escreve sobre Europa (no Financial Times) mais respeitados e influente. E é, também, um entusiasta de mais europeização. Ainda na semana passada lá escreveu, a propósito da integração económica que “se realmente quisermos eurobonds que funcionem, precisaremos de nada menos do que uma união política federal”. Independentemente do que agora se afirme, isso nunca foi dito quando se começou a UEM. E esse é um dos problemas. Esta tendência para descobrir inevitabilidades federalistas depois de lançar processos que são supostos ser apenas de coordenação e cooperação.

É absolutamente legítimo querer fazer uma Europa onde os Estados não existem, ou onde desistem. Mas não foi isso que os membros desta União subescreveram. Nem o que lhes é votado pelos eleitores, que pedem mais, e não menos, proximidade do nível de decisão. É por isso, não por causa das intenções, que as duas propostas de von der Leyen não prestam.

Henrique Burnay (no twitter: @HBurnay), consultor em assuntos europeus, é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Madalena Meyer Resende, João Diogo Barbosa e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

As opiniões aqui expressas apenas vinculam o seu autor.

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