A súbita urgência atribuída por alguns Senhores Deputados do país à necessidade de o tema da eutanásia vir a ser votado em sede parlamentar já no próximo dia 20 de Fevereiro dá que pensar. Em primeiro lugar, cabe perguntar “qual é a pressa?”. Tal pressa é fortemente evidenciada pela necessidade de fazer aprovar uma lei de despenalização da eutanásia poucos dias após a aprovação da Lei do Orçamento do Estado. Uma antiga ministra do país foi até ao ponto de sugerir a existência de uma correlação-forte, de tipo “moeda de troca”, entre essas duas leis. Ironicamente, aquela celeridade premente parece indicar que, para a maioria dos parlamentares, se trata de uma verdadeira questão “de vida ou de morte”, não só para os cidadãos que pedem a eutanásia, como possivelmente também para os próprios deputados. Não é, pois, por isso, difícil antecipar, com alguma segurança, a resposta à pergunta anteriormente enunciada.

Não seria, contudo, um procedimento mais avisado que, perante um tema ético tão relevante para a pessoa humana, como é o da sua morte, e fracturante da sociedade portuguesa, os parlamentares tivessem naturalmente optado por convocar o povo que representam para um referendo? Qual é, então, o medo que os atemorizou de que o debate fosse alargado aos cidadãos eleitores? Para mais, em uma matéria que até o simples bom senso aconselharia. Não tendo sido essa a sua respeitável opção, pergunta-se, então, que argumentos racionais seguros e clarividentes aduzem os ilustres parlamentares para reduzir – tão apressada, profética e dogmaticamente – um tema da mais grave complexidade e acuidade ética a simples determinações jurídicas, raptando, para isso uma decisão mais alargada aos cidadãos e remetendo, ultimamente, para a vigilância clínica e para o exercício de um acto médico? Como se tal procedimento assentasse em ciência exacta. Com efeito, pretender reduzir o ético ao jurídico é, já de si, uma notável obra de arrojo, só permitida a algumas mentes ilustradas. Mas, empurrar uma decisão última sobre a vida e sobre a morte para um médico, ou para uma equipa de médicos, é atribuir à Medicina, mediante um puro acto legislativo, o estatuto de uma ciência exacta, estatuto esse que a ciência médica não se atribui a si mesma.

Basicamente, as razões que os deputados favoráveis a uma lei de despenalização da eutanásia apresentam gravitam à volta do argumento da autonomia e liberdade do doente para poder escolher o momento da sua morte, antecipando-a. Constitui este, certamente, um argumento racionalmente fundado, que se torna difícil refutar. O argumento da autonomia constitui, indubitavelmente, um dos pilares mais sólidos e consistentes da bioética. Um ser humano autónomo e livre, não crente num Ser Absoluto, tem o direito a decidir sobre a sua própria vida e até pode antecipar a sua própria morte. Para os crentes num Absoluto, tal direito é teonomamente orientado.

Contudo, deduzir do princípio do direito da autonomia um outro princípio, segundo o qual um ser humano “teria o direito” de exigir a outro ser humano o dever de o matar, não parece ser racionalmente fundado. A menos que tal seja demonstrado. Na verdade, em que razão se fundaria o dever de alguém ter de matar outra pessoa a pedido desta última, só porque esta decide exercer o seu direito de antecipar a morte? Se tal dever não encontra razões racionalmente fundadas, então apenas nos restaria a arbitrariedade ou a “lei do mais forte” como instância última “(psedo)justificadora” para não dizer “justiceira”. Mas uma ética humanamente aceitável exige, no mínimo, a racionalidade.

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Que haja o dever de cuidar de um doente e de, se possível, o subtrair à doença, ou mesmo à morte – dentro dos limites impostos pelas ciências da saúde, nomeadamente através de cuidados paliativos ou de reanimação, prestados em sede hospitalar ou mediante equipas médicas domiciliárias, sem, evidentemente, perseguir situações eticamente inadmissíveis de obstinação terapêutica de prolongamento artificial da vida –, isso parece ser ética e universalmente aceite e não oferecer dúvidas.

Mas que haja o dever de matar alguém, que na sua autonomia e liberdade o exija, não parece racionalmente aceitável. Não há um dever de matar, mas, sim, há o dever de cuidar. E esse dever obriga a todos em geral e, de modo particularíssimo, aos médicos. O médico não tem, pois, o dever de eutanasiar ou de matar. O médico tem, sim, o dever de cuidar. Com efeito, que um médico tivesse o dever de eutanasiar, criaria no doente uma sustentada suspeita sobre o carácter dos tratamentos por ele a prestar e, consequentemente, sobre se o doente iria ser cuidado e tratado ou simplesmente eutanasiado. Não é por acaso que a Ordem dos Médicos se acaba de manifestar totalmente contra os projectos de lei a ser discutidos brevemente no Parlamento. O Estado pretende exigir, mediante lei, aos médicos que ajudem a matar e eles manifestam-se contra a aprovação de tal lei. É certamente de registar.

Ora, o doente que pretenda, no exercício da sua legítima autonomia e liberdade, colocar termo à sua vida, antecipando a sua própria morte, não tem o direito de o exigir a um terceiro, seja este individual ou colectivo, ou mesmo ao Estado. Se, contudo, argumenta que não pode por si mesmo levar a cabo tal tarefa – isto é, acabar com sua vida, em razão da sua doença terminal irreversível –, então, isso mesmo atesta que, na verdade, ele não é possuidor da completa autonomia, a qual pretende reivindicar para ser senhor da antecipação da sua morte, como sendo o princípio fundante, de onde quer fazer derivar o seu pretenso direito a que um terceiro, individual ou colectivo, tenha a obrigação de o matar.

Por outras palavras, é difícil justificar racionalmente que algum cidadão tenha o direito a que outro cidadão o mate ou a que o Estado lhe disponibilize um médico para o eutanasiar. Matar não é um acto médico, e como tal, não deve ser exigido pelo Estado aos médicos. Os actos médicos têm por finalidade cuidar e, quando possível, curar, mas não matar. Portanto, a eutanásia não é um acto médico, nem uma resposta da medicina ao sofrimento humano. E o suicídio assistido também não. É por isso, que os médicos têm o direito de objecção de consciência perante o Estado que lhe exigisse tal prática.

É certamente muito respeitável, no mais nobre sentido do termo, que um cidadão, por razões de doença incurável e terminal e de íntimas convicções pessoais, possa querer prescindir da sua vida, como e quando entender. Mas não tem o direito de poder exigir a obrigação e o dever de um terceiro, individual ou colectivo, para este, directa ou indirectamente, o executar. Há um direito fundamental à vida, a qual todos estamos obrigados a defender e a cuidar. Mas não parece existir um direito de obrigar terceiros, nomeadamente, médicos, a executá-lo (esse direito), quando o mesmo pretende fundamentar-se num princípio de autonomia do requerente, o qual, ao mesmo tempo, revela ser incapaz de completa autonomia, o que é contraditório. Por outro lado, a morte é uma inevitabilidade e, por isso, não é propriamente um direito.

É um acto de compaixão aliviar o sofrimento com cuidados paliativos, mas não parece ser compassivo matar uma pessoa, mesmo que a pedido desta. Se alguém, em situação de desespero, quiser livremente matar-se e se tiver coragem para o fazer, pode fazê-lo. E nunca será punido, porque estará morto. Podemos e devemos dissuadir a pessoa de o fazer, mas não temos o poder de a impedir de se suicidar. Mas que esta pessoa se atribua a si mesma, ou que o Estado lhe atribua o direito de exigir a outra que a ajude a matar, penso que não é racionalmente justificável. E por que razão é que uma pessoa “tem o direito” a morrer apenas, e só, quando padece de uma doença terminal e irreversível? Não deveria, então, “ter também direito” a morrer em qualquer fase da sua vida, desde que o sofrimento fosse para ela insuportável e indigno? Mas então, a vida humana, sempre sujeita ao sofrimento em todas as fases do seu crescimento, é, por isso mesmo, indigna? Se houvesse direito a ajudar na morte terminal por compaixão, por que não haveria também esse mesmo direito em qualquer fase da vida humana, auxiliado também por compaixão? Aqui voltaríamos também a uma posição contraditória.

Acresce ainda que também não é facilmente compreensível que os ilustres deputados favoráveis à despenalização da eutanásia se apressem a querer aprovar uma lei, quando se estima que apenas menos de cerca de 30% das pessoas necessitadas no país tenham acesso aos cuidados paliativos, os quais garantem a possibilidade de que elas possam ter um conforto adequado no fim das suas vidas. Além disso, a despenalização da eutanásia iria desencadear angústias nas pessoas idosas que, ao ser-lhes exigidos custos onerosos para os cuidados da sua saúde, se veriam a si mesmas como um fardo para as suas famílias, autoculpabilizando-se pelos seus próprios gastos em saúde, os quais poderiam antes servir para os seus filhos e netos. Deveríamos, então, exigir a uma pessoa viver no final da vida com tal angústia de que estaria a ser um fardo e que deveria pedir para morrer? Onde acabaria essa “rampa deslizante”?

Não parece, pois, também por estes motivos adicionais, que a resposta do país venha a ser a eutanásia. Tal resposta reverteria certamente numa opção muito mais economicista para o Estado, mas menos adequada para a maioria dos cidadãos em estado terminal da sua vida.
Na verdade, não há justificação racional para a eutanásia. Há sim uma “justificação” baseada numa agenda apressada, que resiste ao referendo de um consenso mais amplo na sociedade civil e, ultimamente, à busca de uma justificação racional para um problema ético grave. Quando um conjunto de deputados pretende impor à sociedade uma visão da vida e da morte não racionalmente justificada, essa visão assume um carácter marcadamente ideológico, sendo dogmaticamente imposta como uma verdadeira religião do Estado. Mas o direito não pode passar por cima de uma ética racional, sobretudo quando se trata de questões fundamentais para a vida humana.

Ora, quando não há uma justificação racionalmente clara, e amplamente reconhecida, para as nossas acções éticas, qualquer justificação alternativa aparece sempre como arbitrária e como uma imposição “da razão do mais forte”. Quando uma sociedade prescinde de uma racionalidade o mais ampla e universal possível – buscada, evidentemente, por todos conjuntamente, mediante o confronto de argumentos racionais –, então, essa sociedade cede ao perigoso “poder do mais forte”, cujas nefastas consequências a história humana tem, infelizmente, patenteado. E no caso da aprovação no Parlamento de uma lei despenalizadora da eutanásia, a “lei do mais forte” é a lei de alguns senhores deputados, que não foram mandatados, nem podem ser, para decidir sobre esta matéria particular de ética da vida e da morte.