Percorre na penumbra do quotidiano das nossas vidas um assombro silencioso e vil que não tem problemas em não pedir licença na hora de espalhar dor e sofrimento no mais incalculável e inesperado dos momentos da nossa vivência.

O hediondo e obscuro sentimento de sofrimento interno, capaz de fazer com que a mais vívida das pessoas se deixe derrotar perante o peso insuportável dos seus próprios pensamentos é, decisivamente, a força mais crua, violenta, injusta e paradoxal da existência humana, e quando esta derrota se inflige em alguém que mal deu início à sua vida, mais injusto e paradoxal se revela.

Vivemos num mundo cada vez mais confuso, mais complexo, mais dinâmico, mais difícil de acompanhar, tudo se move em vertigem, as notícias, as tendências, as opiniões, as indignações, os modos de vida, os lugares, as experiências. Tudo está ao nosso rápido alcance para uma rápida satisfação, dando-nos a percepção de que podemos ter tudo naquele momento, e satisfazer as nossas necessidades mais fúteis ou mais essenciais na hora, todos os flashes do mundo nos vendem a ideia de que tudo é alcançável de forma rápida e fácil, de que tudo aquilo com que sonhamos é palpável e realizável, que o topo da montanha está ao nosso alcance, sem sequer se mencionar o seu tamanho, a penosidade da escalada e o sofrimento imposto pelas condições. O sacrifício não vende e, pior, já não se ensina.

E tantas que são as montanhas que nos são mercadejadas e ostentadas. A montanha da carreira de sucesso, num mundo de precariedade de trabalho no início da vida activa e nos anos que se seguem, viver sem esperanças de progressão e de uma digna compensação financeira por funções que nos levam ao limite físico e mental, numa realidade imposta pelo produtivismo industrial desenfreado, onde um trabalhador não é senão uma unidade a mais ou a menos numa colossal engrenagem de relações distantes e impessoais, escondidas atrás de lugares comuns e expressões como team-building, work-life balance, awareness ou outra qualquer estrangeirada basbaque. Realidade que nos coloca constantemente perante o questionamento do nosso próprio valor, num tempo onde a percepção de valor está inadequadamente colocada no prisma da performance e da posição social ocupada, em vez de nos valores humanos que nos compõem, determinando que o nosso valor passa a ser calculado em função da aprovação ou desaprovação de terceiros.

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Romantizam-se as carreiras da alta instância como que sendo o único modelo para se ser bem sucedido, enquanto se desconsidera o romantismo da heroicidade do bombeiro, da lucidez do agricultor ou da fundamentalidade do operário, que toda uma sócio-concepção classifica de ocupações de segunda, classificando quem as ocupa, como pessoas de segunda, os que não conseguiram e, assim, vestem o uniforme do insucesso, onde ninguém quer terminar.

Temos depois o mercadejar da montanha do sucesso pessoal, sordidamente medido tendo por base uma escala sexual, mascarada de escala afectiva, imposta nas mentes das crianças desde cedo, onde o sucesso pessoal é medido em função da conquista física de outra pessoa, em detrimento da conquista da conexão afectiva, em idades onde a sexualidade ainda não se manifesta, criando todo um cocktail de confusões e imposição de estereótipos em mentes ainda demasiado inocentes, com todos os prejuízos mentais que daí surgirão na possibilidade de uma daquelas crianças se incompatibilizar na adolescência com algum desses estereótipos por via da manifestação imprevisível da sua personalidade ou da sua sexualidade.

Não podíamos deixar de referir outras imposições sociais aos olhos de convenções que, hoje, são cada vez mais difusas na sua aplicabilidade, como a pressão para não se “acabar” sozinho, para o casamento, para ter filhos, impostos como ritual de passagem da infância para a idade adulta, como que passaportes únicos para a mesa dos valorosos e dos elogiáveis, o arquétipo do préstimo e da utilidade, para quem todos olham e em quem todos se inspiram como exemplo do valor. Imposições cada vez menos materializáveis num mudo cada vez mais pautado pela volatilidade e liquidez das relações de amizade e amorosas, mas onde, ao mesmo tempo, se vindica que uma pessoa garanta um imaginado sucesso nas suas relações idêntico ao de outros tempos, ou de outros exemplos desta ou daquela pessoa, onde se espera que “coloquemos os olhos”.

Um indivíduo é hoje, cada vez mais, forçado a ser um mero escravo que carrega um cada vez mais pesado fardo de expectativas impostas, umas descaradamente, outras subtilmente, outras traiçoeiramente, caminhando pelos trilhos da sua própria vida agarrado ao fardo, com o qual acorda, com o qual convive, com o qual se levanta depois de cair, e com o qual, pela noite, se vai deitar debaixo do seu peso, onde nem no sono dele se vê livre. Num mundo cada vez mais urbano, mais individualista, mais solitário, o peso do fardo seria suficiente para derrubar o mais duro dos espíritos nos momentos de maior fraqueza, mas subjaz um segundo inimigo, o estigma. Como se não fosse suficiente todo o fardo de expectativas, que nos cega a razão e nos entorpece sobriedade, o estigma assume a segunda linha de tortura, onde não há lugar a fraqueza porque “dos fracos não reza a história”, como desde cedo nos acostumamos a ouvir. Ter imperfeições e fantasmas dentro da própria cabeça não é bem aceite. É estar à margem, é estar condenado ao rótulo de desequilibrado, incapacitado, defeituoso, o mundo não se sente confortável junto de perturbados, e quem tem consciência dos seus fantasmas também tem consciência do possível calvário que o espera se os mostrar ao mundo. O estigma é o homem do chicote que força o escravo a transportar o fardo. O estigma é o elemento que acorrenta a mente à ideia de que não existe outra saída senão desistir de viver, saída para a qual, muitos de nós, cada vez mais se vão virando.

Todos os dias em Portugal três pessoas decidem pôr termo à sua vida, por ano, no mundo, 800 mil pessoas tomam a mesma perturbadora decisão, mais de uma pessoa por minuto. Entre jovens dos 15 aos 34 anos, esta é mesmo a segunda maior causa de morte. Um problema demasiado grave para continuar a ser vivido em silêncio. Uma sociedade suficientemente primeiro-mundista para evoluir ao ponto de chegar aos direitos dos animais tem de ser suficientemente primeiro-mundista para encarar a saúde mental como um cuidado de prioridade máxima na salvaguarda da vida humana, porque a doença mental não é menos agressiva que a doença oncológica ou a doença cardíaca, nem provoca menos sofrimento, porém, continua a ser o parente pobre da saúde pública.

Escrevo no rescaldo da impiedosa perda de alguém por quem tinha a maior estima e simpatia. Alguém com exactamente a minha idade cujo sofrimento interno atingiu um nível de perversão e desumanidade tal que se tornou insuportável. Alguém que só encontrou a desejada paz na mais injusta das decisões. Alguém cuja vida mal tinha começado, com tanta que teria pela frente. Alguém que deixa um vazio irreversível na vida dos seus. Alguém que se junta a tantos outros jovens que tragicamente sobrecarregam estas estatísticas. Alguém que se sentiu sem solução, sem escolha. Alguém que ninguém trará de volta.

A saúde mental importa. A doença mental mata. O estigma mata. Procurem ajuda, porque só esta nos salva, seja ajuda de um familiar, seja de um amigo, seja de um psicólogo, ou, em emergência recorram ao 112 ou à linha de acompanhamento psicológico SNS24 no 808 24 24 24. O vazio tem solução, os fantasmas têm solução, o medo tem solução. O silêncio é o maior inimigo. Há lugares seguros, há pessoas seguras, há soluções para sair da espiral. Todos fazemos falta neste mundo. Como todos fazemos falta a alguém.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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